Peça de teatro Filodemo - Camões
Filodemo
Filodemo é uma comédia de Luís de Camões.
Foi composto na Índia e dedicado ao vice-rei Dom Francisco Barreto. É uma comédia de moralidade em cinco atos(...). O tema versa sobre os amores de um criado, Filodemo, pela filha, Dionisa, do fidalgo em casa de quem serve, com traços autobiográficos. Como as suas duas outras peças, o conteúdo geral da obra combina o nacionalismo e a inspiração clássica, na tradição das comédias de Gil Vicente.
In: Wikipedia
Personagens:
Filodemo, Vilardo (seu moço), Dionisa, Solina (sua moça), Venadoro, Monteiro, Duriano (amigo de Filodemo), Bobo (filho do Pastor), Florimena (pastora), Dom Lusidardo, Doloroso (amigo de Vilardo) e três pastores (que aparecem a bailar).
Representado provavelmente em 1555, na Índia.(...) O auto conta a história de um fidalgo português, em viagem pelo reino da Dinamarca, que se apaixonou pela filha do rei e a engravidou. Obrigado a fugir com ela, foi "apanhado" por um naufrágio na costa de Espanha e morreu. A princesa conseguiu chegar à costa e aí pariu duas crianças: um rapaz e uma rapariga. Morrendo de seguida, as crianças foram encontradas por um pastor castelhano que as criou, dando-lhes os nomes de Filodemo e Florimena.
Em idade adulta, Filodemo, amante da música e da vida citadina, abandonou o campo e foi para a cidade, onde passou a servir em casa de D. Lusidardo, irmão de seu pai, mas cujo grau de parentesco desconhecia. Aí se enamorou por Dionisa, filha de seu senhor e como tal sua prima. Entretanto, Venadoro, filho de D. Lusidardo e irmão de Dionisa, encontrou, durante uma caçada, Florimena, irmã de Filomeno e sua prima, e por ela se apaixonou. Este encontro resultou no reconhecimento das personagens Filodemo e ela própria, tornando possível o casamento entre os dois pares.
A peça pretende demonstrar o poder do amor, capaz de superar as desigualdades sociais.
Apesar do desenrolar romanesco desta comédia, da sua dispersão pelo tempo e pelo espaço, da ação dupla e paralela, qualidades incompatíveis com a condensação exigida pelo teatro moderno, Filodemo pode ser classificado como uma das obras mais interessantes da maturidade de Camões. De facto, quer do ponto de vista formal, através da sua grande variedade rítmica, quer pela riqueza de observações psicológicas profundas, Filodemo é uma das peças quinhentistas de maior interesse.
In: https://www.infopedia.pt/artigos/$filodemo
v
TEXTO
Filodemo
Comédia feita por Luís de Camões, representada na Índia a Francisco Barreto1, em a qual entram as figuras seguintes:
FILODEMO, criado de DOM LUSIDARDOS; VILARDO, seu moço; SOLINA, criada; DIONISA, filha; VENADOURO; DORIANO, namorado; FLORIMENA, etc.
ARGUMENTO DO AUTO
Um Fidalgo Português que acaso andava nos Reinos de Dinamarca, como por largos amores e maiores serviços tivesse alcançado o amor de uã filha d’el-Rei, foi-lhe necessário fugir com ela em u˜ a galé, porquanto havia dias que a tinha prenhe. E, de feito, sendo chegados à costa d’Espanha, onde ele era senhor de grande património, armou-se-lhe grande tormenta que, sem nenhum remédio, dando a galé à costa, se perderam todos miseravelmente, senão a Princesa, que em uã tábua foi à praia. A qual, como chegasse o tempo de seu parto, junto de uã fonte pariu duas crianças, macho e fêmea. E não tardou muito que um pastor Castelhano que naquelas partes morava, ouvindo os tenros gritos dos meninos, lhe acudiu a tempo que a mãe já tinha espirado. Crescidas enfim as crianças debaixo da humanidade e criação daquele pastor, o macho, que Filodemo se chamou, à vontade de quem os bautizara, levado da natural inclinação, deixando o campo se foi para a cidade, aonde, por músico e discreto, valeu muito em casa de Dom Lusidardo, irmão de seu Pai, a quem muitos anos serviu sem saber o parentesco que entre ambos havia. E como de seu pai não tivesse herdado mais que os altos espritos, namorou-se de Dionisa, filha de seu senhor e tio, que incitada ao que por suas obras e boas partes merecia, ou porque elas nada enjeitam, lhe não queria mal. Aconteceu mais que Venadoro, filho de Dom Lusidardo, mancebo fragueiro e muito dado ao exercício da caça, andando um dia no campo após um cervo se perdeu dos seus e, indo dar em uã fonte onde estava Florimena, irmã de Filodemo, que assi lhe puseram o nome, enchendo u˜ a talha d’água, se perdeu d’amores por ela, que se não soube dar a conselho, nem partir-se donde ela estava, até que seu Pai o não foi buscar. O qual, informado pelo Pastor que a criara, que era homem sábio na arte mágica, e como a criara, não teve por mal de casar a Filodemo com Dionisa, sua filha e prima de Filodemo e a Venadoro, seu filho, com Florimena, sua sobrinha, irmã de Filodemo Pastor. E também, pela muita renda que tinha, que de seu Pai ficara, de que eles eram verd seadeiros herdeiros. E das mais particularidades da comédia fará menção o auto, que é o FILODEMO Pois falai, eramá, falai o seguinte.
FILODEMO
Vilardo, moço!
VILARDO
Si, ei-lo vai!
E saí cá pera a sala!
O vilão1 como se cala!
VILARDO
Pois, senhor, saio a meu pai,
Que quando dorme não fala.
FILODEMO
Trazei cá uã cadeira.
Ouvis, vilão?
VILARDO
Senhor, si.
Se me ela não traz a mi,
Vejo-lhe ruim maneira.
FILODEMO
Acabai, vilão ruim!
Que moço pera servir!
Quem tem as tristezas minhas,
Quem pduesse assim dormir!
VILARDO
Pardeus! Senhor, nestas manhãzinhas
Não há í senão cair.
Por demais é trabalhar
Que este sono se me ausente.
FILODEMO
Porquê?
VILARDO
Porque há de assentar
Que, se não for com pão quente,
Não se há de desaferrar
FILODEMO
Ora, i pelo que vos mando,
Vilão feito de fermento!
Triste do que vai passando,
Sem ter outro mantimento
Que o que está fantasiando!
U˜ a só cousa me desculpa
Deste cuidado que sigo:
Ser de tamanho perigo,
Que cuido que a mesma culpa
Me fica sendo castigo.
Traz o moço a cadeira em que se assenta, e diz FILODEMO:
FILODEMO
Ora quero praticar
Só comigo um pouco aqui,
Que despois que me perdi,
Desejo de me tomar
Estreita conta de mi,
Vai pera fora, Vilardo...
Torna cá. Vai-me saber
Se se quer já lá erguer
O senhor Dom Lusidardo,
E vem-mo logo dizer.
Ora bem, minha ousadia:
Sem asas, pouco segura,
Quem vos deu tanta valia,
Que subais a fantesia
Aonde não chega a ventura?
Por ventura eu não naci
No mato, sem mais valer
Qu’o gado ao pasto trazer?
Pois donde me veo a mi
Saber-me tão bem perder?
Filodemo
Eu, nacido entre os pastores, Fui trazido dos currais, E dantre16 meus naturais Pera a casa dos senhores, Donde vim a valer mais. E agora, logo tão cedo, Quis mostrar a condição De rústico e de vilão! Dando-me a Fortuna o dedo, Lhe quero tomar a mão! Mas, oh, que isto não é assi, Nem são vilãos meus cuidados, Ò que deles entendi! Mas antes, de soblimados17
,
Os não posso crer em mi. Porque, como poderei crer Que me faça minha estrela18 Tão alta pena sofrer, Que somente pola ter Mereço eu a glória19 dela? Senão, se Amor, d’atentado, Por que não me aqueixe dele, Tem por ventura ordenado Que mereça o meu cuidado20
,
Só por ter cuidado dele.
Vem VILARDO, e diz: VILARDO O senhor Dom Lusidardo
Dorme com todo o convento
E ele só com o pensamento,
Quer estar fazendo alardo21 De castelinhos de vento! Pois tão cedo se vistio, Chame a hora conforme.
[F, 269v] 55 60 65 70 75 80 luiz vaz de camões 26
Pesar de quem me pario! Ainda o Sol não saío,
E se vem à mão22, também dorme!
Ele quer-se alevantar Assi pela menhãzinha! Quero-o desenganar, Que nem por muito madrugar No amaneçe mais aína23
. FILODEMO Traze-me a viola cá. VILARDO Voto a Deus24 que me vou rindo!
Senhor, também durmirá.
FILODEMO Traze-a, moço! VILARDO Si, virá,
Se não estiver dormindo.
FILODEMO Ora! I pelo que vos mando,
Não gracejeis!
VILARDO Eis-me, vou,
Pois, pesar de D. Fernando25
,
Por ventura sou eu grou26? Sempr’hei-d’estar vigiando?
FILODEMO Ah! Senhora, que podeis
Ser remédio do que peno27
,
Quão mal ora cuidareis Que viveis, e que cabeis Num coração tão pequeno! Se vos fosse apresentado Este tormento em que vivo, Creríeis que foi ousado
Este vosso, de criado,
Tornar-se-vos em cativo28
. 85 90 95 100 105 110 filodemo 27 VILARDO Ora eu creo e é verdade,
Que estou de todo acordado, Que meu amo é namorado, Que a mim me dá na vontade Andar de todo abalado. E se é tal, eu daria Por conhecer a donzela, A ração d’hoje este dia, Porque a desenganaria, Nomais que por haver dó dela. Eu havia-lhe de perguntar: Vós, senhora, que comeis? Se comeis d’ouvir cantar, De falar bem e trovar, Em boa hora casareis. Porém, se vós comeis pão, Tende, senhora, resguardo, Que eis aqui está Vilardo, Que é assi como camaleão29: Das cores fazer Alardo.
E se vós sois das gamenhas30 ,
E houverdes d’atentar Por mais que por manducar, Mi cama las duras peñas, Mi dormir siempre es velar31
.
A viola, senhor, vem, Sem primas nem derradeiras. Mas sabe o que lhe convém, Que, se quiser tanger bem32
,
Há-de haver mister terceiras. E se estas cantigas vossas Não forem pera escutar, E quiserdes espirar, Há mister cordas mais grossas, Por que não possam quebrar33
. [F, 270r] 115 120 125 130 135 140 145 luiz vaz de camões 28 FILODEMO Vai pera fora! VILARDO (Já venho). FILODEMO Que eu só desta fantesia
Me sostenho e me mantenho.
VILARDO Camanha vista que tenho,
Que vejo a estrela no dia!
Canta FILODEMO: FILODEMO Ado sube el pensamiento,
Sería gloria inmensa Si allá fuesse quien lo piensa. Qual espírito divino Me fará a mi sabedor, Pois que tão alto imagino, Deste meu mal, se é maior, Se é, por dita, desatino? Se é amor, digam-me qual Pode ser seu fundamento, Que este é sobrenatural, Ou porque empregou tão mal Um tão alto pensamento. Se é doudice, como em tudo, A vida me abrasa e queima, Ou, quem vio num peito rudo34 Desatino tão sesudo35
,
Que toma tão doce teima! Ah, senhora Dionisa, Onde a natureza humana Se mostrou tão soberana, Que o [que] vós valeis me avisa, E o que eu peno m’engana!
150 155 160 165 170 filodemo 29 Vem SOLINA. SOLINA Tomado estais vós agora,
Senhor, com o furto nas mãos36!
FILODEMO Ah, Solina, minha senhora,
Quantos pensamentos vãos Me ouviríeis lançar fora!
SOLINA Oh! Senhor, quão bem que soa
O tanger de quando em quando! Bem sei eu u˜ a pessoa, Que há bem u˜ a hora boa, Que vos está escuitando.
FILODEMO Por vida vossa! Zombais?
Quem é? Quereis-mo dizer?
SOLINA Quereríei-lo vós saber?
Bofé37, se me não peitais38
... FILODEMO Dar-vos-ei quanto tiver,
Pera tais tempos como estes. Quem tivesse u˜ a voz dos Céos, Pois escuitar me quisestes!
SOLINA Assim pareça eu a Deos,
Como lhe vós parecestes!
FILODEMO A senhora Dionisa
Quer-se já alevantar?
SOLINA Deos me deixe bem casar,
Como despida em camisa Se ergueo por vos escutar.
FILODEMO Em camisa alevantada!
Tão ditosa é minha estrela, Ou ma trazeis enganada?
SOLINA Pois bem me defendeo39 ela
Que vos não dixesse nada!