Super Flumina - Redondilha - Luís de Camões

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Sôbolos rios que vão

SUPER FLUMINA ...

Sôbolos rios que vão
por Babilónia, m'achei,
onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e tudo bem comparado,
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Ali, lembranças contentes
n'alma se representaram,
e minhas cousas ausentes
se fizeram tão presentes
como se nunca passaram.
Ali, despois de acordado,
co rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa.

E vi que todos os danos
se causavam das mudanças
e as mudanças dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura,
o mal quão depressa vem,
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val,
que então se entende milhor
quanto mais perdido for;
vi o bem suceder mal,
e o mal, muito pior.
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
vi nenhum contentamento,
e vejo-me a mim, que espalho
tristes palavras ao vento.


O poeta, sentado à beira de rios que simbolizam o exílio em Babilônia, lamenta o passado feliz em Sião. Ele reflete sobre a transitoriedade da vida, como as mudanças do tempo trazem dor e arrependimento, e percebe  que o bem perdido se transforma em mágoa. Camões conclui que a felicidade é breve, o sofrimento inevitável, e confiar na sorte é um erro, restando-lhe apenas palavras lançadas ao vento.


(...) Este poema de Camões é uma meditação profundamente melancólica sobre o tempo, a perda e a desilusão da vida. Inspirado no Salmo 137 ("Super flumina Babylonis"), o poeta reflete sobre as saudades de um passado melhor e as dores do presente, traçando paralelos entre a condição dos exilados judeus em Babilônia e a sua própria experiência de sofrimento e saudade.

Principais temas e ideias: Saudade e nostalgia: O rio Babilônico simboliza o presente doloroso, enquanto Sião representa o passado feliz. O eu lírico, ao lembrar-se do que perdeu, experimenta uma saudade que transforma antigos prazeres em mágoas.

A fragilidade do tempo e das mudanças: O poema enfatiza como o tempo destrói esperanças e transforma o que era bom em sofrimento. O poeta percebe que o maior bem é valorizado apenas quando perdido.

Desilusão com a vida: O eu lírico conclui que o tempo traz enganos, a felicidade é breve, e confiar na sorte leva a um estado miserável. Mesmo as lições adquiridas vêm com arrependimento e dor.

Inutilidade do lamento: No final, o poeta reconhece que suas reflexões e palavras são "tristes palavras ao vento", simbolizando a impotência diante das forças implacáveis do tempo e da mudança.

Conclusão: O poema é uma obra-prima do lirismo camoniano, explorando temas universais como a transitoriedade da vida e a inutilidade de lutar contra as mudanças inevitáveis. A escrita expressa uma profunda tristeza existencial, mas também uma aceitação resignada da condição humana.


In:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000163.pdf

CAMÕES E AS REDONDILHAS “BABEL E SIÃO”: A POESIA DO EXÍLIO – por Manuel Simões

As redondilhas constituem, como se sabe, uma formosa paráfrase do salmo 137 do ”Livro dos Salmos” e apresentam uma estrutura que as divide em dois blocos (profano e sagrado)(...)
O texto camoniano é altamente polissémico e a sua descodificação não tem sido fácil. A controvérsia anda à volta da interpretação de Babilónia, Sião e Jerusalém, topónimos simbólicos que o poeta recupera do salmo. Começa a paráfrase, seguindo de perto a estrutura do salmo («Sôbolos rios que vão/ por Babilónia, m’achei», vv. 1-2). É, portanto, Babilónia («mal presente», v.9) o termo de comparação com outro tempo, outra realidade de crónica menos amarga. Ele próprio o diz de modo peremptório: «e tudo bem comparado,/ Babilónia ao mal presente,/ Sião ao tempo passado» (vv.8-10). Sendo assim, Babilónia só pode ser referente de desamor e, como tal, conotado por metáforas de maldição.
Sião é, pelo contrário, o segundo termo de comparação, o «tempo passado» que se contrapõe ao «mal presente»: daí «as lembranças de Sião» do v. 4. Este topónimo tem sido largamente associado ao platonismo camoniano, à teoria da reminiscência, passando a ser símbolo do “Céu”.(...)
Babilónia e Sião parecem ser, pois, os indicadores de maior relevância para a interpretação global de “Sôbolos rios”.