Correia, Romeu - Livros Proibidos

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Romeu correia.jpg RomeuCorreiaSabadosemSol.jpgCorreia, Romeu - Sabado sem sol - censura.jpgAlmada Incrível Almadense Auto de apreensão do livro Sábado Sem Sol 01.jpg

  • Romeu Correia (1917-1996)

Escritor e dramaturgo, editou mais de três dezenas de obras, que lhe valeram diversas distinções, como o Prémio 25 de Abril, atribuído pela Associação de Críticos Teatrais, em 1984.Paralelamente à escrita, praticou atletismo e boxe, modalidade em que conquistou o título de campeão nacional amador.
Romeu Correia foi o 4º arguido, como editor, no "processo das Três Marias". [1]

  • Livro Proibido - Sábado sem Sol

Sábado sem Sol é a primeira obra de Romeu Correia que foi vítima de censura. Trata-se de um livro de contos, com dez pequenas narrativas, que retratam parte da sua vivência na vila de Almada. Segundo o censor: “São contos sem moral, sempre a puxar para a questão social e, portanto, não sei a quem possa interessar semelhante livro.”No seguimento, O capitão José da Silva Pais, em 10 de Maio de 1947, dirigiu-se ao diretor da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), rogando-lhe que mandasse “proceder à apreensão do livro intitulado Sábado sem sol da autoria de Romeu Correia. Fê-lo com base no relatório subscrito pelo capitão Borges Ferreira, em que eram apontadas as faltas cometidas pelo autor: “este livro de contos é, de um modo geral, bastante mau, porque aproveita a mais pequena oportunidade para focar a questão social.”
O desprezo a que a obra era votada neste relatório não tem qualquer relação com a estética ou com a criação, antes se preocupa com o retrato social traçado, chegando ao ponto de pôr condições para que “talvez o livro possa ser publicado”: a primeira, no sentido de os contos
Chegou o carvoeiro, Sempre Menino e Novela interrompida (na sua terceira e quinta partes) serem suprimidos; a segunda, exigindo que fossem eliminadas “várias frases mal sonantes, de uma moral bastante duvidosa”, encontradas em dezena e meia de páginas do livro, devidamente indicadas. Curiosamente, o crítico Nataniel Costa considerara que os contos “Chegou o carvoeiro” e “Novela interrompida” eram experiências que provavam que “o seu autor pode, se souber superar-se por um trabalho sério e constante, vir a escrever obra de valor”
[2]
Correia, Romeu - Sabado sem sol - censura-excerto.jpg


  • Conto Novela Interrompida(Pág.125-151)
  • Excerto 1
A mulher sentou-se na cama, tateou o tampo de um caixote, que servia de mesinha de cabeceira, e pegou na caixa de fósforos. Riscou um. A cabeça do fósforo saltou, produzindo um estalido e uma faísca.
- Ra’is te parta!
Experimentou outro. Uma chama amarela deixou-lhe ver as coisas. Era um sórdido pardieiro – chão térreo, sarrafos no tecto, as telhas em escamas, por cima. Acendeu uma vela de estearina que saía do gargalo de uma garrafa. A claridade cresceu. Safou, então, as pernas da manta e, ao atingir o chão, cobriu melhor o homem com o agasalho que sobrava. Ele deu uma guinada, rolou para o centro do leito e continuou o sono. Naquela manhã, ela, assim de pé, estava horrenda: a gravidez, desenvolvidíssima, subia-lhe a camisa à frente, como um sino Coçou as guedelhas empastadas. A humidade do chão electrizou-a, num arrepio de frio. Calçou os pés calosos nuns tamancos. Numa canastra almofadada, dormiam, dois filhos. Olhou-os com enlevo. As crianças dormiam, pernitas entrelaçadas, rostos risonhos, as cabecitas a magicar fantasias. Aos pés da cama estavam as suas roupas de sempre.
Pulou para a boca de uma saia de chita, que apertou na cinta disforme. Vestiu também uma blusa remendada do mesmo tecido. Pôs um avental de ganga e foi acender a lareira. O homem voltou-se para o outro lado, tartamudeando um ronco.
Era um casal ainda jovem, a rondar pelos trinta anos. Ela, operária de uma fábrica de cortiça no Caramujo; ele, sem ofício certo, pois aproveitava o que lhe aparecia. Habitavam naquele casebre – um compartimento único, de paredes curtas, mobilado de trastes desconjuntados: uma mesa de pinho, uma arca de couro, uma cómoda manca, uma cama de ferro e um pote. Roupas, suspensas de pregos, sombreavam fantasmas nas paredes.
  • Excerto 2
Ela falou na escassez do dinheiro e na gravidez que estava prestes a estalar. Era um sacrifício trabalhar assim, já de oito meses, mas muito pior seria se não ganhasse. Quando os encarregados suspeitavam de que uma barriga excedia já sete meses suspendiam a operária. Mas todas as encobriam o melhor possível, e trabalhavam até à véspera.
Naquele sábado, porém, ela esperava uma grande novidade: na fábrica, a comissão de mulheres ia conhecer a resposta ao pedido de aumento de salário, solicitado na semana anterior.
O companheiro meneou a cabeça, numa expressão azeda:
- Não vejo jeitos…
Ela manteve um clarão de esperança no olhar:
- Talvez…
Era pedindo, que se conseguia sempre alguma coisa. Nada caía do céu, sobre os pobres – a não ser trabalho ruim e a vida cada vez mais enrascada. Os fiados atrasados levavam a féria dos sábados. Das quatro tendas do sítio, só uma lhes fiava ainda: a tia Gertrudes. Nas restantes era passar de largo, curvados de vergonha.
  • Excerto 3
O primeiro aviso espalha o sobressalto nos retardatários. Dez minutos para alcançar o chapeiro – onde as fichas de zinco testemunharão a sua pontualidade. Homens, mulheres e crianças, de saquitel ao ombro ou de cestito na mão, a dar que dar, correm, saltitam pelas azinhagas pedregosas. Pernas dormentes da jornada, pés descalços, gretados, pés calçados de alpargatas, de sapatões cambados. Mulheres dos arredores mais longínquos: (…); quinze, vinte e até trinta quilómetros palmilhados todos os dias, na ida e no regresso. Marcham em grupos – grupos que engrossam no macadame, na serpentina de asfalto. As operárias superam os companheiros em número. Uma parada de corpos, de fisionomias – interminável. Um descola, e logo, vários, tementes ao segundo apito, que está a estoirar, o seguem na correria…
Na Cova da Piedade, através do jardim abandonado ou das artérias que circundam os muros fabris, ondula um mar de mulheres. Mulheres de todas as idades e feitios. Mulheres de luto, mulheres grávidas, mulheres mirradas, musculosas, disformes – gente moldada pelo esforço e pelo sacrifício.
  • Excerto 4
Às vezes, de manhã, no largo de Cacilhas, o Ernesto e os companheiros fazem rapina nas camionetas de peixe, vindas de Sesimbra. A Guarda-Fiscal anda sempre em cima deles, mas o rapazio tem pé leve e olho vivo. Também no cais do Ginjal, junto às fábricas de conservas, quando chegam os buques prenhes de sardinha, os catraios estão presentes. Surgem sorrateiros, à formiga, muito sossegadinhos.
Abrem-se os porões do buque. Dois estivadores descem lá para baixo, alojam-se, mergulhando as pernas nuas na salmoira, pejada de peixe; e vá de encher cestos que são arremessados para o camarada do tombadilho. Este, por sua vez, passa-os a um terceiro, que, no cais, os vaza nas canastras das varinas. As mulheres não param mais no cá-e-lá, de canastra à cabeça e quadris bailões. É a vez da malta; recurvam os arames – as inseparáveis ganchetas – e vá de tirar das canastras, à sucapa, três, quatro sardinhas de uma puxadela. As varinas praguejam, ciosas do peixe que não lhes pertence, e o guarda-fiscal, sempre bem presenteado, corre a distribuir puxões de orelhas, pontapés e dolorosos cachações. Mas, ao fim da tarde, juntou-se, quase sempre, uma ou outra mão de peixe que, em casa, faz um arranjão. Se os vícios apertam, surge um acordo entre o grupo delinquente: reunir a sardinha para ser vendida na vila; o lucro apurado transforma-se em cigarros, vinho e cinema.
  • Para saber mais

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“O processo de censura da obra Bocage de Romeu Correia” dá título à exposição, que apresenta o texto resultante da intervenção censória do Estado Novo, nunca antes revelado em público com os cortes marcados a “lápis azul” e as informações dos censores sobre o que era ou não permitido ser representado em palco durante o período do Estado Novo, regime político fascista que vigorou em Portugal entre 1933 e 1974, constam da exposição. https://osetubalense.com/opiniao/2023/08/08/500-e-mais-palavras/


Romeucorreiajornal.JPG
Página da revista Mundo Literário sobre a 1ª edição do livro Sábado Sem Sol da qual se reproduz o seguinte excerto:
Porém, a primeira grande qualidade de Romeu Correia reside na extraordinária habilidade de nos dar um diálogo vivo e natural — coisa que raramente acontece entre os que, como o autor de "Sábado sem Sol", não tem atrás de si uma longa experiencia da arte de escrever. A segunda, o bom aproveitamento de pormenores felizes, o que da aos seus contos a impressão de coisa mais vista do que imaginada. Ora, se e certo que a obra de arte tem de ser criação — e aqui o factor imaginação tem uma inestimável importância — a verdade é que essa imaginação não terá elementos fecundos e trabalho se não estiver bem assente na observação da realidade. Romeu Correia, ao que nos parece, é senhor de um poder de observação e de um conhecimento dessa realidade que julgamos excelentes. Falta-lhe, talvez, ainda, o poder artístico que lhe permita "recriá-la", de modo a produzir obra que verdadeiramente se possa impor. Romeu Correia está, pois, perante um dilema: ou fica satisfeito com o que fez, ou considera o seu "Sábado sem Sol" como o primeiro passo, balbuciante ainda, o longo e penoso caminho que tem à sua frente. No primeiro caso, nada de inteiramente serio poderá realizar, visto que, apesar das apreciáveis qualidades que nele encontramos, o seu livro está demasiado eivado de imperfeições para que, por si só, possa ter mais do que um momentâneo interesse. No segundo caso — e esta é a única atitude aceitável e a única fecunda — então, sim, tenhamos esperança em Romeu Correia! O artista — o verdadeiro artista — vive em constante insatisfação e em constante desejo de aperfeiçoamento. In: [3]

https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/livrosqueforamnoticia/Luuanda/3/Republica_das%20letrasedasartes_29Jan1965_0001.pdf

https://www.mun-setubal.pt/bocage-censurado-em-mostra/?doing_wp_cron=1707313514.3692550659179687500000

Censura livroSabadosemsol.JPG
https://apps.cm-almada.pt/arquivohistorico/Docs/13_Expo_Romeu_Correia_Vida_e_Obra.pdf]]



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