Fonseca, Manuel da - Livros Proibidos
MANUEL DA FONSECA (1911 – 1993)
Grande figura da Cultura nacional é, ao mesmo tempo, um cidadão que faz parte da história da Resistência. Manuel da Fonseca tinha uma personalidade cativante, era um homem popular, que muito prestigiou o Alentejo. A sua escrita era seguida de perto pela Censura. Vigiado e perseguido pela PIDE, tanto pelo que escrevia como pela militância política, conheceu a brutalidade dos interrogatórios e dos cárceres fascistas.
Seara de Vento, Manuel da Fonseca
Seara de Vento é um romance neo-realista de Manuel da Fonseca publicado em 1958. É inspirado por um acontecimento trágico que ocorreu no Cantinho da Ribeira, lugar localizado na freguesia de Trindade, em Beja, nos anos 1930. Neste episódio um trabalhador rural é acusado de roubar cereais a um agricultor[1].
- Hás-de ver! – exclama Armanda Carrusca, com vivacidade. – Por mais que me digam que não, aquela doença do Bento é toda derivada da fome que passou. Está raquítico é o que é. E isto tem curado muita gente desenganada pelos médicos! Corta os limões, espreme-os sobre os ovos. Como num ritual misterioso, as mãos descarnadas da velha mexem-se de forma estranha, lenta. Enquanto prossegue na minuciosa tarefa, fala com voz ciciada e profunda: - Agora, espera-se que o sumo dos limões desfaça a casca dos ovos e o toucinho. Depois, bate-se tudo, com açúcar, como uma gemada. Faltam, é verdade, duas goladas de vinho do Porto. Isso é que já não consegui. Mas, descansa, mesmo assim, vai ficar bom. Pega no tacho, envolve-o num pano e vai coloca-lo na mais alta prateleira do armário. Ao descer do banco, meio curvada, olha intencionalmente para o lado da porta. - Hei-de curar o meu neto!
Seara de Vento, Manuel da Fonseca
Leva tempo a dominar-se. Por fim, exausta, o seu rosto, destroçado por fundos vincos, exprime como que séculos de esperança traída. O desânimo e a amargura enchem-lhe a voz lenta, segredada: - Bondade, religião… Era bom. Era muito bom que aqueles que falam dessas coisas as praticassem. Mas, olha… Não, tu não podes entender-me. Magicas muito, e não vês nada. Julgas que tudo acontece sem ninguém ter culpa, supões que é o destino… É isso. Supões que é o destino que levou os teus filhos a fugirem de casa, que é o destino que obrigou o teu sogro a matar-se, o teu marido a ir parar à cadeia. Pensas assim… e há muita gente da tua marca. Medrosos! Encolhe os ombros, sem desprezo nem zanga, apenas desinteressada, como se tal gente jamais pudesse pertencer ao seu mundo. Compõe o lenço em volta dos cabelos e recomeça, com desalento: - Falar, falar… Quem é que nos ouve, se até Deus nos esqueceu?
Seara de Vento, Manuel da Fonseca
Trémulo, o Palma bate os dentes. Vagamente, apercebe-se de que qualquer coisa de anormal se passa à sua volta. Corona vai de cabeça alta, farejando, numa grande atenção. Alcançada a outra margem, estreita e pouco profunda naquele sítio, enfiam as calças e as botas. Abrigando-se por todas as saliências do terreno, apesar do negrume, voltam a marchar o mais rapidamente que as forças lhes permitem. - Vamos, vamos – insiste Corona, em voz baixa. – Isso depressa. Nos longes da noite vislumbra-se já o velado luaceiro da madrugada. Os olhos doridos do Palma alongam-se, erradios. Com movimentos de autómato, desce, sobe encostas, sempre na esteira do Corona. Na lomba de um outeiro escorrega e cai. Levanta-se, torna a cair e a levantar-se, como que embriagado. Galrito ampara-o. - Homem, só mais um bocado. Paymogo é já perto. De pernas encharcadas, colando-se-lhe às calças, arrasta as botas. Muito fina, a dor continua a roer-lhe o estômago, a cabeça escalda-lhe. Grossas bagas de suor escorrem-lhe da cara, saltam a cada passada brusca. E a zoada cresce-lhe nos ouvidos até àquele súbito como que relâmpago que lhe rebenta no cérebro, deixando-o assombrado, vago. Isolado no escuro, em pleno campo, aparece a forma imprecisa de um edifício comprido, irregular. Da sombra do portão despega-se o vulto de um velho. Ouve-se-lhe a voz metálica, segredada e breve: - Buenas!... Após a entrada do último da fila, o velho ainda permanece fora por algum tempo. Vagarosos, frios, os seus olhos de lince devassam os terrenos que circundam a casa. Passa o portão, fecha-o. Espevitado o candeeiro de minas, as sombras dos homens aquietam-se contra as paredes caiadas. Erguido ao alto do braço, o candeeiro ilumina a entrada de um desvão praticado a meia altura. Junto da chama, vê-se a cara esguia do velho, de face rapada, dura. À vez, os homens empurram as cargas para dentro do desvão. Curvados, quedam-se os quatro de mão caídas, como se ainda caminhassem. O tronco do Palma avança no meio do grupo. Dobra as pernas, estende os braços, e cai, roçando pela parede. Fica sentado no chão de tijolos, a sorver o ar, de boca muito aberta. Vagamente curioso, o velho inclina o candeeiro. - Que es eso, hombre? O Palma apenas consegue mexer os lábios ressequidos. Mas todos compreendem. Corona volta-se para o velho. - Escuta, Carretero. Podes dar-lhe já alguma coisa? - Claro que si! Erguem o Palma. Corona observa-o. - Que é que tu comeste ontem? - Umas sopas d’alho… - Devias ter dito. Foi muito mau isso. De olhos embaciados, o Palma segura-o pelo braço. - Tu não vais pôr-me de lado… - A voz estrangula-se-lhe na garganta. – Não!... Quando eu comer todos os dias, posso tanto como os outros!... - Está bem. – Corona faz um sinal ao velho. – Depois falamos. De candeeiro caído ao lado da perna, o espanhol avança adiante dos quatro homens. Corredor fora, as sombras deformadas, negras, agitam-se violentamente pelas altas paredes.
Seara de Vento, Manuel da Fonseca
- Onde vais?...
- Para que lhe perguntas? – exclamou Amanda Carrusca. – Pois hoje não é domingo? Vai ter com as outras… e os outros! Vão combinar a tal ida à vila, a pedirem trabalho. Isto, agora, é assim: junta-se um bando, entra na vil e, pronto, é tudo deles!
- Ouve-me, filha!... Que vais tu lá fazer se tens trabalho?
- Vou pelo pai e pelos outros.
- Juntem-se todos, juntem-se, e vão-se meter na cova do lobo! – agoira Amanda Carrusca, levantando os braços, com um sorriso azedo. – Depois, se lhes acontecer alguma, não se queixem!
- Queixar-se, a gente? Que é que nos pode acontecer de pior do que esta vida que levamos?
A velha fita a neta com agudeza e interesse.
- Afinal…que querem vocês?
- Acabar com isto. Acabar com esta miséria em que vivemos. Nós e os outros.
Mariana avança para a porta.
- Eles ensinaram-me, avó, Sei agora o que dantes não sabia, e pus-me logo a seu lado. Eles ensinaram-me que esta vida que levamos é um crime.
- E que é que já fez em toda a sua vida para acabar com ele?
A inesperada pergunta causa profundo espanto em Amanda Carrusca. Vê a neta voltar-se, atravessar o terreiro. Com o olhar perplexo, segue-a ainda, cerro abaixo.
- Meu Deus – murmura Júlia. – Não basta já o pai para meu desassossego… Nem sei que pensar…
Seara de Vento, Manuel da Fonseca
No casebre, as refeições diárias cedo atenuam o receio de Júlia, as iras de Amanda Carrusca. Todos se mostram agradados, e apenas Mariana teima em contrariar a harmonia estabelecida. Mas as suas razões quebram-se de encontro à realidade de momento: há comida. Dos ganhos da cada ida à Espanha, o Palma apenas é largo a comprar pólvora e chumbo. Debaixo do catre tem um caixote cheio de cartuchos, sempre renovados, para a caça, no mato, aos coelhos. Descontadas as despesas de alimentação, o resto do dinheiro junta-o para reparar o casebre. No entretanto, levado na maré das esperanças, faz projectos, deita contas à vida. Optimista, esquece queixas e agravos. Esquece até o ódio a Elias Sobral.
Seara de Vento, Manuel da Fonseca
A rajada apanha-o pelo tronco, sacode-o de alto a baixo, curva-o. De punhos fechados, torce a boca como se tentasse expulsar as balas de dentro do corpo. Logo tomba, desamparado, para dentro do forno derruído. Os tiros cessam. Guardas invadem o terreiro. De cabelos desgrenhados, Amanda Carrusca surge na porta. A correr, vai debruçar-se sobre o forno. Toda ela treme, como se um frio intenso a repassasse. Os olhos muito abertos da Palma parecem fitar as labaredas fumegantes que sobem do telhado do casebre. Tem os braços estendidos sobre a pedras, e a imobilidade da morte vinca-lhe no rosto uma carregada expressão de censura. Por todos os lados, o confuso clamor de imprecações, apelos, pragas, aumenta cada vez mais. Exaltados, os camponeses tentam vencer a barreira formada pelos guardas. - Oiçam! O grito obriga-os a levantarem a cabeça. No alto do cerro, junto da orla das estevas, Amanda Carrusca aparece, de mãos erguidas. - Digam à minha neta! Digam-lhe que ela tem razão! Ouve-se como que um gemido soltado por dezenas de bocas, e os camponeses atiram-se para diante. Com a coronha da carabina no ar, um guarda avança para Amanda Carrusca. A velha volta-se, cresce, firme sobre as pernas entesadas, e os andrajos negros, batidos pelo vento, modelam-lhe o corpo seco e chato, só ossos.
Seara de Vento, Manuel da Fonseca
Obra de Manuel da Fonseca, de 1943, no prefácio à edição de 1982, o autor explica as condições particulares que rodearam a primeira edição desta obra basilar do neorrealismo português: submetido a uma censura prévia, o original da obra foi largamente truncado, correspondendo a edição de 1982 a uma tentativa de reconstituição de um manuscrito, entretanto, perdido. Ainda no prefácio, recorda com amargura a polémica receção com o que livro foi acolhido, sobretudo pela crítica, que se digladiou sobre a qualidade literária do romance. Insensível ao carácter de símbolo que os espaços e algumas personagens assumem no romance, a crítica reagiu contra uma escrita romanesca que, de acordo com coordenadas estéticas neorrealistas, rompia com cânones narrativos tradicionais, pela ausência de uma intriga que centralizasse os feixos narrativos, pela despretensão da escrita, límpida e simples, pela realidade social e regional que trazia para a literatura. Cerromaior, nome imaginário de uma vila alentejana, sugere um espaço fechado, uma atmosfera sufocante e rude, onde se desenrolaram em simultâneo as tragédias de uma povoação oprimida pela miséria e pela tirania dos senhores da Casa Vã. O espaço da prisão, com que se inicia e encerra o romance, depois de uma longa retrospetiva que descreveu o itinerário iniciático do crescimento de Adriano, numa aprendizagem da vida, das injustiças, da hipocrisia, da mesquinhez humana, e numa progressiva revolta contra a sociedade, simboliza outras prisões: a prisão das convenções sociais que impõem o recalcamento sexual de algumas personagens, nomeadamente de Adriano ou Lena; a prisão das recordações, de frases e imagens que a cada passo assolam as personagens; a prisão maior da fome e da miséria que tolhe a dignidade de ceifeiros e desempregados. No entanto, o romance vai descrevendo também um percurso de libertação, que, com Doninha, culmina na loucura, mas que, em Adriano, vai da realização sexual até à capacidade de assumir as suas opções e à violência contra os representantes da repressão. O enclausuramento final de Adriano deixa, por isso, em aberto uma nota positiva: "Puro e sem pecados, o coração batia-lhe. Ergueu-se. Ia caminhar. Visíveis, à sua volta, os pobres que tapavam o portão do quintal, Doninha, Zé da Água, Tóino Revel, Bia Rosa, Inácia, Antoninha, Maltês e os ceifeiros da Fonte Velha seguiam-no. Ao lado, passo a passo, a mãe ia também - nem ele sabia para onde, mas tinha a certeza de que era para uma planície de fartura e paz."
- Para saber mais
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