Aquela Cativa - Redondilha - Luís de Camões
(Endechas a uma cativa com quem andava de amores na Índia, chamada Bárbara)
Aquela cativa
Aquela cativa,
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
nem no céu estrelas,
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.
üa graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbara não.
Presença serena
que a tormenta amansa;
nela enfim descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo,
e, pois nela vivo,
é força que viva.
Endechas- Composição poética, fúnebre ou triste, geralmente em estrofes de cinco ou seis sílabas.
Neste poema, o eu lírico descreve sua amada, que, apesar de ser "cativa" dele, também é dona de seu coração, mantendo-o preso ao seu encanto. Ele fala da sua beleza única, especialmente dos seus olhos sossegados e dos cabelos pretos, que, embora os outros possam achar que o loiro seja mais belo, para ele são incomparáveis. O amor que sente por ela é descrito como uma "pretidão de Amor", algo doce e envolvente, que transforma sua tristeza em calma. A sua presença é capaz de "amansar a tormenta", dando-lhe paz. A amada, apesar de ser descrita como algo "estranha", é perfeita para ele, e o poeta vê-se completamente cativo da sua beleza e presença serena.
- Poema de Nuno Júdice sobre o mesmo tema:
Quem és tu, bárbara, que moras
Quem és tu, bárbara, que moras
num poema que se estuda nas escolas
e se lê em recitais,
- tu que te limitaste a ser amada
por um poeta que, se calhar, mais
não te deu em troca do amor
do que esse poema que tu, se calhar,
nunca chegaste a ouvir? Quem és,
ninguém sabe nada - a não ser
que te amou, e te deitou nesse
poema em que ainda vives, e respiras
como no dia em que ele o escreveu
lembrando-se do teu corpo, e dos
teus lábios, e dos dias, ou noites,
que contigo se passaram? Quem és,
mulher real e sonhada que habitas
todos os poemas que esse poema
inspirou, e todos os sonhos que
nessa bárbara encontraram uma imagem
precisa e definitiva? volta-te
nesses versos, para que te vejamos
o rosto, e diz-nos o teu nome o nome
autêntico, e não esse que o poeta
inventou para te chamar num poema
que de ti só guarda o segredo;
e adormece depois, esquecendo
o que de ti disseram, e os comentários
de que foste o pretexto, e as imagens
em que, cada vez mais, foste perdendo
a tua, e única, imagem.
in
Júdice, Nuno. "Um Canto na Espessura do Tempo", 1992
Num claro diálogo com a lírica camoniana, Júdice reinventa neste poema a figura icónica de Bárbara, de " Endechas a Bárbara escrava ".
Bárbara, antítese do estereótipo de beleza petrarquista, é apresentada no poema camoniano como um exemplo de beleza singular, tanto física como psicologicamente, numa clara transgressão dos códigos sociais e culturais da época. No entanto, o sujeito poético considera que essa é também uma imagem idealizada, interpelando, então, a figura feminina para que se revele sem máscaras, para que deixe de ser a mulher objeto estudada nas aulas de Português.
Assim, apesar da evidente evocação do nosso património cultural, o sujeito poético não deixa de tentar resgatar aquela cativa do poema camoniano, elevando-a a uma figura com individualidade própria, que é mais do que a mera musa de Camões, Bárbara deve deixar de ser " camoniana ", para ser ela própria, talvez até com outro nome, o seu real.
A apóstrofe, verso 1, revela a interpelação à figura feminina, reforçada pelas interrogações retóricas em segmentos anafóricos ( " Quem és tu? " ), reveladoras da curiosidade do sujeito poético em saber a verdade sobre aquela mulher.
A enumeração dos momentos íntimos partilhados entre Camões e esta mulher, versos 10-12, provam a relação intensa entre eles vivida.
O uso expressivo do adjetivo realça a caracterização desta mulher, mais concretamente as duas dimensões em que é construída - a real e a sonhada - " mulher real e sonhada que habitas / todos os poemas que esse poema / inspirou ".
O uso do imperativo acentua o apelo à figura feminina - " Volta-te/ nesses versos " - para que se revele sem as máscaras que sobre ela foram sendo construída.
In:
https://quizlet.com/pt/290569645/nuno-judice-flash-cards/