Correia, Romeu - Livros Proibidos

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Romeu Correio Romeu Correia, nascido a 17 de novembro de 1917, em Almada, foi escritor e dramaturgo, tendo colaborado em diversas publicações. Editou mais de três dezenas de obras, que lhe valeram diversas distinções, como o Prémio 25 de Abril, atribuído pela Associação de Críticos Teatrais, em 1984.

a Câmara Municipal de Setúbal em colaboração com a Direção-Geral do Livro fez uma exposição, integrada nas comemorações do Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor e dos 250 anos do nascimento de Bocage, composta por um exemplar da peça dramatúrgica escrita em 1965 por Romeu Correia censurada pelo fascismo.

“O processo de censura da obra Bocage de Romeu Correia” dá título à exposição, que apresenta o texto resultante da intervenção censória do Estado Novo, nunca antes revelado em público com os cortes marcados a “lápis azul” e as informações dos censores sobre o que era ou não permitido ser representado em palco durante o período do Estado Novo, regime político fascista que vigorou em Portugal entre 1933 e 1974, constam da exposição. https://osetubalense.com/opiniao/2023/08/08/500-e-mais-palavras/


Paralelamente à escrita, praticou atletismo e boxe, modalidade em que conquistou o título de campeão nacional amador. https://www.mun-setubal.pt/bocage-censurado-em-mostra/?doing_wp_cron=1707313514.3692550659179687500000

"A obra retirada do mercado contém - segundo a acusação pública - matéria que levanta problemas de ordem moral", indicava apenas o artigo. A sessão estivera inicialmente agendada para 4 de julho de 1973, mas fora adiada "por motivo de enfermidade de uma das arguidas", sempre "senhoras donas identificadas com o nome completo, a idade - entre os 32 e os 35 anos -, o estado civil - todas casadas -, a profissão e o local de trabalho de duas das autoras, o Instituto de Investigação Industrial. Romeu Correia de Carvalho e Melo, o quarto arguido, era casado, economista e representava a casa editora do livro.https://www.jn.pt/justica/tres-marias-o-caso-que-a-censura-quase-apagou-16256139.html/amp/

https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/mundoliterario/N51/N51_master/MundoLiterarioN51_26Abr1947.pdf

https://almada-virtual-museum.blogspot.com/2015/04/sabado-sem-sol.html Porém, a primeira grande qualidade de Romeu Correia reside na extraordinária habilidade de nos dar um diálogo vivo e natural — coisa que raramente acontece entre os que, como o autor de "Sábado sem Sol", não tem atrás de si uma longa experiencia da arte de escrever. A segunda, o bom aproveitamento de pormenores felizes, o que da aos seus contos a impressão de coisa mais vista do que imaginada. Ora, se e certo que a obra de arte tem de ser criação — e aqui o factor imaginação tem uma inestimável importancia — a verdade é que essa imaginação não terá elementos fecundos e trabalho se não estiver bem assente na observação da realidade. Romeu Correia, ao que nos parece, é senhor de um poder de observação e de um conhecimento dessa realidade que julgamos excelentes. Falta-lhe, talvez, ainda, o poder artístico que lhe permita "recriá-la", de modo a produzir obra que verdadeiramente se possa impor. Romeu Correia está, pois, perante um dilema: ou fica satisfeito com o que fez, ou considera o seu "Sábado sem Sol" como o primeiro passo, balbuciante ainda, o longo e penoso caminho que tem à sua frente. No primeiro caso, nada de inteiramente serio poderá realizar, visto que, apesar das apreciáveis qualidades que nele encontramos, o seu livro está demasiado eivado de imperfeições para que, por si só, possa ter mais do que um momentâneo interesse. No segundo caso — e esta é a única atitude aceitável e a única fecunda — então, sim, tenhamos esperança em Romeu Correia! O artista — o verdadeiro artista — vive em constante insatisfação e em constante desejo de aperfeiçoamento.

Sábado sem Sol Romeu Correia O “Sábado sem Sol” é a primeira obra de Romeu Correia. Trata-se de um livro de contos, com dez pequenas narrativas, que retratam parte da sua vivência no burgo de Almada.


O espírito de censor de Borges Ferreira permitia-se concluir o relatório de uma maneira que aviltava a obra apreciada: “São contos sem moral, sempre a puxar para a questão social e, portanto, não sei a quem possa interessar semelhante livro.”

Quando o capitão José da Silva Pais, em 10 de Maio de 1947, se dirigiu ao director da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), rogando-lhe que mandasse “proceder à apreensão do livro intitulado ‘Sábado sem sol’ da autoria de Romeu Correia”, fê-lo com base no relatório subscrito pelo capitão Borges Ferreira, em que eram apontadas as faltas cometidas pelo autor: “este livro de contos é, de um modo geral, bastante mau, porque aprovei ta a mais pequena oportunidade para focar a questão social.” O desprezo

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a que a obra era votada neste relatório não tem qualquer relação com a estética ou com a criação, antes se preocupa com o retracto social traçado, chegando ao ponto de pôr condições para que “talvez o livro possa ser publicado”: a primeira, no sentido de os contos “Chegou o carvoeiro”, “Sempre Menino” e “Novela interrompida” (na sua terceira e quinta partes) serem suprimidos; a segunda, exigindo que fossem eliminadas “várias frases mal sonantes, de uma moral bastante duvidosa”, encontradas em dezena e meia de páginas do livro, devidamente indicadas. Curiosamente, o crítico Nataniel Costa considerara que os contos “Chegou o carvoeiro” e “Novela interrompida” eram experiências que provavam que “o seu autor pode, se souber superar-se por um trabalho sério e constante, vir a escrever obra de valor”… A mulher sentou-se na cama, tacteou o tampo de um caixote, que servia de mesinha de cabeceira, e pegou na caixa de fósforos. Riscou um. A cabeça do fósforo saltou, produzindo um estalido e uma faísca. - Ra’is te parta! Experimentou outro. Uma chama amarela deixou-lhe ver as coisas. Era um sórdido pardieiro – chão térreo, sarrafos no tecto, as telhas em escamas, por cima. Acendeu uma vela de estearina que saía do gargalo de uma garrafa. A claridade cresceu. Safou, então, as pernas da manta e, ao atingir o chão, cobriu melhor o homem com o agasalho que sobrava. Ele deu uma guinada, rolou para o centro do leito e continuou o sono. Naquela manhã, ela, assim de pé, estava horrenda: a gravidez, desenvolvidíssima, subia-lhe a camisa à frente, como um sino Coçou as guedelhas empastadas. A humidade do chão electrizou-a, num arrepio de frio. Calçou os pés calosos nuns tamancos. Numa canastra almofadada, dormiam, dois filhos. Olhou-os com enlevo. As crianças dormiam, pernitas entrelaçadas, rostos risonhos, as cabecitas a magicar fantasias. Aos pés da cama estavam as suas roupas de sempre. Pulou para a boca de uma saia de chita, que apertou na cinta disforme. Vestiu também uma blusa remendada do mesmo tecido. Pôs um avental de ganga e foi acender a lareira. O homem voltou-se para o outro lado, tartamudeando um ronco. Era um casal ainda jovem, a rondar pelos trinta anos. Ela, operária de uma fábrica de cortiça no Caramujo; ele, sem ofício certo, pois aproveitava o que lhe aparecia. Habitavam naquele casebre – um compartimento único, de paredes curtas, mobilado de trastes desconjuntados: uma mesa de pinho, uma arca de couro, uma cómoda manca, uma cama de ferro e um pote. Roupas, suspensas de pregos, sombreavam fantasmas nas paredes.

                                                   “Novela Interrompida”, Sábado sem Sol, Romeu Correia




Ela falou na escassez do dinheiro e na gravidez que estava prestes a estalar. Era um sacrifício trabalhar assim, já de oito meses, mas muito pior seria se não ganhasse. Quando os encarregados suspeitavam de que uma barriga excedia já sete meses suspendiam a operária. Mas todas as encobriam o melhor possível, e trabalhavam até à véspera. Naquele sábado, porém, ela esperava uma grande novidade: na fábrica, a comissão de mulheres ia conhecer a resposta ao pedido de aumento de salário, solicitado na semana anterior. O companheiro meneou a cabeça, numa expressão azeda: - Não vejo jeitos… Ela manteve um clarão de esperança no olhar: - Talvez… Era pedindo, que se conseguia sempre alguma coisa. Nada caía do céu, sobre os pobres – a não ser trabalho ruim e a vida cada vez mais enrascada. Os fiados atrasados levavam a féria dos sábados. Das quatro tendas do sítio, só uma lhes fiava ainda: a tia Gertrudes. Nas restantes era passar de largo, curvados de vergonha. O Eduardo, na Banática, não era efectivo. Tinha uma semana de trabalho, e um mês ao alto. Nos campos, não metiam gente: sobravam os ganhões. A uma légua dali, na praia da Fonte da Telha, era uma penúria. Uma noite perdida no mar e, muitas vezes, dez, quinze tostões de paga. Os donos das companhias tudo levavam – processos velhos, contas antigas, tão injustas que até faziam doer o coração. (…) A Benvinda ergueu o petiz mais novo da canastra, a espernear e a berrar, e lavou-lhe a carita no alguidar de barro. Dois açoites bem assentes no cuzito reduziram o pequeno rebelde a lágrimas sentidas. O irmão, o Luisinho, mais ponderado, lavou-se com todo o propósito, olhando de soslaio. As papas a ferver transbordaram do tacho, escorrendo e pingando nas brasas. A mulher correu a evitar maior desperdício. (…) - Nada de maluquices, ouviste? Faz com que a comida chegue até à noite. Comam aos bocadinhos. Quando o menino chorar, dá-lhe umas colheres. Juízo! Se partirem alguma coisa, logo gozam!... E saiu, dando uma volta à chave na fechadura enorme.

                                                 “Novela Interrompida”, Sábado sem Sol, Romeu Correia

O primeiro aviso espalha o sobressalto nos retardatários. Dez minutos para alcançar o chapeiro – onde as fichas de zinco testemunharão a sua pontualidade. Homens, mulheres e crianças, de saquitel ao ombro ou de cestito na mão, a dar que dar, correm, saltitam pelas azinhagas pedregosas. Pernas dormentes da jornada, pés descalços, gretados, pés calçados de alpargatas, de sapatões cambados. Mulheres dos arredores mais longínquos: (…); quinze, vinte e até trinta quilómetros palmilhados todos os dias, na ida e no regresso. Marcham em grupos – grupos que engrossam no macadame, na serpentina de asfalto. As operárias superam os companheiros em número. Uma parada de corpos, de fisionomias – interminável. Um descola, e logo, vários, tementes ao segundo apito, que está a estoirar, o seguem na correria… Na Cova da Piedade, através do jardim abandonado ou das artérias que circundam os muros fabris, ondula um mar de mulheres. Mulheres de todas as idades e feitios. Mulheres de luto, mulheres grávidas, mulheres mirradas, musculosas, disformes – gente moldada pelo esforço e pelo sacrifício.

                                                   “Novela Interrompida”, Sábado sem Sol, Romeu Correia










Pela azinhaga poeirenta, uma nuvem humana avançava num borborinho tempestuoso. Era massa ondulante que se amoldava, em contorções de serpente infindável, às curvas dos valados esquecidos. Duas mil mulheres – mulheres de toas as fábricas, de todas as idades e feitios. Era um cortejo de gente sebenta, andrajosa, gente que a cortiça e o suor sujara, desesperara e unira naquela marcha que fazia tremer a terra, calcada por milhares de pés. Nos campos próximos, nas courelas bravias dos bairros de lata, velhos e crianças abriam as bocas, abismados daquilo que vinha na azinhaga. E chamavam as famílias, e vinham também os vizinhos, a correr pelos campos incultos, para contemplar o cortejo apocalíptico. Os cães ladravam ao longe. As vacas deixavam o pasto e olhavam, olhavam mansamente. O céu estava cheio de nuvens enormes. Um vento, que não soprava cá em baixo, levava-as numa direcção caprichosa. (…) O sargento, à frente da força, desembainhou a espada comprida e, aos berros, mandou retroceder. As mulheres da vanguarda pararam, receosas, olhando as espingardas. Eram trinta militares, homens de várias idades, que exerciam a profissão de defender a ordem. As grevistas da retaguarda empurraram as receosas, num alarido ensurdecedor. Os guardas, insultados, entreolharam-se na esperança de aquilo acabar a bem. O sargento gritou, mais uma vez, a pedir a dispersão. A sua voz, guinchada, perdeu-se no borborinho da multidão. O choque era inevitável. Um soldado notou a consorte entre as grevistas e berrou-lhe: - Sai daí, Laurinda. Não ouves? E correu a esbofeteá-la. As camaradas apartaram-nos. Intervieram também vários guardas. Num vaivém furioso, o sargento fez cair a espada sobre a onda humana. Houve braços erguidos com nervosismo, para salvaguardar o rosto e o tronco. O mulherio da retaguarda, na ânsia de ser útil, acorreu em socorro das agredidas. Os trinta militares foram envolvidos, atropelados pela nuvem humana. A algazarra redobrou. Algumas coronhas de espingarda entraram a malhar. Guardas rolaram por terra, calcados por pés que parecia nunca mais acabarem. Brotava sangue de alguns rostos. O sargento, esbaforido, arrancada a espada das mãos gordas, sacou da pistola e deu dois tiros para o ar. Pânico. Fugiram mulheres para as ruas, para os caminhos vizinhos; outras, entrincheiraram-se atrás das árvores, de andaimes e nas valas dos casais. Arremessavam pedras. Alguns militares pulavam, ridiculamente, evitando os projectéis. Quebravam-se vidros nos prédios fronteiriços. As coronhas não paravam de cair no lombo das mais ousadas. Garotos maltrapilhos, quentes de heroísmo, sobre os telhados, castigavam a tropa com as fisgas certeiras… Chegaram dois caminhões carregados de homens e de metralhadoras. Era o reforço. Um tiro partiu – e prostrou uma mulher. A luta mudou de feição. E as grevistas dispersaram em debandada. Cada uma correu para seu lado. As residências foram invadidas, os campos devassados, as lojas encheram-se de freguesia. A guarda ficou a rodear as prisioneiras: uma morta; uma grávida, que não podia correr; quatro feridas; e mais sete que foram cercadas pelos homens dos caminhões. Das que se esconderam nas moradias e nos estabelecimentos, ou nas terras, onde as sementeiras foram pisadas, nenhuma foi denunciada. O sigilo foi absoluto. Mas a esposa e as filhas do engenheiro Lobato, receosas de grandes desgraças, acenderam duas velas junto da imagem da Virgem para que Ela afastasse, para bem longe, aquela gente reles e malfazeja.

                                                   “Novela Interrompida”, Sábado sem Sol, Romeu Correia

“Ás vezes, de manhã, no largo de Cacilhas, o Ernesto e os companheiros fazem rapina nas camionetas de peixe, vindas de Sesimbra. A Guarda-Fiscal anda sempre em cima deles, mas o rapazio tem pé leve e olho vivo. Também no cais do Ginjal, junto às fábricas de conservas, quando chegam os buques prenhes de sardinha, os catraios estão presentes. Surgem sorrateiros, à formiga, muito sossegadinhos.

Abrem-se os porões do buque. Dois estivadores descem lá para baixo, alojam-se, mergulhando as pernas nuas na salmoira, pejada de peixe; e vá de encher cestos que são arremessados para o camarada do tombadilho. Este, por sua vez, passa-os a um terceiro, que, no cais, os vaza nas canastras das varinas. As mulheres não param mais no cá-e-lá, de canastra à cabeça e quadris bailões. É a vez da malta; recurvam os arames – as inseparáveis ganchetas – e vá de tirar das canastras, à sucapa, três, quatro sardinhas de uma puxadela. As varinas praguejam, ciosas do peixe que não lhes pertence, e o guarda-fiscal, sempre bem presenteado, corre a distribuir puxões de orelhas, pontapés e dolorosos cachações. Mas, ao fim da tarde, juntou-se, quase sempre, uma ou outra mão de peixe que, em casa, faz um arranjão. Se os vícios apertam, surge um acordo entre o grupo delinquente: reunir a sardinha para ser vendida na vila; o lucro apurado transforma-se em cigarros, vinho e cinema.” p. 65

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