Peça de teatro Filodemo - Camões

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Filodemo
Filodemo é uma comédia de Luís de Camões.
Foi composto na Índia e dedicado ao vice-rei Dom Francisco Barreto. É uma comédia de moralidade em cinco atos(...). O tema versa sobre os amores de um criado, Filodemo, pela filha, Dionisa, do fidalgo em casa de quem serve, com traços autobiográficos. Como as suas duas outras peças, o conteúdo geral da obra combina o nacionalismo e a inspiração clássica, na tradição das comédias de Gil Vicente.
In: Wikipedia

TEXTO

Filodemo
Comédia feita por Luís de Camões, representada na Índia a Francisco Barreto1, em a qual entram as figuras seguintes:
FILODEMO, criado de DOM LUSIDARDOS; VILARDO, seu moço; SOLINA, criada; DIONISA, filha; VENADOURO; DORIANO, namorado; FLORIMENA, etc.
ARGUMENTO DO AUTO
Um Fidalgo Português que acaso andava nos Reinos de Dinamarca, como por largos amores e maiores serviços tivesse alcançado o amor de uã filha d’el-Rei, foi-lhe necessário fugir com ela em u˜ a galé, porquanto havia dias que a tinha prenhe. E, de feito, sendo chegados à costa d’Espanha, onde ele era senhor de grande património, armou-se-lhe grande tormenta que, sem nenhum remédio, dando a galé à costa, se perderam todos miseravelmente, senão a Princesa, que em uã tábua foi à praia. A qual, como chegasse o tempo de seu parto, junto de uã fonte pariu duas crianças, macho e fêmea. E não tardou muito que um pastor Castelhano que naquelas partes morava, ouvindo os tenros gritos dos meninos, lhe acudiu a tempo que a mãe já tinha espirado. Crescidas enfim as crianças debaixo da humanidade e criação daquele pastor, o macho, que Filodemo se chamou, à vontade de quem os bautizara, levado da natural inclinação, deixando o campo se foi para a cidade, aonde, por músico e discreto, valeu muito em casa de Dom Lusidardo, irmão de seu Pai, a quem muitos anos serviu sem saber o parentesco que entre ambos havia. E como de seu pai não tivesse herdado mais que os altos espritos, namorou-se de Dionisa, filha de seu senhor e tio, que incitada ao que por suas obras e boas partes merecia, ou porque elas nada enjeitam, lhe não queria mal. Aconteceu mais que Venadoro, filho de Dom Lusidardo, mancebo fragueiro e muito dado ao exercício da caça, andando um dia no campo após um cervo se perdeu dos seus e, indo dar em uã fonte onde estava Florimena, irmã de Filodemo, que assi lhe puseram o nome, enchendo u˜ a talha d’água, se perdeu d’amores por ela, que se não soube dar a conselho, nem partir-se donde ela estava, até que seu Pai o não foi buscar. O qual, informado pelo Pastor que a criara, que era homem sábio na arte mágica, e como a criara, não teve por mal de casar a Filodemo com Dionisa, sua filha e prima de Filodemo e a Venadoro, seu filho, com Florimena, sua sobrinha, irmã de Filodemo Pastor. E também, pela muita renda que tinha, que de seu Pai ficara, de que eles eram verd seadeiros herdeiros. E das mais particularidades da comédia fará menção o auto, que é o FILODEMO Pois falai, eramá, falai o seguinte.

FILODEMO
Vilardo, moço!
VILARDO
Si, ei-lo vai!
E saí cá pera a sala!
O vilão como se cala!
VILARDO
Pois, senhor, saio a meu pai,
Que quando dorme não fala.
FILODEMO
Trazei cá uã cadeira.
Ouvis, vilão?
VILARDO
Senhor, si.
Se me ela não traz a mi,
Vejo-lhe ruim maneira.
FILODEMO
Acabai, vilão ruim!
Que moço pera servir!
Quem tem as tristezas minhas,
Quem puduesse assim dormir!
VILARDO
Pardeus! Senhor, nestas manhãzinhas
Não há í senão cair.
Por demais é trabalhar
Que este sono se me ausente.
FILODEMO
Porquê?
VILARDO
Porque há de assentar
Que, se não for com pão quente,
Não se há de desaferrar
FILODEMO
Ora, i pelo que vos mando,
Vilão feito de fermento!
Triste do que vai passando,
Sem ter outro mantimento
Que o que está fantasiando!
Uã só cousa me desculpa
Deste cuidado que sigo:
Ser de tamanho perigo,
Que cuido que a mesma culpa
Me fica sendo castigo.

Traz o moço a cadeira em que se assenta, e diz FILODEMO:

FILODEMO
Ora quero praticar
Só comigo um pouco aqui,
Que depois que me perdi,
Desejo de me tomar
Estreita conta de mi,
Vai pera fora, Vilardo...
Torna cá. Vai-me saber
Se se quer já lá erguer
O senhor Dom Lusidardo,
E vem-mo logo dizer.
Ora bem, minha ousadia:
Sem asas, pouco segura,
Quem vos deu tanta valia,
Que subais a fantesia
Aonde não chega a ventura?
Por ventura eu não naci
No mato, sem mais valer
Qu’o gado ao pasto trazer?
Pois donde me veo a mi
Saber-me tão bem perder?

Filodemo
Eu, nascido entre os pastores,
Fui trazido dos currais,
E dentre meus naturais
Pera a casa dos senhores,
Donde vim a valer mais.
E agora, logo tão cedo,
Quis mostrar a condição
De rústico e de vilão!
Dando-me a Fortuna o dedo,
Lhe quero tomar a mão!
Mas, oh, que isto não é assi,
Nem são vilãos meus cuidados,
Ò que deles entendi!
Mas antes, de sublimados,
Os não posso crer em mi.
Porque, como poderei crer
Que me faça minha estrela
Tão alta pena sofrer,
Que somente pola ter
Mereço eu a glória dela?
Senão, se Amor, d’atentado,
Por que não me aqueixe dele,
Tem por ventura ordenado
Que mereça o meu cuidado,
Só por ter cuidado dele.