Difference between revisions of "Camões e a Algarvia"

From Wikipédia de Autores Algarvios
Jump to: navigation, search
Line 9: Line 9:
 
1. Excerto 1 (Prelúdio)<br />
 
1. Excerto 1 (Prelúdio)<br />
  
'''A modos de prelúdio...''' <br />
+
'''''A modos de prelúdio...''' <br />
Escrita há bem mais de trinta anos, proferida, primeiro, em Dezembro de 1945, no Sarau do aniversário do Ginásio Clube Farense e, depois, em 29 de Novembro de 1946, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, no fecho da I Exposição Bibliográfica e de Artes Plásticas do Algarve, realizada na capital, esquecida no fundo de uma gaveta e só publicada no "Correio do Sul" dez anos depois, lembraram-se agora os amigos do GRUPO DE ESTUDOS ALGARVIOS de que podia haver interesse em dar a esta palestra aquela divulgação livresca ou mais propriamente opuscular, que mais natural seria então tivesse tido.<br />Isso decerto melhor desculparia certas ingenuidades e fantasias, a talvez que demasiada brevidade que o A. lhe deu e o deixar em branco alguns pormenores, defeitos que, porventura, destinando-a a ser ouvida, tomou então por qualidades e de que - sabe-se lá! - talvez sem grande esforço, destinada que vai ser à leitura, pudesse expurgá-la agora!<br />Publica-se, no entanto, na sua pureza original. E fácil se torna reconhecer assim que o A. entende que, no revesti-la agora da erudição que então não teve, por mais certa e brilhante que ela fosse, não haveria honesto proceder.<br />(...)'''"Camões e a Algarvia"'''! <br /><br />Faro, Junho de 1978 <br /><br />M. L. F. <br />
+
Escrita há bem mais de trinta anos, proferida, primeiro, em Dezembro de 1945, no Sarau do aniversário do Ginásio Clube Farense e, depois, em 29 de Novembro de 1946, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, no fecho da I Exposição Bibliográfica e de Artes Plásticas do Algarve, realizada na capital, esquecida no fundo de uma gaveta e só publicada no "Correio do Sul" dez anos depois, lembraram-se agora os amigos do GRUPO DE ESTUDOS ALGARVIOS de que podia haver interesse em dar a esta palestra aquela divulgação livresca ou mais propriamente opuscular, que mais natural seria então tivesse tido.<br />Isso decerto melhor desculparia certas ingenuidades e fantasias, a talvez que demasiada brevidade que o A. lhe deu e o deixar em branco alguns pormenores, defeitos que, porventura, destinando-a a ser ouvida, tomou então por qualidades e de que - sabe-se lá! - talvez sem grande esforço, destinada que vai ser à leitura, pudesse expurgá-la agora!<br />Publica-se, no entanto, na sua pureza original. E fácil se torna reconhecer assim que o A. entende que, no revesti-la agora da erudição que então não teve, por mais certa e brilhante que ela fosse, não haveria honesto proceder.<br />(...)'''"Camões e a Algarvia"'''! <br /><br />Faro, Junho de 1978 <br /><br />M. L. F. <br />''
 
 
  
  

Revision as of 16:55, 11 February 2025

Mário Lyster Franco - Camões e a Algarvia

Lysterfoto.png LysterJornalAlgarvio.png Lysternotícia.png

Camões e a Algarvia, da autoria de Mário Lyster Franco, é uma palestra sobre Camões, proferida originalmente em 1945 e 1946 e só publicada anos depois. O autor começa por referir o contexto e a intenção original da palestra, reconhecendo que, embora pudesse ter feito a sua revisão e aprofundá-la, prefere mantê-la na sua forma inicial. Destaca a relação de Camões com o Algarve e sua ligação com D. Francisca de Aragão, uma musa que teria inspirado o poeta. O autor enfatiza que Camões foi marcado por grandes amores infelizes, visto na época como um aventureiro e pouco promissor para os pais das moças da alta sociedade. Apesar disso, a sua genialidade poética imortalizou as suas paixões e a sua obra, independente da visão que tinham dele em vida.
  • Excertos de Camões e a Algarvia:

1. Excerto 1 (Prelúdio)

A modos de prelúdio...
Escrita há bem mais de trinta anos, proferida, primeiro, em Dezembro de 1945, no Sarau do aniversário do Ginásio Clube Farense e, depois, em 29 de Novembro de 1946, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, no fecho da I Exposição Bibliográfica e de Artes Plásticas do Algarve, realizada na capital, esquecida no fundo de uma gaveta e só publicada no "Correio do Sul" dez anos depois, lembraram-se agora os amigos do GRUPO DE ESTUDOS ALGARVIOS de que podia haver interesse em dar a esta palestra aquela divulgação livresca ou mais propriamente opuscular, que mais natural seria então tivesse tido.
Isso decerto melhor desculparia certas ingenuidades e fantasias, a talvez que demasiada brevidade que o A. lhe deu e o deixar em branco alguns pormenores, defeitos que, porventura, destinando-a a ser ouvida, tomou então por qualidades e de que - sabe-se lá! - talvez sem grande esforço, destinada que vai ser à leitura, pudesse expurgá-la agora!
Publica-se, no entanto, na sua pureza original. E fácil se torna reconhecer assim que o A. entende que, no revesti-la agora da erudição que então não teve, por mais certa e brilhante que ela fosse, não haveria honesto proceder.
(...)"Camões e a Algarvia"!

Faro, Junho de 1978

M. L. F.



Se, no dizer de Teófilo Braga, o "Amor foi o móvel principal dos pensamentos e atos" de Camões, se foram muitas mulheres que Camões amou, concordemos em que ele foi sempre e principalmente - aparte um ou outro triunfo passageiro que lhe não deixou sulcos no coração -, o poeta dos grandes amores infelizes.

Audacioso, valentaço e brigão, ainda que por apregoados pergaminhos e pela fama de bom versejador que alguns amigos dedicados lhe criavam tivessem si do admitido na corte e na roda das boas famílias: gente "bem" da sua época, o certo e que os veneráveis papás de então, austeros, rabugentos e barbudos como nenhuns outros, viam principalmente nele o "Trinca-fortes" aventureiro e aventuroso, já sabiam que fazer versos - por mais belos e harmoniosos que eles fossem -, não era, positivamente, uma carreira e estavam longe de considera-lo um bom, ou mesmo, apenas, um razoável, um aceitável partido.

Por outro lado, parece que o Poeta não devia nada à formosura. E certo que só mais tarde perdeu um olho, mas era ruivo, barbirralo ao tempo dos grandes amores, musculoso, algo desajeitado e enorme, de nariz volumoso e adunco, de olhar e vestes sombrias. Quase todos os seus panegiristas não hesitam mesmo em chamar-lhe feio. O encanto, parece que vinha nele apenas da conversa, mas essa não era de molde a impressionar igualmente todas. Feio e pobre ainda que rico de bravura, de audácia e, sobretudo, de talento, suponho que nada surpreende que a sua vida nos surja cheia de amores mal correspondidos e contrariados, ou mesmo de amores impossíveis, o que ingénua é mais sério ainda, desde a ingénua priminha, a "menina dos olhos verdes" das juvenis andanças coimbrãs, o "singular esmalte de beleza", a Belisa das elegias, das éclogas e dos primeiros sonetos, até à decantada e ainda hoje desconhecida Natércia, que tantos cabelos brancos havia de fazer aos seus biógrafos. E se está hoje por completo posta de parte a lenda manifestamente infeliz, antipatriótica e derrotista, criada talvez com intuitos políticos, da sua indigência, e mesmo parece que essa outra bem maís formosa e romântica de ter chegado a erguer os olhais para a própria Infanta D. Maria, a tradição rigorosa dos seus amores infelizes mantem-se através da história, transparece segura dos seus versos justifica-lhe inteiramente vários passos mais desconcertantes da vida e é dada como ponto assente.

Procurando reconstituir o tipo ideal da Mulher que o Poeta teria desejado para si, que o Poeta teria sonhado, procurando estabelecer o cânon do que teria sido à Eva camoniana, Júlio Dantas, mestre da "Arte de Amar" e nosso comprovinciano a muitos títulos ilustre, dissertou um dia, no Teatro Lírico do Rio, sobre as "Mulheres que Camões amou". O intuito desta ë forçosamente mais restrito. Dos milhentos a mores do Épico, importa-nos, neste momento, apenas focar um. É esse o meu propósito e a ele me circunscrevo, visto que não desejo esquecer, antes de mais nada, que torna mister prender apenas a vossa atenção durante alguns minutos.

Pertencente a uma velha família fidalga, espalhada por vários pontos do Pais e mesmo do Algarve, onde os então alcaides-mores de Silves e de Lagos seriam seus parentes e em cujo Morgado de Boina, de um outro parente seu e segundo o parecer desse camonianista mago e bruxo que é o nosso querido Mário Saa, teria vindo refugiar-se em 1546, por virtude daqueles amores na Lusa-Atenas a que já fiz referência, o Poeta, "fidalgo cavaleiro da Casa Real" como aparece referido num documento descoberto por Juromenha, foi, a certa altura, recebido no Paço.

Honraria ambicionada por todos os vates e mesmo, mo, como e natural, por toda "a gente da época, parece não ter sido estranha à satisfação desse desejo de Camões, uma outra apaixonada sua, senhora casada de alta estirpe e de indiscutível seriedade, que teria achado desse modo a forma airosa e hábil de se ver livre da assiduidade comprometedora daquele amigo de seu marido e que, diga-se, antes de mais nada não ë ainda a mulher que nos interessa.

Essa, a algarvia que andou na vida de Camões, segue-se-lhe na ordem cronológica dos variadíssimos amores e surge-nos assim logo depois.

Era astro de primeira grandeza na Corte que o Poeta passará frequentar e, considerada uma das maiores belezas do seu tempo, naturalíssimo era também que todo esse brilho o deslumbrasse.

De resto, já o mesmo acontecera com outros poetas de segundo plano: Pedro de Andrade Caminha, rival do Épico em várias emergências, que lhe dedicou pela vida fora, algumas centenas de poesias em português e castelhano, que já então lhe consagrara aquele melífluo soneto em que se confessa

... "num puro amor todo desfeito." ...

e em cujo ciúme se podem certamente filiar muitas das suas atitudes infelizes e até o epigrama que a Camões dedicou:

"Tu dizes que o poeta> há de ter fúria";

D. Manuel de Portugal, amigo dedicado de Camões, a quem ela inspira nada menos de quarenta e cinco páginas de poesias de um cancioneiro manuscrito que existe na Biblioteca Nacional; Jorge de Montemor que largamente se lhe refere no livro quarto da sua famosa "Diana"; D. António de Almeida, vedor da casa da Rainha; D. Jorge de Menezes e sabe Deus quantos mais, cujos nomes, se pairaram algures sob os olhos azuis da musa singular, nem sequer tiveram a dita de chegar até aos nossos dias.

A tudo e a todos a beldade algarvia tinha ficado insensível. Dir-se-ia que o seu fino espírito sabia distinguir prodigiosamente o trigo do joio e parece ter sido com grande surpresa da corte e espanto de toda a gente, que essa mulher singular, até então inacessível, toda beleza, toda graça, toda superioridade e desdém, que mais parecia uma deusa descida pelo seu próprio pé do próprio Olimpo, considerada, depois da Rainha e das Infantas, a mais alta figura feminina do paço, se rendeu aos galanteios do Poeta, entretendo e mantendo com ele, não, talvez um amor material e arrebatado propriamente dito, mas uma "terna amizade-amorosa" na feliz expressão de Júlio Dantas, um amor misto de adoração, de admiração e de ternura, que o acompanhou durante sucessivos anos e que, pela unção espiritual que principalmente o caracteriza, constitui uma das mais belas páginas da vida atribulada de Camões.

Foi isto, foi este carinho, foi esse amor-amizade, amor-adoração, amor-ternura, talvez que sem arrebatamento, sem encontros comprometedores e sem loucuras, mas também, muito possivelmente, pela primeira vez correspondido de um modo leal e franco e tão necessário ao desconforto do seu viver, que o Épico encontrou na algarvia.

É esta a opinião mais rigorosamente fundamentada e temos que concordar que não é pouco.

No entanto, repare-se que Teófilo Braga vai mais longe. Para ele, Camões tao loucamente apaixonado estava pela nossa comprovinciana, que ela não é apenas a Musa inspiradora da maior parte das suas "Rimas". Ela não é apenas a "Categorizada Dama" em quem José Maria Rodrigues pretendeu ver a Infanta D. Maria e cuja lenda ficava dessa forma desfeita. Ela é bem alguma coisa de muito mais, pois que o Poeta, inebriado pela sua beleza e deslumbrado pelo brilho da situação que ela disfrutava, reconhece que "para merecer essa mulher ideal era preciso criar uma obra que se impusesse à atenção do Mundo". E quando a Rainha percebe que a sua dama predileta, estimada como uma filha, vai perdendo aquela serenidade olímpica em que sempre se mantivera, vitima do "abalo amoroso" que o Poeta lhe provocara e faz afastar este para o Ribatejo, '"parece que essa paixão empolgante, em que o Poeta se elevou ao mais extraordinário lirismo - é Teófilo que está falando - se transformou inteligentemente numa singela amizade, por um estimulo mais alto".

O Poeta, pouco tempo depois, regressa à Corte. O perigo, passado o momento crucial, estava conjurado. Nestas coisas de amor ou se triunfa logo ou não se vence nunca e a que fora e é ainda a sua grande paixão, caída já na realidade da grande diferença social, restituída a augusta serenidade que caracteriza todo o seu viver, transformando habilidosamente o amor arrebatado com amizade pura, "pela conversação leda e suave... sugeriu àquele génio criador, a Epopeia do "Peito Lusitano". E os galanteios deslumbrantes foram substituídos pela realização da Epopeia dos Descobrimentos Marítimos, para a qual os cronistas e os eruditos chamavam a atenção dos poetas".

E assim, minhas senhoras e meus senhores, na opinião do historiador e crítico e para legítimo orgulho nosso, a algarvia D. Francisca de Aragão - reparai que pela primeira vez vos digo o nome - branca, de olhos azuis, rosada e loira, cantada apaixonadamente por todos os vates do seu tempo, considerada, a beleza oficial da corte portuguesa nos reinados de D. João III e D. Sebastião, teria sido na vida do Épico, não apenas uma grande paixão e uma amizade sólida, o que já seria muito, mas, nem mais nem menos do que a grande Musa inspiradora de "Os Lusíadas".

Parece-me interessante dizer neste momento mais alguma coisa sobre esse notável vulto de mulher, que tendo sido "uma alta figura feminina de Portugal e de Espanha nos séculos XVI e XVII", no dizer do seu melhor biógrafo, o Dr. Queiroz Veloso, e também, sem contestação possível, a mais notável figura feminina nascida em terras algarvias.

D. Francisca de Aragão era filha de Nuno Rodrigues Barreto, alcaide-mor de Faro e vedor da fazenda do Algarve e veio ao mundo em 1536 ou 37,na casa apalaçada da Quinta de Quarteira que seu pai, com aqueles cargos, herdara de seus maiores. Por sua mãe era bisneta do rei D. João II, de Aragão, e Filipe II de Castela tratava-a por sobrinha. Muito nova veio D. Francisca para Lisboa, tendo entrado, com 12 ou 13 anos apenas, ao serviço da Rainha D. Catarina.

Esta, muito em breve tomava por ela uma estima verdadeiramente maternal.

Formosíssima, "loira, viva, esperta e azougada" no dizer de outro dos seus biógrafos, admirada e estimada por todos - ainda que, certamente, invejada por algumas - logo ela obteve na corte uma situação privilegiada e nela sua, vida decorreu serena e calma, aparte o delicioso romance mantido com Camões, a que já fiz referência e que lhe deu a principal coroa de glória, e as inflamadas paixões que despertou em todos os vates da época, a que já me referi também e que em seu louvor entreteceram um autêntico e substancioso cancioneiro.

D. Francisca conservou-se sempre superior a todos os galanteios. Apenas a Camões coube a suprema e merecida honra de lhe ter falado ao coração, mas por que esses amores tivessem tido a sina de enfileirar na lista dos amores infelizes de que o nosso Poeta parece ter tido o condão e foi eterna vítima, a nossa comprovinciana, sentindo-se adulada e feliz no seu estado, foi ficando solteira até aos 40 anos. A sua beleza, diz a tradição, manteve-se também fiel e perfeita. Parece que apenas uns ligeiros fios de prata fosca tinham passado a emoldurar-lhe o rosado ticianesco das faces e até mesmo no seu consórcio foi bafejada por boa estrela, pois, se não ocupou o tálamo principesco que chegou a estar-lhe preparado com um neto de D. Manuel, teve a dita de receber por marido o seu parente D. João de Borja, embaixador de Espanha, primeiro na corte portuguesa e depois na Alemanha, para onde D. Francisca o acompanhou como embaixatriz, e filho, nem mais nem menos, do que desse celebrado Duque de Gândia que, tendo declarado perante o cadáver da Imperatriz Isabel, mulher de. Carlos V, que jamais serviria amo que pudesse morrer, trocou os prazeres do mundo pela roupeta de jesuíta, veio a ser Geral da sua Companhia e subiu a graça dos altares sob o nome de S. Francisco de Borja. A nossa comprovinciana teve assim a honra de ser nora de um autêntico Santo, ainda hoje, como Padroeiro que é de Portugal, venerando nas nossas igrejas, facto aquele que - com bastante mágoa o reconheço - não aconteceu a qualquer outra e julgo não estar reservado a mais nenhuma das nossas, gentis patrícias, visto que até mesmo eu só tenho um filho e por muitos meus pecados não é natural que venha a morrer em cheiro de santidade...

Agraciada com os titulas de condessa de Mayalde e de Ficalho, D. Francisca teve ainda a dita de ser mãe do Príncipe de Esquilache, que foi vice-rei do Peru e um dos mais considerados poetas espanhóis do seu tempo. Lástima que este e seus irmãos, apesar de ricos e poderosos lhe não tivessem cumprido a última vontade. Era esta o ser sepultada, com seu esposo, na nossa igreja de S. Roque, a que tinha doado valiosíssimas relíquias e onde, na capela-mor do lado do Evangelho, lhe fora reservado um túmulo próprio que ainda lá existe. A lápide evoca-lhe o nome, como é fácil de verificar, mas apenas o marido lá se encontra. Falecida em Madrid, a 19 de Outubro de 1615, a nossa ilustre comprovinciana foi dormir o sono eterno no Colégio de Santo Inácio, em Valhadolide, jamais alguém se tendo preocupado em trazê-la para Portugal como era seu desejo, para junto da corte em que brilhara como astro de aurifulgente grandeza, para mais perto da província que teve a. honra de lhe ter sido berço e que ela por sua vez altamente honrou com o prestígio da sua situação, do seu nome, da sua beleza e até dos seus amores. E não sou eu apenas que o digo. Dada a minha conhecida mania algarbiófila seria, francamente, pouco. Mas ofereço-vos, para exemplo, esta intrincada quintilha do apaixonado Caminha:

"0 Algarve, onde nascestes
A mais honra levantastes,
Aragão c'o nome honrastes,
Portugal engrandecestes,
Porque nele vos criastes".

Foi esta algarvia que andou na vida de Camões. Conhecida já, certamente, de muitos que me escutam, nada do que aqui vos disse representa novidade para quem quer que seja, ou constitui fruto de ciência própria.

De resto, recordai que vos prometi apenas uma palestra de divulgação.

Mas ainda que, por esse facto, me considere quite com a vossa curiosidade e vosso carinhoso interesse, não quero terminar sem pôr em breves palavras o problema que também vos prometi no início e que, em boa verdade, nunca vi sequer esboçado por qualquer camonianista.

Camões, é geralmente sabido e foi durante muitos anos tido por incontroverso, sofreu perseguições na Índia. Governava-a então, como certamente sabeis, o nosso comprovinciano D. Francisco Barreto, farense que teria ficado a todos os títulos ilustre como grande capitão que era, se não tivesse a nódoa daquelas perseguições a empanar-lhe o brilho. A causa próxima de mais essa mal aventurança, atribui-se, geralmente, publicação das celebradas redondilhas dos "Disparates da India" e ainda a uma sátira em prosa dada a estampa na própria cidade de Goa, a quando das festas comemorativas da nomeação do mesmo Governador.

Camões, com aquela audácia e aquele inconformismo que caracteriza toda a sua vida, teria posto em verso e prosa panfletária, uma crítica acerba e cruel a coisas que por lá iam.

Até aqui tudo está bem.

Suponho, porém, que ainda nenhum dos biógrafos do Épico reparou devidamente na circunstancia importante de D. Francisco Barreto ser, nem mais nem menos, do que irmão do pai, e portanto, tio de D. Francisca de Aragão.

Teria o Poeta levado a sua irreverência e o seu arrojo até ao ponto de malquistar-se espontaneamente com o tio da bem-amada e da boa amiga que deixara em Portugal e a quem, ao que parece e segundo escreve Sabugosa, iria até por ela recomendado?

Não estaremos antes perante mais um triste resultado dos seus amores infelizes, perante uma má vontade muito de adrede criada pelo facto de ele se ter atrevido a erguer os olhos para tão "Categorizada Dama", cuja mão bem melhores partidos infrutiferamente disputavam e que era sobrinha do Governador sob cuja alçada agora se encontrava?

Não teriam sido antes os panfletos filhos dessa má vontade logo pressentida e não estará nessa atitude e naquele parentesco a chave da conhecida alusão ao

"injusto mando executado / Naquele, cuja Lira sonorosa / Ser mais afamada que ditosa."

que nos surge na estância 128 do Canto Décimo de "Os Lusíadas" e cuja decifração constitui ainda uma das incógnitas da vida atribulada do Poeta?

Agradecendo a atenção que se dignaram dispensar-me, não certamente por mim, mas por Camões, "Camões e a Algarvia", eis algumas interrogações que deixo aos estudiosos que me escutam.

Resumo detalhado e estruturado da conferência de Mário Lyster Franco:

1. Camões e os seus amores infelizes

Segundo Teófilo Braga, o amor foi o grande motor da vida de Camões.
Apesar de ter amado muitas mulheres, os seus amores foram, em geral, infelizes.
Camões era visto como um aventureiro e brigão, o que não agradava às famílias nobres da época.
Além disso, não era considerado bonito: ruivo, de nariz adunco e aparência desajeitada, seu principal atrativo era o seu trato e o talento poético. As suas paixões foram desde a juventude, em Coimbra, até musas enigmáticas, como a Natércia, inspiradora de muitos de seus versos.

2. A presença de D. Francisca de Aragão na vida de Camões

D. Francisca de Aragão era uma nobre algarvia, considerada uma das mulheres mais belas e influentes da corte de D. João III e D. Sebastião.
Diferente de outros poetas que a cortejavam, Camões conseguiu cativá-la, embora sua relação tenha sido descrita mais como uma "terna amizade-amorosa" do que um romance arrebatado.
O amor entre os dois teria sido intenso, mas sem comprometer a reputação da dama, que ocupava uma posição de destaque na corte.
Para Teófilo Braga, a relação com D. Francisca foi um grande estímulo para Camões: ele percebeu que precisava de criar uma obra grandiosa para estar à altura dela, o que teria levado à escrita de Os Lusíadas.

3. A separação de Camões e D. Francisca

A Rainha D. Catarina, ao perceber o envolvimento de sua dama de companhia com Camões, decidiu afastá-lo da corte, enviando-o para o Ribatejo.
O romance, transformou-se assim em amizade e respeito mútuo.
O afastamento do poeta não só evitou escândalos como também o direcionou para seu grande projeto épico.

4. A vida de D. Francisca após Camões

D. Francisca permaneceu solteira até os 40 anos, quando casou com D. João de Borja, embaixador da Espanha e filho de São Francisco de Borja.
Tornou-se condessa de Mayalde e Ficalho, acompanhando o marido em missões diplomáticas.
Faleceu em 1615, desejando ser sepultada em Lisboa, mas acabou sendo enterrada em Valladolid.

5. Uma possível ligação entre D. Francisca e as perseguições a Camões na Índia

O autor levanta a hipótese de que as dificuldades enfrentadas por Camões na Índia não tenham sido apenas resultado de suas sátiras, mas também da ligação com D. Francisca.
O governador da Índia na época, D. Francisco Barreto, era tio de D. Francisca.
Pode-se especular que ele tenha perseguido Camões por este ter ousado envolver-se com a sua nobre sobrinha.
O autor sugere que esta questão ainda não foi explorada a fundo pelos estudiosos e apresenta-a como uma possível nova interpretação dos infortúnios do poeta.



Teria, de resto, que efetuar leituras e investigações e que embrenhar-se em problemas que talvez então o tivessem interessado mas de que, face a outras preocupações do espírito, se sente de todo afastado no presente.

Sem quebra do respeito que merece o labor do falecido Mestre, julga saber, por exemplo, que o conceito teofiliano da inspiração de Os Lusíadas por D. Francisca de Aragão nunca alcançou perfeito beneplácito dos historiadores e dos críticos, tido como mais ou menos sempre foi cronologicamente inaceitável, e se reconhece que podia facilmente desenvolver o tema com numerosas transcrições poéticas, que dariam à publicação mais substância, mais conteúdo e maior volume e afivelariam mais profundamente não só a paixão camoniana,

Mas, porém, a que cuidados,


mas também a de toda a vasta corte dos poetas aduladores da "algarvia", confessa que já não teve paciência para o fazer.

De tudo quanto escreveu e deixa escrito, julga, pensa, calcula que só talvez apenas o problema que esboçou a volta de Disparates da índia, em que Camões, como que ao geito de revindicta, não teve dúvida em malquistar-se com o tio da sua idolatrada, seja o que permanece por esclarecer definitivamente e pode interessar ainda qualquer investigador que nanja ele.

Mas, seja como for! Se teve então apenas a pretensão de apresentar a sua palestra, primeiro, como que em galante "fait divers" para abrir uma noite de baile e, depois, como simples diversificação, mais ou menos poética, do fechar de uma exposição, não é agora, trinta anos depois, que vai transformá-la e desenvolvê-la, imbuindo-a, decerto que inutilmente, da seriedade de uma comunicação académica...

Camões, mesmo saneado como foi, não precisa - graças a Deus! - da sua achega para a imortalidade que possui. E de D. Francisca de Aragão, a quem os próprios herdeiros, não obstante as altas posições de que disfrutavam, como que sanearam também não lhe respeitando as últimas vontades, ficará para sempre, pelos tempos fora, a recordação, cheia de graça, de uma formosíssima donzela que foi o encanto das gentes do seu tempo.

E hoje, tal como outrora, haverá sempre uma mulher bonita para ser o enlevo de qualquer poeta e, apesar de tudo,' vamos lá, um pobre diabo como eu que, com muita ingenuidade então e sem pretensões agora, se disponha a recordar o facto.

"Amizade-amorosa", um misto de amor, de amizade, de admiração, de apreço e de ternura, perante a impossibilidade de um enlace, que mais podia Camões ter procurado e encontrado na lindíssima quarteirense?
Isso chegou para seu consolo!