Uma quarteirense que Camões amou
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Em 1980 assinalou-se o 4º Centenário da morte do maior vate da Língua portuguesa. Porém, perdeu-se então a oportunidade de, através de uma singela placa evocativa, se perpetuar a existência no Algarve da casa que foi berço a D.a Francisca de Aragão, considerada como a musa inspiradora dos Lusíadas. O edifício, na praia de Quarteira, denominada «Estalagem da Cegonha», foi, no século XVI, residência de Nuno Rodrigues Barreto, alcaide-mor de Faro e vedor da Fazenda do Algarve, pai da «loira, viva, esperta e azougada» Francisca de Aragão. Foi nessa vetusta casa apalaçada do morgadio dos Barretos, que nasceu a formosa Francisca de Aragão, que viria a ser figura de proa nas cortes de Portugal e de Espanha. Trata-se de um assunto pouco conhecido sobre uma jovem algarvia, originária da distinta família dos Barretos, que pontificou na corte portuguesa nos finais do século XVI, no período de transição da perda da nacionalidade para a dominação filipina, cuja descendência foi também eminente na vizinha Espanha.
UMA QUARTEIRENSE QUE CAMÕES AMOU
José Carlos Vilhena Mesquita
Muito embora o ano de 1980 haja assinalado de uma forma brilhante a memória e a obra do maior vate da Língua portuguesa, não podemos deixar de reclamar a perda, inadmissível, dessa flagrante oportunidade para, através de urna singela placa evocativa, se perpetuar a existência no Algarve da casa que foi berço a D.a Francisca de Aragão, considerada pelo historiador Teófilo Braga como a musa inspiradora dos Lusíadas.
Efectivamente, temos a certeza de que o edifício, situado nas imediações da praia de Quarteira, que se encontra sob exploração da empresa turística Lusotur, neste caso denominada «Estalagem da Cegonha», foi, no século XVI, residência de Nuno Rodrigues Barreto, alcaide-mor de Faro e vedor da Fazenda do Algarve, pai da «loira, viva, esperta e azougada» Francisca de Aragão. Na verdade, tudo leva a crer que a actual Estalagem da Cegonha foi, sem sombra para dúvidas, a vetusta casa apalaçada, do morgadio dos Barretos, pois que outra ali não deixou memória de ser tão rica e imponente quanto esta.
Curioso se torna assinalar que a formosa Francisca de Aragão tinha ascendência régia, pois que era filha de D.' Leonor de Mila e neta de D. Afonso de Aragão, mestre de Calatrava e duque de Villahermosa, reconhecido como filho bastardo de D. João II, rei de Aragão.1 Mas, pelo lado paterno as suas raízes não eram menos importantes, na medida em que seu pai (irmão do célebre D. Francisco Barreto que se notabilizou como vice-rei da Índia) era sobrinho de D. Isabel de Melo Barreto e Menezes, mãe de D.' Leonor de Castro, dama de honor da imperatriz D. Isabel, que
Cf. D. António Caetano de Sousa, História Genealógica da Casa Real Portuguesa, 26 vols., Coimbra, Atlântida Editora. 1946-1955, tomo XI, pp. 269-270.
casou com D. Francisco de Borja, 4.° Duque de Gandia, que após enviuvar ingressou na Companhia de Jesus. A sua eloquência e bondade de alma haveriam de fazê-lo chegar à mais alta dignidade da Companhia, ao leme da qual viria a falecer com fama e cheiro de santidade, sendo por isso canonizado, no século seguinte, pela Igreja.: Descendente de reis e de santos, D.' Francisca de Aragão prontamente reclamou o seu lugar na corte, para onde partiu com apenas doze ou treze anos, ficando desde logo ao serviço da rainha D.3 Catarina, esposa de D. João III. Com o decorrer dos anos, veio esta criança a transformar-se na mais bela dama da corte, ofuscando com a sua beleza a própria infanta D. Maria, sendo por isso fervorosamente adulada pelos poetas do seu tempo que, inclusivamente, lhe dedicaram algumas das melhores composições do nosso cancioneiro geral. Por essa altura, ficaram feridos de amor alguns poetas bem conhecidos da nossa literatura, de entre os quais destacamos Pedro de Andrade Caminha, D. Manuel de Portugal. Jorge de Montemor, D. António de Almeida e D. Jorge de Menezes. Aliás, ao primeiro dos citados poetas se deve a assinatura desta formosa quintilha: «O Algarve, onde nascestes A mais honra levantastes, Aragão c'o nome honrastes Portugal engrandecestes, Porque nelle vos criastes» .3 2 Curiosamente, D.' Luísa de Gusmão, esposa de D. João IV e primeira rainha do Portugal restaurado, era trineta de Francisco de Borja (1510-1572) que, como já se disse, alcandorou-se ao posto de III Prepósito Geral da Companhia de Jesus. Morreu em Roma, a 1 de Outubro de 1572, em cheiro de santidade, sendo como tal canonizado a 12 de Abril de 1671 pelo Papa Clemente X. No ano imediato ao grande terramoto de Lisboa, o rei D. José I convenceu o Pontífice Bento XIV a considerar aquele santo como padroeiro de Portugal contra os terramotos. Vide. P. João Pereira Gomes, «Borja, Francisco de», in Dicionário de História de Portugal, 4 vols., Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1971, vol. I, pp. 359-360. 3 Cit. p. Mário Lyster Franco, Camões e a Algarvia, Lagos, edição do G. E. A.. 1978, p. 24.
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Mas, à parte estes notáveis vates, ficou célebre o mote que D.' Francisca ofertou ao galante Luís Vaz de Camões, cujo génio poético já ecoava pelos corredores do Paço, e que se resume a esta simples frase: «Mas, porém a que cuidados?». O temperamental e fogoso «Trinca Fortes» (alcunha popular do poeta), para fazer valer a sua fama de inspirado versejador, devolveu-lhe o mote glosado de três formas diferentes, das quais não podemos escusar-nos a transcrever aquela que mais nos pareceu identificada com ambos:
«Se as penas que o amor me deu Vêm por tão suaves meios, Não há que temer receios; Que vale um cuidado meu Por mil descansos alheios? Tens uns olhos tão formosos Os sentidos enlevados Bem sei que em baixos estados São cuidados perigosos, Mas, porém, a que cuidados?»4
transparecem certos "cuidados" que impedem talvez a consumação de uma relação mais profunda. Mas porém, digamos agora, a que cuidados se refere o mote e a que cuidados se refere o poeta? Parece-nos que, a ainda 4 Quando D.' Francisca de Aragão, numa tentativa de testar o génio poético do galanteador do Paço, lhe enviou o seu verso, «Mas, porém, a que cuidados», não tardou a recebê-lo glosado de três formas diferentes acompanhado de uma carta cuja amabilidade do verbo e beleza do estilo não podemos deixar passar em claro: «Deixei-me enterrar no esquecimento de V. M., crendo me seria assi mais seguro; mas agora que é servida de me tornar a ressuscitar, por me mostrar seus poderes, lembro-lhe que ua vida trabalhosa é menos de agradecer que ua morte descansada. Mas se esta vida, que agora de novo me dá, for para ma tornar a tomar, servindo-se dela, não me fica mais que desejar que poder acertar com este mote de V. M. ao qual dei três entendimentos, segundo as palavras dele puderam sofrer. Se forem bons, é mote de V. M.; se maus, são as glosas minhas». In, Obras Completas, 5 vols., 4 edição, Lisboa, Editora Sá da Costa, 1971, vol. I, pp. 41-42.
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muito jovem e quase criança, D.3 Francisca ter-lhe-à chamado à atenção para os -cuidados" que uma menina da corte deve ter para manter as distâncias convenientes ao seu estatuto social. O poeta, por sua vez, parece quer dizer-lhe que o amor só lhe tem dado desgostos e por isso nada receie dele, até porque reconhece a diferença de estados sociais que os separam; porém a beleza dos seus olhos são tão fascinantes que merecem bem a pena esquecer esses "cuidados". A partir daqui parece ter-se desenrolado entre ambos uma forte amizade, que só não se transformou numa paixão porque, entretanto, a rainha apercebendo-se do que se estava a passar resolveu afastar o poeta para as campinas do Ribatejo. Efectivamente, tal corno afirma o Dr. Mário Lyster Franco, «a mais alta figura feminina do Paço rendeu-se aos galanteios do Poeta, entretendo e mantendo com ele, não talvez um amor material e arrebatado, propriamente dito, mas urna "terna amizade-amorosa" na feliz expressão de Júlio Dantas, um amor misto de adoração, de admiração e de ternura, que o acompanhou durante sucessivos anos e que, pela unção espiritual que principalmente o caracteriza, constitui urna das mais belas páginas da vida atribulada de Camões».5 Esta afectuosa amizade com Camões deveria ter início por alturas do seu regresso de Ceuta, talvez na segunda metade do ano de 1551 e durou até à sua detenção na cadeia do Tronco a 16 de Junho de 1552, por ter brigado com Gonçalo Borges.6 5 in Camões e a Algarvia, op. cit., p. 20. 6 «No Corpus-Christi (a 16 de Junho de 1552), aconteceu que certo Gonçalo Borges, apaniguado da Corte (porque tinha a seu cargo os arreios da Casa Real), ia atravessando a cavallo o Rocio, em direcção á rua de Santo Antão. Nas cercanias do convento de S. Domingos, fronteiro ás casas de Pero Vaz, dois mascarados o investiram com zombarias e remoques. O motejado tomou em má parte as palavras dos cavalleiros e retrucou chasqueando. Das bromas passaram a vias de facto, Luiz Vaz, que estava presente, reconhece amigos nos dois aggressores, arranca tambem da espada e fere o Gonçalo Borges no toutiço. (...) Eis porque o Poeta foi preso e encarcerado no tronco de Lisboa». Wilhelm Storck, Vida e Obras de Luís de Camões, 2.' edição, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, p. 422.
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Alguns camonistas afirmam, creio que erradamente, que data já desta época a écloga IV, pois julgam haver sido dedicada á beleza de uma jovem cujos traços se identificam com a aia da rainha. Porém, o facto de D.' Francisca de Aragão haver nascido entre 1536-37 dá-nos a firme certeza de que o poema não pode ser datado desta época, visto ser D.' Francisca ainda uma criança. Talvez seja mais correcto datá-lo de 1570, altura em que Camões regressa da Índia. Nessa época, sim, D.' Francisca de Aragão, apesar dos seus 34 anos, ainda era a dama predilecta da rainha e uma das mais finas flores do seu canteiro. Portanto, daqui se conclui que Os Lusíadas foram escritos longe da corte, o que não constitui novidade nenhuma, durante o longo exílio do poeta por terras do Oriente, e, tenho por certo, que não conheceu de forma alguma os melhores anos daquela esbelta camareira. Logo, não creio que se deva atribuir a uma adolescente de 15 anos a honra de se arvorar em musa inspiradora de Os Lusíadas, pois que o poeta daquela beleza olímpica apenas devia guardar uma fugaz recordação, dos primeiros e dos últimos anos em que frequentou a Corte de D. João III e depois a de D. Sebastião. Na verdade, quando Camões voltou a ver D.' Francisca, decorria o ano de 1570, e embora despojada da beleza angélica e juvenil que ele tanto admirara, era agora uma bela mulher, de trinta e quatro anos de idade, capaz de acender no coração do velho poeta mais uma das suas fogosas
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