Fonseca, Tomás da - Livros Proibidos

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Leitura – Filha de Labão, Tomás da Fonseca II Na Cova da Onça Aos anos que isso foi! Era no Outono, porque andavam na Lapa da Raposa a apanhar o medronho, quando ela desceu o Cabeço do Galo, embrulhadita num mandil. Franzina, uns dez anos talvez, mas revelando já os traços finos e maneiras que em poucos anos fariam dela a moça esbelta e resoluta cuja memória seria sempre evocada com saudade. Contratara-a o Fusco para pastora do rebanho que possuía então: meio cento de cabras, bravias como feras. Veio trazê-la uma velhota, sua avó, porque a mãe, doente havia meses, mal se arrastava da lareira para a porta da casa, onde fiava lã e dobava os novelos para a vizinha tecedeira que, por caridade, lhe dava ocupação. Com o Fusco vivia a irmã Florinda – mulher barbuda e violenta que entre os vizinhos nunca foi estimada. Por isso, quando a viram passar – saíta curta, blusa no fio e descalça -, todos tiveram pena. - Onde ela foi cair! Não se enganaram. Ainda a manhã estava em Celorico, e já os berros atroavam a casa. - Salta fora, mostrengo. Não vales o que comes. E, pela noite adiante, sempre naquela pregação. - Quem te partisse uma cavaca na cabeça… Não serves para coisa nenhuma… És uma lesma… Quer chovesse ou nevasse, lá ia ela ceifar erva ou apanhar azeitona, até à hora de seguir para o monte com o gado, levando apenas na algibeira um bocado de broa e uma sardinha assada. Valia-lhe o medronho, as amoras e o farnel das companheiras. Os gados quase sempre os juntavam, sobretudo no Estio, para melhor os guardarem das ínsuas e das vinhas. As outras pastoras, mais velhas, sentavam-se a falar de rapazes, a costurar ou fazer renda, e era a ela que mandavam aqueivar o rebanho ou correr às vessadas, para onde fugiam sempre as cabras ladras. - Ó Maria! Não vejo a Ruiva. Deve andar já na ladroagem. E a pobre a correr logo na direcção do rio, à beira do qual verdejavam os milhos e os cordões de videiras subiam nas testadas. Aos domingos, os rapazes, no regresso da missa, iam ter à Ribeira dos Moinhos, onde, à sombra dos carvalhos, passavam horas esquecidas, conversando ou bailando com as suas namoradas. Mas se do outro lado do rio aparecia o Antonino, fato novo, chapéu cor de café, relógio à cinta e um cravo entalado nas cravelhas da requinta, a todos nascia uma alma nova. Tudo se preparava para, sobre a relva macia, entoar em coro a Machadinha ou estalar o Vira, guiados pela voz da Parrana:

            Ó moças, dançai o vira…

Às vezes juntavam-se-lhes ranchos numerosos, atraídos pela guitarra do Abel Zoto, ou pelo harmónium do Agostinho:

           Ó minha caninha verde,
           Ó minha verde caninha…

A Ciranda e o Verde Gaio não esqueciam nunca. Debruçado sobre o fole, que alargava para em seguida o comprimir, o Agostinho acelerava a dança, fazendo andar tudo numa verdadeira dobadoira:

          Vem para os meus braços,
          Que o teu bem sou eu…

O Abílio de Eirigo era dos mais assíduos; mas as raparigas não lhe tinham afeição, porque as beliscava, e à noite, na fonte, se lhes ajudava os cântaros, era na mira de partidinhas sem graça. Além disso, tinha a língua ponteira, só sabendo dizer coisas atrevidas ou feias. Um dia, soltando uma das suas, foi expulso da roda. - És uma besta – berrou-lhe o Vitorino. – Quem assim é, vai para a estrebaria. - Vá ele mais a … Galegada esta que lhe valeu dois bofetões, tão em cheio que nesse Verão não tornou mais a aparecer. Em geral eram rapazes divertidos, que nunca levavam a confiança além de um estreitamento mais forte quando andavam enlaçados ao par. Outros arrancavam-lhes o lenço da cabeça e atavam-no em volta do pescoço, como laço de amor. Elas não desgostavam, apesar de saberem que ao findar os bailados, se queriam reavê-los, tinham de ir desatá-los, o que dava lugar, quase sempre, a uma ou outra graça com que faziam rir a malta. - Foi para que me enforcasses… Mas tu, que não quiseste, lá sabes a razão. Se o lenço fora atado em nó cego, demoravam mais a deslaçá-lo. Por vezes fingiam-se zangadas. E eles: - Não olhes para mim dessa maneira, que me tiras o sono… E elas: - Toleirão! O gado, esse, é que não se importava com bailados, e por isso era preciso alguém que o aqueivasse ou o seguisse, de valeiro em valeiro, através de matagais, com as pernas em sangue, arranhadas pelo bico dos tojos e das silvas. - Ó Maria, anda lá, que nós já vamos… Mas às vezes as danças só findavam quando o rabanho apontava no Alto das Penedas. Todavia, nunca daquela boca delicada se soltou umqueixume. Apesar de criança, tinha uma voz harmoniosa e clara, ensaiada nas cantigas que ouvia às companheiras:

          Quero cantar, quero rir,
          Que a tristeza não faz bem…

E o sentimento que ela punha em tudo o que da garganta lhe saía! Foi a mulher do Julião a primeira que reparou nesse dom da pequena: - É uma cotovia!

                                                        Filha de Labão, Tomás da Fonseca




XX A Cotovia Voltara Ao Ninho

A casa onde nascera eram quatro paredes sem reboco, dentro das quais havia uma saleta, a cozinha e, à retaguarda, dois quartos iluminados por janelas de madeira. Um como muitos das casebres da serra, hoje como há duzentos anos, despidos do mais elementar conforto. À entrada da porta, o sobrado forma um semicírculo onde, sobre terra batida ou lajes de granito, se acende o lume, a panela ferve e o grilo canta. As visitas sentam-se no escabelo de pinho, se o há, ou no rebordo do sobrado. No canto, o armário da louça – duas tábuas seguras na parede -, a pilheira para as maçarocas e o poial para o assado. Às vezes aparece a cadeira de pinho, por pintar, a mesa do mesmo pau, onde se come, se joga a bisca, se passa a ferro ou se talha a blusa e objectos de confecção caseira, se há mulher ordenada. Por trás da taipa, o mobiliário é igualmente escasso e primitivo. Dois bancos toscos sobre que assenta um rectângulo de madeira, que se enche de palha solta, quando falta a enxerga de estopa, duas mantas de farrapos, é o leito onde se dorme e os filhos nascem. Na mesma divisão, a arca para o bragal e um ou outro tareco, de fabrico local. O casebre onde vivia agora a Cotovia só tinha a mais que o das vizinhas o asseio.

                                                                          Filha de Labão, Tomás da Fonseca