Canção escolhida
A canção camoniana consiste numa forma lírica que obedece a uma estrutura constante. Esta contém um número de estrofes regulares cujo número de versos varia entre sete e vinte, terminando com uma estrofe menor, correspondente ao envoi da balada francesa. Esta última estrofe servia para invocar a pessoa amada ou para condensar a temática do poema. A canção clássica recorre sempre ao metro
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Canção X
Vinde cá, meu tão certo secretário
Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
acenda-se com gritos um tormento
que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
a quem já muitas vezes o contei,
tanto debalde como o conto agora;
mas, já que para errores fui nascido,
vir este a ser um deles não duvido.
Que, pois já de acertar estou tão fora,
não me culpem também, se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
falar e errar sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!
O poeta dirige-se a um "secretário", pedindo-lhe para registar suas queixas e lamentações. Ele reconhece que as suas palavras são um desabafo inútil, já que o destino, insensível a suas lágrimas e súplicas, não mudará. No entanto, ele continua a falar de suas angústias, aceitando que falar sem encontrar solução é seu único refúgio.
Já me desenganei que de queixar-me
não se alcança remédio; mas quem pena,
forçado lhe é gritar se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
a voz para poder desabafar-me,
porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará sequer que fora mande
lágrimas e suspiros infinitos
iguais ao mal que dentro n'alma mora?
Mas quem pode algü'hora
medir o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim, direi aquilo que me ensinam
a ira, a mágoa, e delas a lembrança,
que é outra dor por si, mais dura e firme.
Chegai, desesperados, para ouvir-me,
e fujam os que vivem de esperança
ou aqueles que nela se imaginam,
porque Amor e Fortuna determinam
de lhe darem poder para entenderem,
à medida dos males que tiverem.
O poeta reconhece que suas queixas não levam a nenhuma mudança, mas sente que é forçado a gritar, pois a dor interna é muito grande. Mesmo gritando, ele percebe que sua dor não pode ser aliviada, pois palavras e lágrimas são insuficientes para diminuir o sofrimento que ele carrega em sua alma.
Quando vim da materna sepultura
de novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelices obrigado;
com ter livre alvedrio, mo não deram,
que eu conheci mil vezes na ventura
o milhor, e pior segui, forçado.
E, para que o tormento conformado
me dessem com a idade, quando abrisse
inda minino, os olhos, brandamente,
manda que, diligente,
um Minino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
com üa saudade namorada:
o som dos gritos, que no berço dava.
já como de suspiros me soava.
Co a idade e Fado estava concertado;
porque quando, por caso, me embalavam,
se versos de Amor tristes me cantavam,
logo m adormecia a natureza,
que tão conforme estava co a tristeza.
Camões reflete sobre seu nascimento, sugerindo que, desde o momento em que veio ao mundo, foi marcado pelo destino e pela infelicidade. Ele revela que, apesar de ter o livre arbítrio, foi forçado a seguir o caminho do sofrimento, em parte devido ao "Fado", a força do destino. Ele descreve sua infância como uma fase em que as lágrimas e os gritos eram inevitáveis, e a tristeza estava presente desde muito cedo.
Foi minha ama üa fera, que o destino
não quis que mulher fosse a que tivesse
tal nome para mim; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
o veneno amoroso, de minino,
que na maior idade beberia,
e. por costume, não me mataria.
Logo então vi a imagem e semelhança
daquela humana fera tão fermosa,
suave e venenosa,
que me criou aos peitos da esperança;
de quem eu vi despois o original,
que de todos os grandes desatinos
faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal
na vista dela; a sombra, co a viveza,
excedia o poder da Natureza.
(...)
4ª Estrofe:
O poeta compara sua ama a uma "fera", simbolizando uma figura materna cruel e impiedosa, que o alimentou com veneno emocional (o amor). Ele sugere que essa força, o amor, moldou sua vida, criando nele uma relação contraditória com a dor e a esperança. A "fera" que o criou foi a própria imagem do amor, cheia de beleza, mas também de veneno e sofrimento.
- Para saber mais:
Esta Canção, que é justificadamente a mais famosa de quantas Camões escreveu, tem sido por todos os biógrafos considerada uma autobiografia sentimental. Embora em muitos outros poemas se contenham confidências biográficas, nenhuma outra composição tem por tema o relato da vida do Poeta, desde o nascimento até ao momento em que escreve.
Camões, depois de um preâmbulo dramático, evoca o seu nascimento infeliz e relaciona os seus infortúnios com uma mulher, a quem chama ama, de quem depois viu a imagem e semelhança, e que todos os grandes desatinos fez a culpa soberba e soberana. Alude a dois perigos e à sua vida de peregrino vago e errante, e conclui com uma comovida recordação de um passado feliz e com o desejo de que o tempo pudesse voltar atrás como a memória.