Difference between revisions of "Canção escolhida"
(Created page with "Canção X Vinde cá, meu tão certo secretário dos queixumes que sempre ando fazendo, papel, com que a pena desafogo! As sem-razões digamos que, vivendo, me faz o inexo...") |
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+ | A '''canção camoniana''' consiste numa forma lírica que obedece a uma estrutura constante. Esta contém um número de estrofes regulares cujo número de versos varia entre sete e vinte, terminando com uma estrofe menor, correspondente ao envoi da balada francesa. Esta última estrofe servia para invocar a pessoa amada ou para condensar a temática do poema. A canção clássica recorre sempre ao metro <br />In: https://www.infopedia.pt/artigos/$cancao-camoniana<br /> | ||
− | Vinde cá, meu tão certo secretário | + | == '''Canção X''' - '''Vinde cá, meu tão certo secretário''' == |
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+ | '''Esta Canção''', que é justificadamente a mais famosa de quantas '''Camões''' escreveu, tem sido por todos os biógrafos considerada uma autobiografia sentimental. Embora muitos outros poemas contenham confidências biográficas, nenhuma outra composição tem por tema o relato da vida do Poeta, desde o nascimento até ao momento em que escreve.<br />'''Camões''', depois de um preâmbulo dramático, evoca o seu nascimento infeliz e relaciona os seus infortúnios com uma mulher, a quem chama ama, de quem depois viu a imagem e semelhança, e que todos os grandes desatinos fez a culpa soberba e soberana. Alude a dois perigos e à sua vida de peregrino vago e errante, e conclui com uma comovida recordação de um passado feliz e com o desejo de que o tempo pudesse voltar atrás como a memória. | ||
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− | + | Vinde cá, meu tão certo secretário<br /> | |
+ | dos queixumes que sempre ando fazendo,<br /> | ||
+ | papel, com que a pena desafogo!<br /> | ||
+ | As sem-razões digamos que, vivendo,<br /> | ||
+ | me faz o inexorável e contrário<br /> | ||
+ | Destino, surdo a lágrimas e a rogo.<br /> | ||
+ | Deitemos água pouca em muito fogo;<br /> | ||
+ | acenda-se com gritos um tormento<br /> | ||
+ | que a todas as memórias seja estranho.<br /> | ||
+ | Digamos mal tamanho<br /> | ||
+ | a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,<br /> | ||
+ | a quem já muitas vezes o contei,<br /> | ||
+ | tanto debalde como o conto agora;<br /> | ||
+ | mas, já que para errores fui nascido,<br /> | ||
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+ | Que, pois já de acertar estou tão fora,<br /> | ||
+ | não me culpem também, se nisto errei.<br /> | ||
+ | Sequer este refúgio só terei:<br /> | ||
+ | falar e errar sem culpa, livremente.<br /> | ||
+ | Triste quem de tão pouco está contente!<br /> | ||
− | Foi minha ama üa fera, que o destino não quis que mulher fosse a que tivesse tal nome para mim; nem a haveria. Assi criado fui, porque bebesse o veneno amoroso, de minino, que na maior idade beberia, e. por costume, não me mataria. Logo então vi a imagem e semelhança daquela humana fera tão fermosa, suave e venenosa, que me criou aos peitos da esperança; de quem eu vi despois o original, que de todos os grandes desatinos faz a culpa soberba e soberana. Parece-me que tinha forma humana, mas cintilava espíritos divinos. Um meneio e presença tinha tal na vista dela; a sombra, co a viveza, excedia o poder da Natureza. | + | O poeta dirige-se a um "secretário", pedindo-lhe para registar suas queixas e lamentações. Ele reconhece que as suas palavras são um desabafo inútil, já que o destino, insensível a suas lágrimas e súplicas, não mudará. No entanto, ele continua a falar de suas angústias, aceitando que falar sem encontrar solução é seu único refúgio. |
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+ | Já me desenganei que de queixar-me<br /> | ||
+ | não se alcança remédio; mas quem pena,<br /> | ||
+ | forçado lhe é gritar se a dor é grande.<br /> | ||
+ | Gritarei; mas é débil e pequena<br /> | ||
+ | a voz para poder desabafar-me,<br /> | ||
+ | porque nem com gritar a dor se abrande.<br /> | ||
+ | Quem me dará sequer que fora mande<br /> | ||
+ | lágrimas e suspiros infinitos<br /> | ||
+ | iguais ao mal que dentro n'alma mora?<br /> | ||
+ | Mas quem pode algü'hora<br /> | ||
+ | medir o mal com lágrimas ou gritos?<br /> | ||
+ | Enfim, direi aquilo que me ensinam<br /> | ||
+ | a ira, a mágoa, e delas a lembrança,<br /> | ||
+ | que é outra dor por si, mais dura e firme.<br /> | ||
+ | Chegai, desesperados, para ouvir-me,<br /> | ||
+ | e fujam os que vivem de esperança<br /> | ||
+ | ou aqueles que nela se imaginam,<br /> | ||
+ | porque Amor e Fortuna determinam<br /> | ||
+ | de lhe darem poder para entenderem,<br /> | ||
+ | à medida dos males que tiverem.<br /> | ||
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+ | O poeta reconhece que suas queixas não levam a nenhuma mudança, mas sente que é forçado a gritar, pois a dor interna é muito grande. Mesmo gritando, ele percebe que sua dor não pode ser aliviada, pois palavras e lágrimas são insuficientes para diminuir o sofrimento que ele carrega em sua alma. | ||
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+ | Quando vim da materna sepultura<br /> | ||
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+ | com ter livre alvedrio, mo não deram,<br /> | ||
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+ | As lágrimas da infância já manavam<br /> | ||
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+ | o som dos gritos, que no berço dava.<br /> | ||
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+ | porque quando, por caso, me embalavam,<br /> | ||
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+ | logo m adormecia a natureza,<br /> | ||
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+ | Camões reflete sobre seu nascimento, sugerindo que, desde o momento em que veio ao mundo, foi marcado pelo destino e pela infelicidade. Ele revela que, apesar de ter o livre arbítrio, foi forçado a seguir o caminho do sofrimento, em parte devido ao "Fado", a força do destino. Ele descreve sua infância como uma fase em que as lágrimas e os gritos eram inevitáveis, e a tristeza estava presente desde muito cedo. | ||
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+ | Foi minha ama üa fera, que o destino<br /> | ||
+ | não quis que mulher fosse a que tivesse<br /> | ||
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+ | Logo então vi a imagem e semelhança<br /> | ||
+ | daquela humana fera tão fermosa,<br /> | ||
+ | suave e venenosa,<br /> | ||
+ | que me criou aos peitos da esperança;<br /> | ||
+ | de quem eu vi despois o original,<br /> | ||
+ | que de todos os grandes desatinos<br /> | ||
+ | faz a culpa soberba e soberana.<br /> | ||
+ | Parece-me que tinha forma humana,<br /> | ||
+ | mas cintilava espíritos divinos.<br /> | ||
+ | Um meneio e presença tinha tal<br /> | ||
+ | na vista dela; a sombra, co a viveza,<br /> | ||
+ | excedia o poder da Natureza.<br /> | ||
+ | (...) | ||
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+ | O poeta compara sua ama a uma "fera", simbolizando uma figura materna cruel e impiedosa, que o alimentou com veneno emocional (o amor). Ele sugere que essa força, o amor, moldou sua vida, criando nele uma relação contraditória com a dor e a esperança. A "fera" que o criou foi a própria imagem do amor, cheia de beleza, mas também de veneno e sofrimento. |
Latest revision as of 13:32, 17 January 2025
A canção camoniana consiste numa forma lírica que obedece a uma estrutura constante. Esta contém um número de estrofes regulares cujo número de versos varia entre sete e vinte, terminando com uma estrofe menor, correspondente ao envoi da balada francesa. Esta última estrofe servia para invocar a pessoa amada ou para condensar a temática do poema. A canção clássica recorre sempre ao metro
In: https://www.infopedia.pt/artigos/$cancao-camoniana
Canção X - Vinde cá, meu tão certo secretário
Esta Canção, que é justificadamente a mais famosa de quantas Camões escreveu, tem sido por todos os biógrafos considerada uma autobiografia sentimental. Embora muitos outros poemas contenham confidências biográficas, nenhuma outra composição tem por tema o relato da vida do Poeta, desde o nascimento até ao momento em que escreve.
Camões, depois de um preâmbulo dramático, evoca o seu nascimento infeliz e relaciona os seus infortúnios com uma mulher, a quem chama ama, de quem depois viu a imagem e semelhança, e que todos os grandes desatinos fez a culpa soberba e soberana. Alude a dois perigos e à sua vida de peregrino vago e errante, e conclui com uma comovida recordação de um passado feliz e com o desejo de que o tempo pudesse voltar atrás como a memória.
Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
acenda-se com gritos um tormento
que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
a quem já muitas vezes o contei,
tanto debalde como o conto agora;
mas, já que para errores fui nascido,
vir este a ser um deles não duvido.
Que, pois já de acertar estou tão fora,
não me culpem também, se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
falar e errar sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!
O poeta dirige-se a um "secretário", pedindo-lhe para registar suas queixas e lamentações. Ele reconhece que as suas palavras são um desabafo inútil, já que o destino, insensível a suas lágrimas e súplicas, não mudará. No entanto, ele continua a falar de suas angústias, aceitando que falar sem encontrar solução é seu único refúgio.
Já me desenganei que de queixar-me
não se alcança remédio; mas quem pena,
forçado lhe é gritar se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
a voz para poder desabafar-me,
porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará sequer que fora mande
lágrimas e suspiros infinitos
iguais ao mal que dentro n'alma mora?
Mas quem pode algü'hora
medir o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim, direi aquilo que me ensinam
a ira, a mágoa, e delas a lembrança,
que é outra dor por si, mais dura e firme.
Chegai, desesperados, para ouvir-me,
e fujam os que vivem de esperança
ou aqueles que nela se imaginam,
porque Amor e Fortuna determinam
de lhe darem poder para entenderem,
à medida dos males que tiverem.
O poeta reconhece que suas queixas não levam a nenhuma mudança, mas sente que é forçado a gritar, pois a dor interna é muito grande. Mesmo gritando, ele percebe que sua dor não pode ser aliviada, pois palavras e lágrimas são insuficientes para diminuir o sofrimento que ele carrega em sua alma.
Quando vim da materna sepultura
de novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelices obrigado;
com ter livre alvedrio, mo não deram,
que eu conheci mil vezes na ventura
o milhor, e pior segui, forçado.
E, para que o tormento conformado
me dessem com a idade, quando abrisse
inda minino, os olhos, brandamente,
manda que, diligente,
um Minino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
com üa saudade namorada:
o som dos gritos, que no berço dava.
já como de suspiros me soava.
Co a idade e Fado estava concertado;
porque quando, por caso, me embalavam,
se versos de Amor tristes me cantavam,
logo m adormecia a natureza,
que tão conforme estava co a tristeza.
Camões reflete sobre seu nascimento, sugerindo que, desde o momento em que veio ao mundo, foi marcado pelo destino e pela infelicidade. Ele revela que, apesar de ter o livre arbítrio, foi forçado a seguir o caminho do sofrimento, em parte devido ao "Fado", a força do destino. Ele descreve sua infância como uma fase em que as lágrimas e os gritos eram inevitáveis, e a tristeza estava presente desde muito cedo.
Foi minha ama üa fera, que o destino
não quis que mulher fosse a que tivesse
tal nome para mim; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
o veneno amoroso, de minino,
que na maior idade beberia,
e. por costume, não me mataria.
Logo então vi a imagem e semelhança
daquela humana fera tão fermosa,
suave e venenosa,
que me criou aos peitos da esperança;
de quem eu vi despois o original,
que de todos os grandes desatinos
faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal
na vista dela; a sombra, co a viveza,
excedia o poder da Natureza.
(...)
O poeta compara sua ama a uma "fera", simbolizando uma figura materna cruel e impiedosa, que o alimentou com veneno emocional (o amor). Ele sugere que essa força, o amor, moldou sua vida, criando nele uma relação contraditória com a dor e a esperança. A "fera" que o criou foi a própria imagem do amor, cheia de beleza, mas também de veneno e sofrimento.