Correia, Romeu - Livros Proibidos

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Leitura – Sábado sem Sol, Romeu Correia

A mulher sentou-se na cama, tacteou o tampo de um caixote, que servia de mesinha de cabeceira, e pegou na caixa de fósforos. Riscou um. A cabeça do fósforo saltou, produzindo um estalido e uma faísca. - Ra’is te parta! Experimentou outro. Uma chama amarela deixou-lhe ver as coisas. Era um sórdido pardieiro – chão térreo, sarrafos no tecto, as telhas em escamas, por cima. Acendeu uma vela de estearina que saía do gargalo de uma garrafa. A claridade cresceu. Safou, então, as pernas da manta e, ao atingir o chão, cobriu melhor o homem com o agasalho que sobrava. Ele deu uma guinada, rolou para o centro do leito e continuou o sono. Naquela manhã, ela, assim de pé, estava horrenda: a gravidez, desenvolvidíssima, subia-lhe a camisa à frente, como um sino Coçou as guedelhas empastadas. A humidade do chão electrizou-a, num arrepio de frio. Calçou os pés calosos nuns tamancos. Numa canastra almofadada, dormiam, dois filhos. Olhou-os com enlevo. As crianças dormiam, pernitas entrelaçadas, rostos risonhos, as cabecitas a magicar fantasias. Aos pés da cama estavam as suas roupas de sempre. Pulou para a boca de uma saia de chita, que apertou na cinta disforme. Vestiu também uma blusa remendada do mesmo tecido. Pôs um avental de ganga e foi acender a lareira. O homem voltou-se para o outro lado, tartamudeando um ronco. Era um casal ainda jovem, a rondar pelos trinta anos. Ela, operária de uma fábrica de cortiça no Caramujo; ele, sem ofício certo, pois aproveitava o que lhe aparecia. Habitavam naquele casebre – um compartimento único, de paredes curtas, mobilado de trastes desconjuntados: uma mesa de pinho, uma arca de couro, uma cómoda manca, uma cama de ferro e um pote. Roupas, suspensas de pregos, sombreavam fantasmas nas paredes.

                                                   “Novela Interrompida”, Sábado sem Sol, Romeu Correia




Ela falou na escassez do dinheiro e na gravidez que estava prestes a estalar. Era um sacrifício trabalhar assim, já de oito meses, mas muito pior seria se não ganhasse. Quando os encarregados suspeitavam de que uma barriga excedia já sete meses suspendiam a operária. Mas todas as encobriam o melhor possível, e trabalhavam até à véspera. Naquele sábado, porém, ela esperava uma grande novidade: na fábrica, a comissão de mulheres ia conhecer a resposta ao pedido de aumento de salário, solicitado na semana anterior. O companheiro meneou a cabeça, numa expressão azeda: - Não vejo jeitos… Ela manteve um clarão de esperança no olhar: - Talvez… Era pedindo, que se conseguia sempre alguma coisa. Nada caía do céu, sobre os pobres – a não ser trabalho ruim e a vida cada vez mais enrascada. Os fiados atrasados levavam a féria dos sábados. Das quatro tendas do sítio, só uma lhes fiava ainda: a tia Gertrudes. Nas restantes era passar de largo, curvados de vergonha. O Eduardo, na Banática, não era efectivo. Tinha uma semana de trabalho, e um mês ao alto. Nos campos, não metiam gente: sobravam os ganhões. A uma légua dali, na praia da Fonte da Telha, era uma penúria. Uma noite perdida no mar e, muitas vezes, dez, quinze tostões de paga. Os donos das companhias tudo levavam – processos velhos, contas antigas, tão injustas que até faziam doer o coração. (…) A Benvinda ergueu o petiz mais novo da canastra, a espernear e a berrar, e lavou-lhe a carita no alguidar de barro. Dois açoites bem assentes no cuzito reduziram o pequeno rebelde a lágrimas sentidas. O irmão, o Luisinho, mais ponderado, lavou-se com todo o propósito, olhando de soslaio. As papas a ferver transbordaram do tacho, escorrendo e pingando nas brasas. A mulher correu a evitar maior desperdício. (…) - Nada de maluquices, ouviste? Faz com que a comida chegue até à noite. Comam aos bocadinhos. Quando o menino chorar, dá-lhe umas colheres. Juízo! Se partirem alguma coisa, logo gozam!... E saiu, dando uma volta à chave na fechadura enorme.

                                                 “Novela Interrompida”, Sábado sem Sol, Romeu Correia

O primeiro aviso espalha o sobressalto nos retardatários. Dez minutos para alcançar o chapeiro – onde as fichas de zinco testemunharão a sua pontualidade. Homens, mulheres e crianças, de saquitel ao ombro ou de cestito na mão, a dar que dar, correm, saltitam pelas azinhagas pedregosas. Pernas dormentes da jornada, pés descalços, gretados, pés calçados de alpargatas, de sapatões cambados. Mulheres dos arredores mais longínquos: (…); quinze, vinte e até trinta quilómetros palmilhados todos os dias, na ida e no regresso. Marcham em grupos – grupos que engrossam no macadame, na serpentina de asfalto. As operárias superam os companheiros em número. Uma parada de corpos, de fisionomias – interminável. Um descola, e logo, vários, tementes ao segundo apito, que está a estoirar, o seguem na correria… Na Cova da Piedade, através do jardim abandonado ou das artérias que circundam os muros fabris, ondula um mar de mulheres. Mulheres de todas as idades e feitios. Mulheres de luto, mulheres grávidas, mulheres mirradas, musculosas, disformes – gente moldada pelo esforço e pelo sacrifício.

                                                   “Novela Interrompida”, Sábado sem Sol, Romeu Correia










Pela azinhaga poeirenta, uma nuvem humana avançava num borborinho tempestuoso. Era massa ondulante que se amoldava, em contorções de serpente infindável, às curvas dos valados esquecidos. Duas mil mulheres – mulheres de toas as fábricas, de todas as idades e feitios. Era um cortejo de gente sebenta, andrajosa, gente que a cortiça e o suor sujara, desesperara e unira naquela marcha que fazia tremer a terra, calcada por milhares de pés. Nos campos próximos, nas courelas bravias dos bairros de lata, velhos e crianças abriam as bocas, abismados daquilo que vinha na azinhaga. E chamavam as famílias, e vinham também os vizinhos, a correr pelos campos incultos, para contemplar o cortejo apocalíptico. Os cães ladravam ao longe. As vacas deixavam o pasto e olhavam, olhavam mansamente. O céu estava cheio de nuvens enormes. Um vento, que não soprava cá em baixo, levava-as numa direcção caprichosa. (…) O sargento, à frente da força, desembainhou a espada comprida e, aos berros, mandou retroceder. As mulheres da vanguarda pararam, receosas, olhando as espingardas. Eram trinta militares, homens de várias idades, que exerciam a profissão de defender a ordem. As grevistas da retaguarda empurraram as receosas, num alarido ensurdecedor. Os guardas, insultados, entreolharam-se na esperança de aquilo acabar a bem. O sargento gritou, mais uma vez, a pedir a dispersão. A sua voz, guinchada, perdeu-se no borborinho da multidão. O choque era inevitável. Um soldado notou a consorte entre as grevistas e berrou-lhe: - Sai daí, Laurinda. Não ouves? E correu a esbofeteá-la. As camaradas apartaram-nos. Intervieram também vários guardas. Num vaivém furioso, o sargento fez cair a espada sobre a onda humana. Houve braços erguidos com nervosismo, para salvaguardar o rosto e o tronco. O mulherio da retaguarda, na ânsia de ser útil, acorreu em socorro das agredidas. Os trinta militares foram envolvidos, atropelados pela nuvem humana. A algazarra redobrou. Algumas coronhas de espingarda entraram a malhar. Guardas rolaram por terra, calcados por pés que parecia nunca mais acabarem. Brotava sangue de alguns rostos. O sargento, esbaforido, arrancada a espada das mãos gordas, sacou da pistola e deu dois tiros para o ar. Pânico. Fugiram mulheres para as ruas, para os caminhos vizinhos; outras, entrincheiraram-se atrás das árvores, de andaimes e nas valas dos casais. Arremessavam pedras. Alguns militares pulavam, ridiculamente, evitando os projectéis. Quebravam-se vidros nos prédios fronteiriços. As coronhas não paravam de cair no lombo das mais ousadas. Garotos maltrapilhos, quentes de heroísmo, sobre os telhados, castigavam a tropa com as fisgas certeiras… Chegaram dois caminhões carregados de homens e de metralhadoras. Era o reforço. Um tiro partiu – e prostrou uma mulher. A luta mudou de feição. E as grevistas dispersaram em debandada. Cada uma correu para seu lado. As residências foram invadidas, os campos devassados, as lojas encheram-se de freguesia. A guarda ficou a rodear as prisioneiras: uma morta; uma grávida, que não podia correr; quatro feridas; e mais sete que foram cercadas pelos homens dos caminhões. Das que se esconderam nas moradias e nos estabelecimentos, ou nas terras, onde as sementeiras foram pisadas, nenhuma foi denunciada. O sigilo foi absoluto. Mas a esposa e as filhas do engenheiro Lobato, receosas de grandes desgraças, acenderam duas velas junto da imagem da Virgem para que Ela afastasse, para bem longe, aquela gente reles e malfazeja.

                                                   “Novela Interrompida”, Sábado sem Sol, Romeu Correia