Carta de Joaquim Magalhães a Camões

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Carta de Joaquim Magalhães a Luís de Camões


  • Joaquim da Rocha Peixoto Magalhães (1909-1999) foi um destacado professor e investigador algarvio, conhecido por seu trabalho na divulgação da obra de António Aleixo e por suas contribuições à literatura e cultura do Algarve. Entre as suas publicações, destacam-se títulos como "Romance do Poeta Aleixo" (1959) e "Ao encontro de António Aleixo" (1978) wikialgarve.pt.
A carta, escrita em tom irónico e crítico, é dirigida simbolicamente a Luís de Camões, refletindo sobre as comemorações do quarto centenário de sua morte, em 1980. O autor lamenta como diferentes grupos políticos tentam apropriar-se da figura do poeta, transformando-o em símbolo de diversas ideologias. Critica também a superficialidade das homenagens, observando que poucos realmente leem ou valorizam sua obra. Menciona que, apesar de Camões ser celebrado como um grande poeta, a sua poesia não foi devidamente representada nas cerimónias. O texto ressalta a falta de interesse genuíno pela cultura e ironiza o excesso de formalismos e burocracias na sociedade contemporânea.


  • Excerto 1

Meu caro Luís Vaz:

Desculpa. Mas concordo contigo, quando dizes:
No mundo não tem boa sorte,
senão quem tem por boa a que tem.

É assim que pensas numa das tuas cartas. E por isso me lembrei de te escrever também uma. Como esta não precisa de código postal não ponho no endereço o número que me puseram. Que isto, agora, por cá, só funciona com números. Desde o número da porta, ao número de código postal, passando pelo número do bilhete de identidade, pelo número de eleitor, até ao mais recente, que é o número de contribuinte, os portugueses estamos todos numerados. Do que tu escapaste, meu caro Luís Vaz do que tu escapaste!
Um abraço e até qualquer dia.

  • Excerto 2

Meu caro Luís Vaz:

Também te têm filiado em partidos políticos. Foste, há um século, quase que membro fundador do partido republicano português. Agora, depois de te terem, sem pudor, alcunhado; de fascista, querem que sejas comunista. Outros fazem de ti socialista. É natural que a AD também se reclame de ti. De maneira que já sabes, os nossos queridos irmãos portugueses, lusos, lusitanos, ou lusíadas, como lhes chamas, não fazem as coisas por menos. Tens de ser tudo. Da Inter, e da UGT. Não sei se já te nomearam para alguma Comissão de Trabalhadores, ou te meteram em algum piquete de greve, que, como talvez saibas, é uma moda muito em voga, agora, entre nós. Não me admiro de nada. Este nosso feitio português dá para tudo. Até para, há muitos anos já, numa feira lá para o Norte - no tempo em que ainda se faziam bonecos artesanalmente - fazerem de ti um assobio, por baixo do teu busto, pintado a verde e encarnado.
Já sabes. Não tens que estranhar. Somos assim.

  • Excerto 3

Meu caro Luís Vaz:

Sabes uma coisa que tenho estranhado? Ninguém representou o teu teatro. Chamaram-te poeta altamente dramático. Mas não representaram os teus autos. Também não leram os teus versos, em público. Isso é que teria sido bonito. Era uma maneira de te fazerem aparecer nos palcos das sessões solenes.

Não digo das escolas. Estas não quiseram nada contigo. Nem professores. Nem estudantes.

Claro que a minha opinião é um bocado diferente.

Por minha conta e risco, deu-me para ler, em voz alta, os teus versos, os melhores episódios do poema épico. Para poucas pessoas, claro, que hoje, aqui entre nós, poucos se interessam por estas coisas. Todos falam muito em cultura. E cultura para aqui, cultura para acolá. Mas é só palavreado. Quando se quer fazer assim uma coisa mais séria e prolongada. Calcula, uma vez por semana. A ler versos teus. Para te tornarmos mais presente. Naquilo que escreveste. Naquilo que nos deixaste. Ninguém quer saber.


  • Carta completa (páginas 47, 48 e 49 do Livro Carta Sem Código Postal)


Meu caro Luís Vaz:

Se lá no assento etéreo onde subiste memória desta vida se consente...,
podes, com certeza, receber notícias do que por cá se passa; o que não podes é responder nem mandar as tuas. Ao que consta, apesar de muitos terem prometido escrever, antes da partida, nunca ninguém cá recebeu novas nem mandadas deles.

De maneira que estou à vontade para te dar algumas novidades, ou novas, do que foi, e do que não foi, a passagem da efeméride do quarto centenário da tua partida.

A mais desconcertante é esta de cada grupo, ou partido, ter querido fazer de ti bandeira. Camões é meu, Camões é meu... foi brado de alguns, imitando, nisso, o que, mês e meio antes, haviam feito com o 25 de Abril.

O Abril é meu, o Abril é meu, tinha-se ouvido.

Aqui há muitos anos, quando eu era estudante no Porto, um médico de Gaia tinha chamado aos que "engraxavam" Camilo, depois de morto, "os manteigueiros de Camilo". Não direi que se passa agora o mesmo contigo. Manteigueiros e até comprometedores, sempre os tiveste. Mas talvez prefira chamar a esses tais de "rendilheiros". É o que fazem, na maior parte das vezes. Poucos falam da obra que deixaste. Duvido, até, que muitos a tenham lido. Mas interpretam-na com maravilhosa habilidade manual, própria de quem faz renda. E sabem fazê-la render.
Outro curioso aspeto é a rotulagem que não te poupam. Têm-te chamado tudo, desde grande poeta a maior poeta português. Nunca percebi por que razões se aplicam expressões significativas de quantidade e medida como qualificativos. Em que é que um poeta é maior ou mais pequeno do que outro? Nunca percebi. Só distingo diferenças. Aí, sim, percebo. Tu não te pareces com ninguém, embora muitos possam ter tido parecenças contigo.

Também te têm filiado em partidos políticos. Foste, há um século, quase que membro fundador do partido republicano português. Agora, depois de te terem, sem pudor, alcunhado; de fascista, querem que sejas comunista. Outros fazem de ti socialista. É natural que a AD também se reclame de ti. De maneira que já sabes, os nossos queridos irmãos portugueses, lusos, lusitanos, ou lusíadas, como lhes chamas, não fazem as coisas por menos. Tens de ser tudo. Da Inter, e da UGT. Não sei se já te nomearam para alguma Comissão de Trabalhadores, ou te meteram em algum piquete de greve, que, como talvez saibas, é uma moda muito em voga, agora, entre nós. Não me admiro de nada. Este nosso feitio português dá para tudo. Até para, há muitos anos já, numa feira lá para o Norte - no tempo em que ainda se faziam bonecos artesanalmente - fazerem de ti um assobio, por baixo do teu busto, pintado a verde e encarnado.
Já sabes. Não tens que estranhar. Somos assim.

A grande sessão solene, nacional, no dia da efeméride, foi num ginásio desportivo. Está agora muito na moda, em Portugal, este culto pela Cultura. Até nos complexos gimnodesportivos se presta esse culto. Claro, foi uma enchente. E houve de tudo, desde condecorações a discursos. Foi uma grande solenidade. Tudo multo solene e muito sério. Claro que tu foste o pretexto.

Ainda não se lembraram de te tornar patrono de mais uma ordem honorífica. Mas vamos em bom caminho.
Se me perguntasses se os discursos foram bons, eu dizia-te que sim, que foram bons. Mas muito solenes, muito literários. Para uma Academia de Ciências. Ou para uma Faculdade de Letras. Agora para um gimnodesportivo... temos conversado.

Sabes uma coisa que tenho estranhado? Ninguém representou o teu teatro. Chamaram-te poeta altamente dramático. Mas não representaram os teus autos. Também não leram os teus versos, em público. Isso é que teria sido bonito. Era uma maneira de te fazerem aparecer nos palcos das sessões solenes.

Não digo das escolas. Estas não quiseram nada contigo. Nem professores. Nem estudantes.

Claro que a minha opinião é um bocado diferente.

Por minha conta e risco, deu-me para ler, em voz alta, os teus versos, os melhores episódios do poema épico. Para poucas pessoas, claro, que hoje, aqui entre nós, poucos se interessam por estas coisas. Todos falam muito em cultura. E cultura para aqui, cultura para acolá. Mas é só palavreado. Quando se quer fazer assim uma coisa mais séria e prolongada. Calcula, uma vez por semana. A ler versos teus. Para te tornarmos mais presente. Naquilo que escreveste. Naquilo que nos deixaste. Ninguém quer saber.

Mas eu não me tenho importado. E cá continuo a ler-te, em voz alta. Já há mais de dois meses. Agora, vou interromper. Vou deixar para Outubro. Sabes? Com o calor, as pessoas não têm paciência. Espero que me não leves a mal estas pequenezas todas. Os humanos somos assim. Uns pobres de Cristo. Cheios de fraquezas.

Claro que nos orgulhamos todos muito de ti. Apesar desta mania de tentar fazer de ti homem de partido. Que não és. Eu também não. E é por isso que espero me perdoes a confiança. É que te admiro muito. E te considero mesmo como o primeiro.

Desculpa. Mas concordo contigo, quando dizes:
No mundo não tem boa sorte,
senão quem tem por boa a que tem.

É assim que pensas numa das tuas cartas. E por isso me lembrei de te escrever também uma. Como esta não precisa de código postal não ponho no endereço o número que me puseram. Que isto, agora, por cá, só funciona com números. Desde o número da porta, ao número de código postal, passando pelo número do bilhete de identidade, pelo número de eleitor, até ao mais recente, que é o número de contribuinte, os portugueses estamos todos numerados. Do que tu escapaste, meu caro Luís Vaz do que tu escapaste!
Um abraço e até qualquer dia.
P.M.
N.° 3683
18-Junho-1980



  • Carta de Joaquim Magalhães a Camões, em imagem jpg (páginas 47, 48 e 49 do Livro Carta Sem Código Postal) -

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