Difference between revisions of "Nietzsche, Friedrich - Livros Proibidos"

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*'''Friedrich Nietzsche'''
 
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Leitura - O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche
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    O que é bom? – Tudo quanto aumenta no homem o sentimento do poder, a vontade para o poder, o próprio poder.
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    O que é mau? – Tudo quanto procede da fraqueza.
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    O que é a felicidade? – O sentimento com que o poder se engrandece, - com que se vence uma resistência.
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    Não contentamento, senão mais poder; não paz antes de tudo, senão guerra; não virtude, senão valor, virtude (no sentido do Renascimento, virtu(1), virtude desvinculada de moralismos).
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    Pereçam os fracos e os fracassados: primeiro princípio do nosso amor ao homem. E até cumpre ajudá-los nisso.
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    O que é mais nocivo do que qualquer vício? – A piedade da acção com os fracassados e com os fracos: – o cristianismo.
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1 – “Vir”, em latim, significa “varão”, “homem”. Ou seja, “virtu”, neste “sentido da Renascença”, designa qualidades viris como força, bravura, vigor, coragem, e não humildade, compaixão, etc
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                                                                            O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche
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Pelo que aqui se entende como progresso, a humanidade certamente não representa uma evolução em direção a algo melhor, mais forte ou mais elevado. Este “progresso” é apenas uma idéia moderna, ou seja, uma idéia falsa. O Europeu de hoje, em sua essência, possui muito menos valor que o Europeu da Renascença; o processo da evolução não significa necessariamente elevação, melhora, fortalecimento. É bem verdade que ela tem sucesso em casos isolados e individuais em várias partes da Terra e sob as mais variadas culturas, e nesses casos certamente se manifesta um tipo superior; um tipo que, comparado ao resto da humanidade, parece uma espécie de super-homem. Tais golpes de sorte sempre foram possíveis e, talvez, sempre serão. Até mesmo raças inteiras, tribos e nações podem ocasionalmente representar tais ditosos acidentes.
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Não devemos enfeitar nem embelezar o cristianismo: ele travou uma guerra de morte contra este tipo de homem superior, anatematizou todos os instintos mais profundos desse tipo, destilou seus conceitos de mal e de maldade personificada a partir desses instintos – o homem forte como um réprobo, como “degredado entre os homens”. O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo e fracassado; forjou seu ideal a partir da oposição a todos os instintos de preservação da vida saudável; corrompeu até mesmo as faculdades daquelas naturezas intelectualmente mais vigorosas, ensinando que os valores intelectuais elevados são apenas pecados, descaminhos, tentações. O exemplo mais lamentável: o corrompimento de Pascal, o qual acreditava que seu intelecto havia sido destruído pelo pecado original, quando na verdade tinha sido destruído pelo cristianismo!
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Chama-se cristianismo a religião da compaixão. – A compaixão está em oposição a todas as paixões tónicas que aumentam a intensidade do sentimento vital: tem ação depressora. O homem perde poder quando se compadece. Através da perda de força causada pela compaixão o sofrimento acaba por multiplicar-se. O sofrimento torna-se contagioso através da compaixão; sob certas circunstancias pode levar a um total sacrifício da vida e da energia vital – uma perda totalmente desproporcional à magnitude da causa (– o caso da morte de Nazareno). Essa é uma primeira perspectiva; há, entretanto, outra mais importante. Medindo os efeitos da compaixão através da intensidade das reações que produz, sua periculosidade à vida mostra-se sob uma luz muito mais clara. A compaixão contraria inteiramente lei da evolução, que é a lei da seleção natural. Preserva tudo que está maduro para perecer; luta em prol dos desterrados e condenados da vida; e mantendo vivos malogrados de todos os tipos, dá à própria vida um aspecto sombrio e dúbio. A humanidade ousou denominar a compaixão uma virtude (– em todo sistema de moral superior ela aparece como uma fraqueza –); indo mais adiante, chamaram-na a virtude, a origem e fundamento de todas as outras virtudes – mas sempre mantenhamos em mente que esse era o ponto de vista de uma filosofia niilista, em cujo escudo há a inscrição negação da vida. Schopenhauer estava certo nisto: através a compaixão a vida é negada, e tornada digna de negação – a compaixão é uma técnica de niilismo. Permita-me repeti-lo: esse instinto depressor e contagioso opõe-se a todos os instintos que se empenham na preservação e aperfeiçoamento da vida: no papel de defensor dos miseráveis, é um agente primário na promoção da decadência – compaixão persuade à extinção... É claro, ninguém diz “extinção”: dizem “o outro mundo”, “Deus”, “a verdadeira vida”, Nirvana, salvação, bem-aventurança... Essa inocente retórica do reino da idiossincrasia moral-religiosa mostra-se muito menos inocente quando se percebe a tendência que oculta sob palavras sublimes: a tendência à destruição da vida.
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                                                                            O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche
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Não subestimemos este facto: que nós mesmos, nós, espíritos livres, já somos a “transmutação de todos os valores”, uma manifesta declaração de guerra e uma vitória contra todos os velhos conceitos de “verdadeiro” e “falso”. As intuições mais valiosas são as mais tardiamente adquiridas; as mais valiosas de todas são aquelas que determinam os métodos. Todos os métodos, todos os princípios do espírito científico de hoje foram alvo, por milhares de anos, do mais profundo desprezo; caso um homem se interessasse por eles era excluído da sociedade das pessoas “decentes” – passava por “inimigo de Deus”, por zombador da verdade, por “possesso”. Enquanto homem da ciência, pertencia à Chandala (1)... Tivemos contra nós toda a patética estupidez da humanidade – toda a noção que tinham do que a verdade deveria ser, de qual deveria ser a função da verdade – todo o seu “tu deves” era arremessado contra nós... Nossos objetivos, nossos métodos, nossa calma, cautela, desconfiança – para eles tudo isso parecia algo absolutamente indecoroso e desprezível. – Olhando para trás, alguém até poderia perguntar-se, com alguma razão, se não foi, na verdade, um senso estético que manteve os homens cegos por tanto tempo: o que exigiam da verdade era uma eficiência pitoresca, e daquele em busca do conhecimento uma forte impressão sobre seus sentidos. Foi nossa modéstia que por tanto tempo lhes desceu a contragosto... Quão bem o adivinharam, esses pavões da divindade!
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1 – Chandala é a casta mais baixa no sistema hindu. (N. do T)
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A concepção cristã de Deus – Deus o como protetor dos doentes, o Deus que tece teias de aranha, o Deus na forma de espírito – é uma das concepções mais corruptas que jamais apareceram no mundo: provavelmente representa o nível mais ínfero da declinante evolução do tipo divino. Um Deus que se degenerou em uma contradição da vida. Em vez de ser sua própria glória e eterna afirmação! Nele declara-se guerra à vida, à natureza, à vontade de viver! Deus transforma-se na fórmula para todas calúnias contra o “aqui e agora” e para cada mentira sobre “além”! Nele o nada é divinizado e a vontade do nada se faz sagrada!...
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                                                                          O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche
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Em minha condenação do cristianismo certamente espero não injustiçar uma religião análoga que possui um número ainda maior de seguidores: aludo ao budismo. Ambas devem ser consideradas religiões niilistas – são religiões da décadence – mas distinguem-se de um modo bastante notável. Pelo simples fato de poder compará-las, o crítico do Cristianismo está em débito com os estudiosos da Índia. – O budismo é cem vezes mais realista que o cristianismo – é parte de sua herança de vida ser capaz de encarar problemas de modo objetivo e impassível; é o produto de longos séculos de especulação filosófica. O conceito “Deus” já havia se estabelecido antes dele surgir. O budismo é a única religião genuinamente positiva que pode ser encontrada na História, e isso se aplica até mesmo à sua epistemologia (que é um fenomenalismo estrito) – ele não fala sobre “a luta contra o pecado”, mas, rendendo-se à realidade, diz “a luta contra o sofrimento”. Diferenciando-se nitidamente do cristianismo, coloca a autodecepção que existe nos conceitos morais por detrás de si; isso significa, em minha linguagem, além do bem e do mal. – Os dois factos fisiológicos nos quais se apóia e aos quais direciona a maior parte de sua atenção são: primeiro, uma excessiva sensibilidade à sensação que se manifesta através de uma refinada suscetibilidade ao sofrimento; segundo, uma extraordinária espiritualidade, uma preocupação muito prolongada com os conceitos e com os procedimentos lógicos, sob a influência da qual o instinto de personalidade submete-se à noção de “impessoalidade” (– ambos esses estados serão familiares a alguns de meus leitores, os objetivistas, por experiência própria, assim como são para mim). Esses estados fisiológicos produzem uma depressão, e Buda tentou combatê-la através de medidas higiénicas. Prescreveu a vida ao ar livre, a vida nómada; moderação na alimentação e uma cuidadosa seleção dos alimentos; prudência em relação ao uso de intoxicantes; igual cautela em relação a quaisquer paixões que induzem comportamentos biliosos e aquecimento do sangue; finalmente, não se preocupar nem consigo nem com os outros. Encoraja idéias que produzam serenidade ou alegria – e encontra meios de combater as idéias de outros tipos. Entende o bem, o estado de bondade, como algo que promove a saúde. A oração não está inclusa, e nem o asceticismo. Não há um imperativo categórico ou qualquer disciplina, mesmo dentro dos monastérios (– dos quais é sempre permitido sair –). Todas essas coisas seriam simplesmente meios para aumentar aquela excessiva sensibilidade supramencionada. Pelo mesmo motivo não advoga qualquer conflito contra os incrédulos; seus ensinamentos não antagonizam nada senão a vingança, a aversão, o ressentimento (– “inimizade nunca põe fim à inimizade”: o refrão que move o budismo...) E nisso tudo estava correto, pois são precisamente essas paixões que, na perspectiva de seu principal objetivo regimental, são insalubres. A fadiga mental que apresenta, já claramente evidenciada pelo excesso de “objetividade” (isto é, a perda do interesse em si mesmo, a perda do equilíbrio e do “egoísmo”), é combatida por vigorosos esforços a fim de levar os interesses espirituais de volta ao ego. Nos ensinamentos de Buda o egoísmo é um dever. A “única coisa necessária”, a questão “como posso me libertar do sofrimento”, é o que rege e determina toda a dieta espiritual (– talvez alguém lembrar-se-á daquele ateniense que também declarou guerra ao “cientificismo” puro, a saber, Sócrates, que também elevou o egoísmo à condição de princípio moral).
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                                                                    O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche
  
 
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Revision as of 12:54, 5 February 2024

FriedrichNietzsche.jpg

  • Friedrich Nietzsche

Leitura - O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche

II

    O que é bom? – Tudo quanto aumenta no homem o sentimento do poder, a vontade para o poder, o próprio poder.
    O que é mau? – Tudo quanto procede da fraqueza.
    O que é a felicidade? – O sentimento com que o poder se engrandece, - com que se vence uma resistência.
    Não contentamento, senão mais poder; não paz antes de tudo, senão guerra; não virtude, senão valor, virtude (no sentido do Renascimento, virtu(1), virtude desvinculada de moralismos).
    Pereçam os fracos e os fracassados: primeiro princípio do nosso amor ao homem. E até cumpre ajudá-los nisso. 
    O que é mais nocivo do que qualquer vício? – A piedade da acção com os fracassados e com os fracos: – o cristianismo.

____________________________ 1 – “Vir”, em latim, significa “varão”, “homem”. Ou seja, “virtu”, neste “sentido da Renascença”, designa qualidades viris como força, bravura, vigor, coragem, e não humildade, compaixão, etc

                                                                           O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche







IV Pelo que aqui se entende como progresso, a humanidade certamente não representa uma evolução em direção a algo melhor, mais forte ou mais elevado. Este “progresso” é apenas uma idéia moderna, ou seja, uma idéia falsa. O Europeu de hoje, em sua essência, possui muito menos valor que o Europeu da Renascença; o processo da evolução não significa necessariamente elevação, melhora, fortalecimento. É bem verdade que ela tem sucesso em casos isolados e individuais em várias partes da Terra e sob as mais variadas culturas, e nesses casos certamente se manifesta um tipo superior; um tipo que, comparado ao resto da humanidade, parece uma espécie de super-homem. Tais golpes de sorte sempre foram possíveis e, talvez, sempre serão. Até mesmo raças inteiras, tribos e nações podem ocasionalmente representar tais ditosos acidentes.

                                                                           O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche











V

Não devemos enfeitar nem embelezar o cristianismo: ele travou uma guerra de morte contra este tipo de homem superior, anatematizou todos os instintos mais profundos desse tipo, destilou seus conceitos de mal e de maldade personificada a partir desses instintos – o homem forte como um réprobo, como “degredado entre os homens”. O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo e fracassado; forjou seu ideal a partir da oposição a todos os instintos de preservação da vida saudável; corrompeu até mesmo as faculdades daquelas naturezas intelectualmente mais vigorosas, ensinando que os valores intelectuais elevados são apenas pecados, descaminhos, tentações. O exemplo mais lamentável: o corrompimento de Pascal, o qual acreditava que seu intelecto havia sido destruído pelo pecado original, quando na verdade tinha sido destruído pelo cristianismo!

                                                                           O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche









VII Chama-se cristianismo a religião da compaixão. – A compaixão está em oposição a todas as paixões tónicas que aumentam a intensidade do sentimento vital: tem ação depressora. O homem perde poder quando se compadece. Através da perda de força causada pela compaixão o sofrimento acaba por multiplicar-se. O sofrimento torna-se contagioso através da compaixão; sob certas circunstancias pode levar a um total sacrifício da vida e da energia vital – uma perda totalmente desproporcional à magnitude da causa (– o caso da morte de Nazareno). Essa é uma primeira perspectiva; há, entretanto, outra mais importante. Medindo os efeitos da compaixão através da intensidade das reações que produz, sua periculosidade à vida mostra-se sob uma luz muito mais clara. A compaixão contraria inteiramente lei da evolução, que é a lei da seleção natural. Preserva tudo que está maduro para perecer; luta em prol dos desterrados e condenados da vida; e mantendo vivos malogrados de todos os tipos, dá à própria vida um aspecto sombrio e dúbio. A humanidade ousou denominar a compaixão uma virtude (– em todo sistema de moral superior ela aparece como uma fraqueza –); indo mais adiante, chamaram-na a virtude, a origem e fundamento de todas as outras virtudes – mas sempre mantenhamos em mente que esse era o ponto de vista de uma filosofia niilista, em cujo escudo há a inscrição negação da vida. Schopenhauer estava certo nisto: através a compaixão a vida é negada, e tornada digna de negação – a compaixão é uma técnica de niilismo. Permita-me repeti-lo: esse instinto depressor e contagioso opõe-se a todos os instintos que se empenham na preservação e aperfeiçoamento da vida: no papel de defensor dos miseráveis, é um agente primário na promoção da decadência – compaixão persuade à extinção... É claro, ninguém diz “extinção”: dizem “o outro mundo”, “Deus”, “a verdadeira vida”, Nirvana, salvação, bem-aventurança... Essa inocente retórica do reino da idiossincrasia moral-religiosa mostra-se muito menos inocente quando se percebe a tendência que oculta sob palavras sublimes: a tendência à destruição da vida.

                                                                           O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche




XIII

Não subestimemos este facto: que nós mesmos, nós, espíritos livres, já somos a “transmutação de todos os valores”, uma manifesta declaração de guerra e uma vitória contra todos os velhos conceitos de “verdadeiro” e “falso”. As intuições mais valiosas são as mais tardiamente adquiridas; as mais valiosas de todas são aquelas que determinam os métodos. Todos os métodos, todos os princípios do espírito científico de hoje foram alvo, por milhares de anos, do mais profundo desprezo; caso um homem se interessasse por eles era excluído da sociedade das pessoas “decentes” – passava por “inimigo de Deus”, por zombador da verdade, por “possesso”. Enquanto homem da ciência, pertencia à Chandala (1)... Tivemos contra nós toda a patética estupidez da humanidade – toda a noção que tinham do que a verdade deveria ser, de qual deveria ser a função da verdade – todo o seu “tu deves” era arremessado contra nós... Nossos objetivos, nossos métodos, nossa calma, cautela, desconfiança – para eles tudo isso parecia algo absolutamente indecoroso e desprezível. – Olhando para trás, alguém até poderia perguntar-se, com alguma razão, se não foi, na verdade, um senso estético que manteve os homens cegos por tanto tempo: o que exigiam da verdade era uma eficiência pitoresca, e daquele em busca do conhecimento uma forte impressão sobre seus sentidos. Foi nossa modéstia que por tanto tempo lhes desceu a contragosto... Quão bem o adivinharam, esses pavões da divindade! ________________________________________ 1 – Chandala é a casta mais baixa no sistema hindu. (N. do T)

                                                                          O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche






XVIII A concepção cristã de Deus – Deus o como protetor dos doentes, o Deus que tece teias de aranha, o Deus na forma de espírito – é uma das concepções mais corruptas que jamais apareceram no mundo: provavelmente representa o nível mais ínfero da declinante evolução do tipo divino. Um Deus que se degenerou em uma contradição da vida. Em vez de ser sua própria glória e eterna afirmação! Nele declara-se guerra à vida, à natureza, à vontade de viver! Deus transforma-se na fórmula para todas calúnias contra o “aqui e agora” e para cada mentira sobre “além”! Nele o nada é divinizado e a vontade do nada se faz sagrada!...

                                                                          O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche











XX Em minha condenação do cristianismo certamente espero não injustiçar uma religião análoga que possui um número ainda maior de seguidores: aludo ao budismo. Ambas devem ser consideradas religiões niilistas – são religiões da décadence – mas distinguem-se de um modo bastante notável. Pelo simples fato de poder compará-las, o crítico do Cristianismo está em débito com os estudiosos da Índia. – O budismo é cem vezes mais realista que o cristianismo – é parte de sua herança de vida ser capaz de encarar problemas de modo objetivo e impassível; é o produto de longos séculos de especulação filosófica. O conceito “Deus” já havia se estabelecido antes dele surgir. O budismo é a única religião genuinamente positiva que pode ser encontrada na História, e isso se aplica até mesmo à sua epistemologia (que é um fenomenalismo estrito) – ele não fala sobre “a luta contra o pecado”, mas, rendendo-se à realidade, diz “a luta contra o sofrimento”. Diferenciando-se nitidamente do cristianismo, coloca a autodecepção que existe nos conceitos morais por detrás de si; isso significa, em minha linguagem, além do bem e do mal. – Os dois factos fisiológicos nos quais se apóia e aos quais direciona a maior parte de sua atenção são: primeiro, uma excessiva sensibilidade à sensação que se manifesta através de uma refinada suscetibilidade ao sofrimento; segundo, uma extraordinária espiritualidade, uma preocupação muito prolongada com os conceitos e com os procedimentos lógicos, sob a influência da qual o instinto de personalidade submete-se à noção de “impessoalidade” (– ambos esses estados serão familiares a alguns de meus leitores, os objetivistas, por experiência própria, assim como são para mim). Esses estados fisiológicos produzem uma depressão, e Buda tentou combatê-la através de medidas higiénicas. Prescreveu a vida ao ar livre, a vida nómada; moderação na alimentação e uma cuidadosa seleção dos alimentos; prudência em relação ao uso de intoxicantes; igual cautela em relação a quaisquer paixões que induzem comportamentos biliosos e aquecimento do sangue; finalmente, não se preocupar nem consigo nem com os outros. Encoraja idéias que produzam serenidade ou alegria – e encontra meios de combater as idéias de outros tipos. Entende o bem, o estado de bondade, como algo que promove a saúde. A oração não está inclusa, e nem o asceticismo. Não há um imperativo categórico ou qualquer disciplina, mesmo dentro dos monastérios (– dos quais é sempre permitido sair –). Todas essas coisas seriam simplesmente meios para aumentar aquela excessiva sensibilidade supramencionada. Pelo mesmo motivo não advoga qualquer conflito contra os incrédulos; seus ensinamentos não antagonizam nada senão a vingança, a aversão, o ressentimento (– “inimizade nunca põe fim à inimizade”: o refrão que move o budismo...) E nisso tudo estava correto, pois são precisamente essas paixões que, na perspectiva de seu principal objetivo regimental, são insalubres. A fadiga mental que apresenta, já claramente evidenciada pelo excesso de “objetividade” (isto é, a perda do interesse em si mesmo, a perda do equilíbrio e do “egoísmo”), é combatida por vigorosos esforços a fim de levar os interesses espirituais de volta ao ego. Nos ensinamentos de Buda o egoísmo é um dever. A “única coisa necessária”, a questão “como posso me libertar do sofrimento”, é o que rege e determina toda a dieta espiritual (– talvez alguém lembrar-se-á daquele ateniense que também declarou guerra ao “cientificismo” puro, a saber, Sócrates, que também elevou o egoísmo à condição de princípio moral).

                                                                    O Anti- Christo, de Frederico Nietzsche

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O Anticristo de Nietzsche é uma obra filosófica que explora temas relacionados à crítica religiosa e à reflexão sobre a moralidade.