Odes escolhidas

From Wikipédia de Autores Algarvios
Jump to: navigation, search

SeparadorOdesCapa.jpg
Ode
Composição poética de assunto elevado, própria para ser cantada
Subgénero lírico cultivado, segundo modelos greco-latinos, desde o Renascimento até à época contemporânea, com os temas mais diversos (heroicos, amorosos, etc.) e esquemas métricos também diferentes, mas caracterizando-se pela eloquência, solenidade e elevação de estilo. In: Infopédia

Pode um desejo imenso


Pode um desejo imenso
arder no peito tanto
que à branda e a viva alma o fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto,
e purifique em tanta alteza o esprito
com olhos imortais
que faz que leia mais do que vê escrito.

Que a flama que se acende
alto tanto alumia
que, se o nobre desejo ao bem se estende
que nunca viu, a sente claro dia;
e lá vê do que busca o natural,
a graça, a viva cor,
noutra espécie melhor que a corporal.

Pois vós, ó claro exemplo
de viva formosura,
que de tão longe cá noto e contemplo
n'alma, que este desejo sobe e apura:
não creais que não vejo aquela imagem
que as gentes nunca vêem,
se de humanos não têm muita vantagem.

Que, se os olhos ausentes
não vêem a compassada
proporção, que das cores excelentes
de pureza e vergonha é variada;
da qual a Poesia, que cantou
até aqui só pinturas,
com mortais formosuras igualou;

se não vêem os cabelos
que o vulgo chama de ouro,
e se não vêem os claros olhos belos,
de quem cantam que são do Sol tesouro,
e se não vêem do rosto as excelências,
a quem dirão que deve
rosa, cristal e neve as aparências;

veem logo a graça pura,
a luz alta e severa,
que é raio da divina formosura
que n'alma imprime e fora reverbera,
assim como cristal do Sol ferido,
que por fora derrama
a recebida flama, esclarecido.

E vêem a gravidade
com a viva alegria,
que misturada tem, de qualidade
que üa da outra nunca se desvia;
nem deixa üa de ser arreceada
por leda e por suave,
nem outra, por ser grave, muito amada.

E vêem do honesto siso
os altos resplandores,
temperados co doce e ledo riso,
a cujo abrir abrem no campo as flores;
as palavras discretas e suaves,
das quais o movimento
fará deter o vento e as altas aves;

dos olhos o virar,
que torna tudo raso,
do qual não sabe o engenho divisar
se foi por artifício, ou feito acaso;
da presença os meneios e a postura,
o andar e o mover-se,
donde pode aprender-se fermosura.

Aquele não sei que,
que aspira não sei como,
que, invisível saindo, a vista o vê,
mas para o compreender não acha tomo;
o qual toda a Toscana poesia,
que mais Febo restaura,
em Beatriz nem em Laura nunca via;

em vos a nossa idade,
Senhora, o pode ver,
se engenho e ciência e habilidade
igual a fermosura vossa der,
como eu vi no meu longo apartamento,
qual em ausência a vejo.
Tais asas dá o desejo ao pensamento!

Pois se o desejo afina
üa alma acesa tanto
que por vós use as partes da divina,
por vós levantarei não visto canto
que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante;
que o nosso claro Tejo
envolto um pouco vejo e dissonante.

O campo não o esmaltam
flores, mas só abrolhos
o fazem feio; e cuido que lhe faltam
ouvidos para mim, para vós olhos.
Mas faça o que quiser o vil costume;
que o sol, que em vós está,
na escuridão dará mais claro lume.


Nesta ode, Camões reflete sobre o poder do desejo e da contemplação espiritual. Ele descreve como um desejo profundo e elevado pode purificar a alma, permitindo ao espírito transcender as limitações materiais e alcançar uma visão mais sublime e divina.
O poeta dirige-se a uma figura feminina idealizada, cuja beleza não é apenas física, mas também espiritual e transcendente. Elogia as suas qualidades, destacando uma harmonia única entre gravidade, alegria, honestidade e doçura. A sua presença é descrita como irradiando uma luz divina, que inspira e eleva aqueles que a contemplam.
Camões lamenta a ausência física dessa figura, mas celebra como o desejo permite que ele a veja e sinta mesmo à distância. Ele promete cantar a sua beleza e virtudes num poema que transcenderá fronteiras, sendo ouvido em rios famosos como o Tejo, o Tibre e o Bétis.
No final, critica o "vil costume" que obscurece o reconhecimento do valor e da beleza verdadeira, mas confia que a luz divina representada por essa figura superará qualquer escuridão.

Temas principais: O desejo como força de purificação e elevação espiritual.
A idealização da beleza divina e sua manifestação terrena.
A transcendência da ausência física por meio do pensamento e da poesia.
A crítica à ignorância do mundo e a celebração da virtude que resplandece na escuridão.


Prática recomendada para uma boa leitura:
1. Ler em voz alta cada estrofe pausadamente.
2. Variar a intensidade, respeitando as sugestões da emoção.
3. Gravar-se lendo e ouvir a gravação para ajustar o ritmo e as pausas.

Por exemplo:

Estrofe de abertura:

"Pode um desejo imenso
arder no peito tanto
que à branda e a viva alma o fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto,
e purifique em tanta alteza o esprito
com olhos imortais
que faz que leia mais do que vê escrito."

1. Começar com um tom contemplativo e intenso para expressar o impacto do "desejo imenso".
2. Fazer uma pausa leve após "imenso" e "tanto" para criar ritmo.
3. Aumentar o ênfase em "fogo intenso" e "olhos imortais" para destacar a força das imagens.
4. Ler "Pode um desejo imenso" com tom ascendente.
5. No verso "que faz que leia mais do que vê escrito", usar um tom reverente e finalizador.

  • Para saber mais:

Livro Pode Um Desejo Imenso de Frederico Lourenço

Pode Um Desejo Imenso conta a história de Nuno Galvão, professor universitário de Literatura, que pensa ter descoberto a chave para a compreensão da poesia lírica de Camões: a paixão do poeta pelo jovem D. António de Noronha, de quem Camões teria sido precetor. Nuno está ele próprio apaixonado por um estudante, em quem projeta a história de amor por si imaginada entre o poeta quinhentista e o seu aluno. Na parte central do livro, a narrativa volta atrás, aos tempos em que o próprio Nuno era estudante, já nessa altura ocupado com a poesia lírica de Camões e com a paixão não correspondida por um colega de curso. No final do romance, juntam-se os vários fios da história; e Nuno acaba por aprender como rumar «em direção à outra margem», onde se abre a hipótese possível de um amor feliz.
Vinte anos depois da primeira edição, esta é a versão definitiva de Pode Um Desejo Imenso, como é desejo do autor.
Quetzal, 2022