Ferreira, Vergílio - Livros Proibidos
Manhã Submersa, Vergílio Ferreira
A névoa da madrugada desprendia-se dos campos, ia envolvendo a montanha. Dobrado de frio, o queixo nos joelhos, a saca da roupa ao lado, eu sentia-me quase feliz, mas de uma estranha felicidade inquietante. Perturbavam-me de prazer a trepidação da partida, o halo da novidade e sobretudo o apelo intrínseco e doce de todas as pequenas coisas que ficavam mais perto de mim, como o fato novo, estreado esse dia, e o farnel da merenda para comer no comboio. Fechado nestas quimeras, eu calava-me também, como se com o silêncio me defendesse de tudo o que era ameaça à minha roda. Porque tudo para mim era estranho e ameaçador, desde a montanha imóvel na enorme manhã circular até ao espectro do Calhau e dos bois, tão insólitos na sua placidez inicial, como se viessem carregando o carro, submissamente, através de longos séculos...
Afinal chegámos meia hora antes do comboio. De modo que, aproveitando esse bónus de espera, Calhau e eu pusemo-nos a estudar as linhas, os vagões nos desvios, a engrenagem das agulhas. Como achava tudo aquilo maravilhoso, estranhei que o Calhau só três vezes tivesse visto o comboio.
- Há pior - disse-me ele, sossegado. - Conheces a Felícia? Pois é mais velha do que eu e nunca o viu.
- E aqui tão perto! - admirei-me eu, condoído.
Mas Calhau não se perturbou, convencido, decerto, de que isso de ver comboios não era assim muito importante para a vida.
Um homem fardado veio à plataforma dar avisos de corneta, uma inquietação nova centrou a atenção de todos. E, bruscamente, entre dois grandes penhascos, o comboio rompeu enfim como um rancor subterrâneo, alucinado de ferros e fumarada. E tive medo. Pela primeira vez estremeci de medo até aos limites da vida, não tanto, porém, da fúria do comboio, como dessa coisa insondável e enorme, tão grande para mim, que era partir. E então desejei ardentemente, profundamente, ficar. Mas era tarde: tudo quanto eu tinha feito desde há meses, tudo quanto fizera D. Estefânia, conduzia justamente àquilo mesmo - partir. Por isso, apertado de amargura, ameaçado de lágrimas, fui-me deixando abraçar em silêncio pelo Calhau. Até que, por entre um furor de fardos e cabazes, lá rompi, de saca às costas, para a carruagem de terceira. Fechei a porta, apanhei ainda o último adeus do Calhau e sentei-me então para chorar quanto quisesse. Em verdade, eu não gostaria de chorar. Mas, espoliado abruptamente da minha infância, aturdido de solidão, sentia-me quase bem dentro do choro.
Inesperadamente, por entre a minha dor, eu descobria em mim o aceno de um passado. Era a grande montanha a oriente, a sua liberdade espacial, era o bafo quente de um amor perdido, a flor original de uma alegria morta. E então voltei para lá a minha face molhada, e tudo em mim disse adeus longamente.
- Ó Lopes! Você... Você gosta de andar no Seminário?
Tremi. Por muito que eu estimasse o Gama, por maior que fosse a minha confiança nele, a resposta que eu desse era agora, desde a conversa com o Reitor, do tamanho da minha vida. Por isso eu me calei um instante, calculando a distância que ia do que eu dissesse até à face inteira do meu amigo. E, receoso, respondi:
- Não, Gama, não gosto nada do Seminário.
- Nem eu - clamou ele logo, num desaforo.
Mas, subitamente triste, declarou que a mãe dele o queria fazer padre – era assim.
- Agora vou tentar outra vez. Vou-lhe dizer que não tenho vocação. Mas, se ela me fizer voltar, então eu...
Travou abruptamente, à beira do precipício, fitando-me quase com ódio, como se eu o estivesse induzindo à confissão. Em todo o caso, perguntei:
- Então você o quê, Gama?
- Nada.
Era a Ideia, a grande Esperança que ele trazia fechada no coração a defendê-lo contra a amargura de tudo. Senti que ele precisava de repartir com alguém o peso daquele sonho. Mas senti igualmente que eu era criança bastante para o estragar e perder. Por isso não insisti. Olhei-lhe a face já devastada de fúria, olhei-lhe as mãos grossas no cabo do guarda-sol, e saudei-o apenas, com um afecto humilde, desde o fundo da minha solidão.