Fonseca, Manuel da - Livros Proibidos

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MFonseca.jpg 13610567.jpg Despacho da Censura para Seara de Vento.jpg Cerromaior.jpg Manuel da Fonseca censura.jpg Cerromaiorcensura2.jpg

  • Manuel da Fonseca (1911 – 1993)
Escritor, poeta, contista, romancista e cronista. Grande figura da cultura nacional é, ao mesmo tempo, um cidadão que faz parte da história da Resistência. Manuel da Fonseca tinha uma personalidade cativante, era um homem popular, que muito prestigiou o Alentejo. A sua escrita era seguida de perto pela Censura. Vigiado e perseguido pela PIDE, tanto pelo que escrevia como pela militância política, conheceu a brutalidade dos interrogatórios e dos cárceres fascistas.
  • Livros proibidos
Cerro Maior e Seara de Vento Romances neorrealistas  publicados respetivamente em 1943 e 1958.

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  • Excerto 1 - Seara de Vento
- Hás de ver! – exclama Armanda Carrusca, com vivacidade. – Por mais que me digam que não, aquela doença do Bento é toda derivada da fome que passou. Está raquítico é o que é. E isto tem curado muita gente desenganada pelos médicos!
Corta os limões, espreme-os sobre os ovos. Como num ritual misterioso, as mãos descarnadas da velha mexem-se de forma estranha, lenta. Enquanto prossegue na minuciosa tarefa, fala com voz ciciada e profunda:
- Agora, espera-se que o sumo dos limões desfaça a casca dos ovos e o toucinho. Depois, bate-se tudo, com açúcar, como uma gemada. Faltam, é verdade, duas goladas de vinho do Porto. Isso é que já não consegui. Mas, descansa, mesmo assim, vai ficar bom.
Pega no tacho, envolve-o num pano e vai coloca-lo na mais alta prateleira do armário. Ao descer do banco, meio curvada, olha intencionalmente para o lado da porta.
- Hei de curar o meu neto!
  • Excerto 2 - Seara de Vento
Leva tempo a dominar-se. Por fim, exausta, o seu rosto, destroçado por fundos vincos, exprime como que séculos de esperança traída. O desânimo e a amargura enchem-lhe a voz lenta, segredada:
- Bondade, religião… Era bom. Era muito bom que aqueles que falam dessas coisas as praticassem. Mas, olha… Não, tu não podes entender-me. Magicas muito, e não vês nada. Julgas que tudo acontece sem ninguém ter culpa, supões que é o destino… É isso. Supões que é o destino que levou os teus filhos a fugirem de casa, que é o destino que obrigou o teu sogro a matar-se, o teu marido a ir parar à cadeia. Pensas assim… e há muita gente da tua marca. Medrosos!
Encolhe os ombros, sem desprezo nem zanga, apenas desinteressada, como se tal gente jamais pudesse pertencer ao seu mundo. Compõe o lenço em volta dos cabelos e recomeça, com desalento:
- Falar, falar… Quem é que nos ouve, se até Deus nos esqueceu?
  • Excerto 3 - Seara de Vento
Trémulo, o Palma bate os dentes. Vagamente, apercebe-se de que qualquer coisa de anormal se passa à sua volta. Corona vai de cabeça alta, farejando, numa grande atenção.
Alcançada a outra margem, estreita e pouco profunda naquele sítio, enfiam as calças e as botas. Abrigando-se por todas as saliências do terreno, apesar do negrume, voltam a marchar o mais rapidamente que as forças lhes permitem.
- Vamos, vamos – insiste Corona, em voz baixa. – Isso depressa.
Nos longes da noite vislumbra-se já o velado luaceiro da madrugada. Os olhos doridos do Palma alongam-se, erradios. Com movimentos de autómato, desce, sobe encostas, sempre na esteira do Corona. Na lomba de um outeiro escorrega e cai. Levanta-se, torna a cair e a levantar-se, como que embriagado. Galrito ampara-o.
- Homem, só mais um bocado. Paymogo é já perto.
De pernas encharcadas, colando-se-lhe às calças, arrasta as botas. Muito fina, a dor continua a roer-lhe o estômago, a cabeça escalda-lhe. Grossas bagas de suor escorrem-lhe da cara, saltam a cada passada brusca. E a zoada cresce-lhe nos ouvidos até àquele súbito como que relâmpago que lhe rebenta no cérebro, deixando-o assombrado, vago.
Isolado no escuro, em pleno campo, aparece a forma imprecisa de um edifício comprido, irregular. Da sombra do portão despega-se o vulto de um velho. Ouve-se-lhe a voz metálica, segredada e breve:
- Buenas!...
Após a entrada do último da fila, o velho ainda permanece fora por algum tempo. Vagarosos, frios, os seus olhos de lince devassam os terrenos que circundam a casa.Passa o portão, fecha-o. Espevitado o candeeiro de minas, as sombras dos homens aquietam-se contra as paredes caiadas.
  • Excerto 4 - Seara de Vento
No casebre, as refeições diárias cedo atenuam o receio de Júlia, as iras de Amanda Carrusca. Todos se mostram agradados, e apenas Mariana teima em contrariar a harmonia estabelecida. Mas as suas razões quebram-se de encontro à realidade de momento: há comida.
Dos ganhos da cada ida à Espanha, o Palma apenas é largo a comprar pólvora e chumbo. Debaixo do catre tem um caixote cheio de cartuchos, sempre renovados, para a caça, no mato, aos coelhos. Descontadas as despesas de alimentação, o resto do dinheiro junta-o para reparar o casebre. No entretanto, levado na maré das esperanças, faz projectos, deita contas à vida. Optimista, esquece queixas e agravos. Esquece até o ódio a Elias Sobral.
  • Excerto 5 - Cerromaior.
Um grito encheu a cadeia.
Num sobressalto, o rapaz ergueu-se da sonolência em que jazia sobre a tarimba e foi até às grades. Alquebrado de torpor, a princípio nada compreendeu. Viu, confusamente, os canteiros cheios de flores, as árvores e, para lá do jardim, o edifício amarelado dos Paços do Concelho.
Mas o grito ainda ecoava, morria aflito e longo. Sentiu os homens agitarem-se na cela comum do rés-do-chão e, perto, soltou-se uma voz lamentosa e resignada:
- Cala-te, Dòninha!
Em baixo, de pé sobre o parapeito de uma das janelas, um homem completamente nu, com as mãos escuras enclavinhadas nos varões das grades, voltou a gritar. No corpo mirrado, saliente dos ossos, só as pernas avolumavam ponteadas de buracos negros. E, na cabeça calva, faces lívidas, queixo recuado, os olhos guardavam um terror de demência, dilatados de espanto pelo próprio grito que lhe escancarava a boca.
O rapaz, que se erguera da tarimba, abandonou a janela acordando de vez. Dòninha só gritava de noite, daí a surpresa. Olhou a manta, pensando deitar-se de novo. Mas, como de costume, sempre que ouvia o Dòninha, começou a passear de uma parede a outra. De súbito, o som seco de um corpo que cai sobre uma laje fê-lo parar. Pôs-se à escuta. Empurrou a porta gradeada, e desceu para o rés-do-chão.
-Caiu outra vez e rachou a cabeça…? – aventou um preso ao vê-lo passar.
Sem lhe dar resposta, o rapaz continuou o caminho e foi parar junto da porta de uma das celas.
Lá dentro, o homem todo nu estava estirado ao comprido, de costas, pernas e braços abertos, sobre o chão imundo. A mesma expressão apavorada, mas agora baça e fria, abria-lhe os olhos para o teto. Os beiços repuxados mostravam as gengivas amarelas e sem dentes; ao lado da cabeça, alastrava cada vez mais uma mancha de sangue.
  • Para saber mais

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