Fonseca, Manuel da - Livros Proibidos

From Wikipédia de Autores Algarvios
Revision as of 12:57, 31 January 2024 by Admin (talk | contribs) (Created page with "Leitura- Seara de Vento, Manuel da Fonseca - Hás-de ver! – exclama Armanda Carrusca, com vivacidade. – Por mais que me digam que não, aquela doença do Bento é toda de...")

(diff) ← Older revision | Latest revision (diff) | Newer revision → (diff)
Jump to: navigation, search

Leitura- Seara de Vento, Manuel da Fonseca

- Hás-de ver! – exclama Armanda Carrusca, com vivacidade. – Por mais que me digam que não, aquela doença do Bento é toda derivada da fome que passou. Está raquítico é o que é. E isto tem curado muita gente desenganada pelos médicos! Corta os limões, espreme-os sobre os ovos. Como num ritual misterioso, as mãos descarnadas da velha mexem-se de forma estranha, lenta. Enquanto prossegue na minuciosa tarefa, fala com voz ciciada e profunda: - Agora, espera-se que o sumo dos limões desfaça a casca dos ovos e o toucinho. Depois, bate-se tudo, com açúcar, como uma gemada. Faltam, é verdade, duas goladas de vinho do Porto. Isso é que já não consegui. Mas, descansa, mesmo assim, vai ficar bom. Pega no tacho, envolve-o num pano e vai coloca-lo na mais alta prateleira do armário. Ao descer do banco, meio curvada, olha intencionalmente para o lado da porta. - Hei-de curar o meu neto!

                                                                          Seara de Vento, Manuel da Fonseca









Leva tempo a dominar-se. Por fim, exausta, o seu rosto, destroçado por fundos vincos, exprime como que séculos de esperança traída. O desânimo e a amargura enchem-lhe a voz lenta, segredada: - Bondade, religião… Era bom. Era muito bom que aqueles que falam dessas coisas as praticassem. Mas, olha… Não, tu não podes entender-me. Magicas muito, e não vês nada. Julgas que tudo acontece sem ninguém ter culpa, supões que é o destino… É isso. Supões que é o destino que levou os teus filhos a fugirem de casa, que é o destino que obrigou o teu sogro a matar-se, o teu marido a ir parar à cadeia. Pensas assim… e há muita gente da tua marca. Medrosos! Encolhe os ombros, sem desprezo nem zanga, apenas desinteressada, como se tal gente jamais pudesse pertencer ao seu mundo. Compõe o lenço em volta dos cabelos e recomeça, com desalento: - Falar, falar… Quem é que nos ouve, se até Deus nos esqueceu?

                                                                          Seara de Vento, Manuel da Fonseca









Trémulo, o Palma bate os dentes. Vagamente, apercebe-se de que qualquer coisa de anormal se passa à sua volta. Corona vai de cabeça alta, farejando, numa grande atenção. Alcançada a outra margem, estreita e pouco profunda naquele sítio, enfiam as calças e as botas. Abrigando-se por todas as saliências do terreno, apesar do negrume, voltam a marchar o mais rapidamente que as forças lhes permitem. - Vamos, vamos – insiste Corona, em voz baixa. – Isso depressa. Nos longes da noite vislumbra-se já o velado luaceiro da madrugada. Os olhos doridos do Palma alongam-se, erradios. Com movimentos de autómato, desce, sobe encostas, sempre na esteira do Corona. Na lomba de um outeiro escorrega e cai. Levanta-se, torna a cair e a levantar-se, como que embriagado. Galrito ampara-o. - Homem, só mais um bocado. Paymogo é já perto. De pernas encharcadas, colando-se-lhe às calças, arrasta as botas. Muito fina, a dor continua a roer-lhe o estômago, a cabeça escalda-lhe. Grossas bagas de suor escorrem-lhe da cara, saltam a cada passada brusca. E a zoada cresce-lhe nos ouvidos até àquele súbito como que relâmpago que lhe rebenta no cérebro, deixando-o assombrado, vago. Isolado no escuro, em pleno campo, aparece a forma imprecisa de um edifício comprido, irregular. Da sombra do portão despega-se o vulto de um velho. Ouve-se-lhe a voz metálica, segredada e breve: - Buenas!... Após a entrada do último da fila, o velho ainda permanece fora por algum tempo. Vagarosos, frios, os seus olhos de lince devassam os terrenos que circundam a casa. Passa o portão, fecha-o. Espevitado o candeeiro de minas, as sombras dos homens aquietam-se contra as paredes caiadas. Erguido ao alto do braço, o candeeiro ilumina a entrada de um desvão praticado a meia altura. Junto da chama, vê-se a cara esguia do velho, de face rapada, dura. À vez, os homens empurram as cargas para dentro do desvão. Curvados, quedam-se os quatro de mão caídas, como se ainda caminhassem. O tronco do Palma avança no meio do grupo. Dobra as pernas, estende os braços, e cai, roçando pela parede. Fica sentado no chão de tijolos, a sorver o ar, de boca muito aberta. Vagamente curioso, o velho inclina o candeeiro. - Que es eso, hombre? O Palma apenas consegue mexer os lábios ressequidos. Mas todos compreendem. Corona volta-se para o velho. - Escuta, Carretero. Podes dar-lhe já alguma coisa? - Claro que si! Erguem o Palma. Corona observa-o. - Que é que tu comeste ontem? - Umas sopas d’alho… - Devias ter dito. Foi muito mau isso. De olhos embaciados, o Palma segura-o pelo braço. - Tu não vais pôr-me de lado… - A voz estrangula-se-lhe na garganta. – Não!... Quando eu comer todos os dias, posso tanto como os outros!... - Está bem. – Corona faz um sinal ao velho. – Depois falamos. De candeeiro caído ao lado da perna, o espanhol avança adiante dos quatro homens. Corredor fora, as sombras deformadas, negras, agitam-se violentamente pelas altas paredes.

                                                                          Seara de Vento, Manuel da Fonseca







- Onde vais?... - Para que lhe perguntas? – exclamou Amanda Carrusca. – Pois hoje não é domingo? Vai ter com as outras… e os outros! Vão combinar a tal ida à vila, a pedirem trabalho. Isto, agora, é assim: junta-se um bando, entra na vil e, pronto, é tudo deles! - Ouve-me, filha!... Que vais tu lá fazer se tens trabalho? - Vou pelo pai e pelos outros. - Juntem-se todos, juntem-se, e vão-se meter na cova do lobo! – agoira Amanda Carrusca, levantando os braços, com um sorriso azedo. – Depois, se lhes acontecer alguma, não se queixem! - Queixar-se, a gente? Que é que nos pode acontecer de pior do que esta vida que levamos? A velha fita a neta com agudeza e interesse. - Afinal…que querem vocês? - Acabar com isto. Acabar com esta miséria em que vivemos. Nós e os outros. Mariana avança para a porta. - Eles ensinaram-me, avó, Sei agora o que dantes não sabia, e pus-me logo a seu lado. Eles ensinaram-me que esta vida que levamos é um crime. - E que é que já fez em toda a sua vida para acabar com ele? A inesperada pergunta causa profundo espanto em Amanda Carrusca. Vê a neta voltar-se, atravessar o terreiro. Com o olhar perplexo, segue-a ainda, cerro abaixo. - Meu Deus – murmura Júlia. – Não basta já o pai para meu desassossego… Nem sei que pensar…

                                                                          Seara de Vento, Manuel da Fonseca




No casebre, as refeições diárias cedo atenuam o receio de Júlia, as iras de Amanda Carrusca. Todos se mostram agradados, e apenas Mariana teima em contrariar a harmonia estabelecida. Mas as suas razões quebram-se de encontro à realidade de momento: há comida. Dos ganhos da cada ida à Espanha, o Palma apenas é largo a comprar pólvora e chumbo. Debaixo do catre tem um caixote cheio de cartuchos, sempre renovados, para a caça, no mato, aos coelhos. Descontadas as despesas de alimentação, o resto do dinheiro junta-o para reparar o casebre. No entretanto, levado na maré das esperanças, faz projectos, deita contas à vida. Optimista, esquece queixas e agravos. Esquece até o ódio a Elias Sobral.

                                                                          Seara de Vento, Manuel da Fonseca










A rajada apanha-o pelo tronco, sacode-o de alto a baixo, curva-o. De punhos fechados, torce a boca como se tentasse expulsar as balas de dentro do corpo. Logo tomba, desamparado, para dentro do forno derruído. Os tiros cessam. Guardas invadem o terreiro. De cabelos desgrenhados, Amanda Carrusca surge na porta. A correr, vai debruçar-se sobre o forno. Toda ela treme, como se um frio intenso a repassasse. Os olhos muito abertos da Palma parecem fitar as labaredas fumegantes que sobem do telhado do casebre. Tem os braços estendidos sobre a pedras, e a imobilidade da morte vinca-lhe no rosto uma carregada expressão de censura. Por todos os lados, o confuso clamor de imprecações, apelos, pragas, aumenta cada vez mais. Exaltados, os camponeses tentam vencer a barreira formada pelos guardas. - Oiçam! O grito obriga-os a levantarem a cabeça. No alto do cerro, junto da orla das estevas, Amanda Carrusca aparece, de mãos erguidas. - Digam à minha neta! Digam-lhe que ela tem razão! Ouve-se como que um gemido soltado por dezenas de bocas, e os camponeses atiram-se para diante. Com a coronha da carabina no ar, um guarda avança para Amanda Carrusca. A velha volta-se, cresce, firme sobre as pernas entesadas, e os andrajos negros, batidos pelo vento, modelam-lhe o corpo seco e chato, só ossos.

                                                                          Seara de Vento, Manuel da Fonseca