Difference between revisions of "Camões e a Algarvia"

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Mário Lyster Franco
 
  
Camões e a Algarvia
 
  
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O texto, de autoria de Mário Lyster Franco, serve como um prelúdio ou introdução a uma palestra sobre Camões, proferida originalmente em 1945 e 1946 e só publicada anos depois. O autor reflete sobre o contexto e a intenção original da palestra, reconhecendo que, embora pudesse ter feito a sua revisão e aprofundá-la, prefere mantê-la na sua forma inicial. Destaca a relação de Camões com o Algarve e sua ligação com D. Francisca de Aragão, uma musa que teria inspirado o poeta. O autor enfatiza que Camões foi marcado por grandes amores infelizes, visto na época como um aventureiro e pouco promissor para os pais das moças da alta sociedade. Apesar disso, a sua genialidade poética imortalizou as suas paixões e a sua obra, independente da visão que tinham dele em vida.
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== '''Mário Lyster Franco''' - ''Camões e a Algarvia'' ==
  
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''Camões e a Algarvia'', da autoria de Mário Lyster Franco, é uma palestra sobre Camões, proferida originalmente em 1945 e 1946 e só publicada anos depois. O autor começa por referir o contexto e a intenção original da palestra, reconhecendo que, embora pudesse ter feito a sua revisão e aprofundá-la, prefere mantê-la na sua forma inicial. Destaca a relação de Camões com o Algarve e sua ligação com D. Francisca de Aragão, uma musa que teria inspirado o poeta. O autor enfatiza que Camões foi marcado por grandes amores infelizes, visto na época como um aventureiro e pouco promissor para os pais das moças da alta sociedade. Apesar disso, a sua genialidade poética imortalizou as suas paixões e a sua obra, independente da visão que tinham dele em vida.
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* Excertos:
  
 
A modos de prelúdio...  
 
A modos de prelúdio...  
Escrita há bem mais de trinta anos, proferida, primeiro, em Dezembro de 1945, no Sarau do 479 aniversário do Ginásio Clube Farense e, depois, em 29 de Novembro de 1946, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, no fecho da I Exposição Bibliográfica e de Artes Plásticas do Algarve, realizada na capital, esquecida no fundo de uma gaveta e só publicada no "Correio do Sul" dez anos depois, lembraram-se agora os amigos do GRUPO DE ESTUDOS ALGARVIOS de que podia haver interesse em dar a esta palestra aquela divulgação livresca ou mais propriamente opuscular, que mais natural seria então tivesse tido
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Escrita há bem mais de trinta anos, proferida, primeiro, em Dezembro de 1945, no Sarau do aniversário do Ginásio Clube Farense e, depois, em 29 de Novembro de 1946, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, no fecho da I Exposição Bibliográfica e de Artes Plásticas do Algarve, realizada na capital, esquecida no fundo de uma gaveta e só publicada no "Correio do Sul" dez anos depois, lembraram-se agora os amigos do GRUPO DE ESTUDOS ALGARVIOS de que podia haver interesse em dar a esta palestra aquela divulgação livresca ou mais propriamente opuscular, que mais natural seria então tivesse tido
  
 
Isso decerto melhor desculparia certas ingenuidades e fantasias, a talvez que demasiada brevidade que o A. lhe deu e o deixar em branco alguns pormenores, defeitos que, porventura, destinando-a a ser ouvida, tomou então por qualidades e de que - sabe-se lá! - talvez sem grande esforço, destinada que vai ser à leitura, pudesse expurgá-la agora!
 
Isso decerto melhor desculparia certas ingenuidades e fantasias, a talvez que demasiada brevidade que o A. lhe deu e o deixar em branco alguns pormenores, defeitos que, porventura, destinando-a a ser ouvida, tomou então por qualidades e de que - sabe-se lá! - talvez sem grande esforço, destinada que vai ser à leitura, pudesse expurgá-la agora!
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Teria, de resto, que efetuar leituras e investigações e que embrenhar-se em problemas que talvez então o tivessem interessado mas de que, face a outras preocupações do espírito, se sente de todo afastado no presente.
 
Teria, de resto, que efetuar leituras e investigações e que embrenhar-se em problemas que talvez então o tivessem interessado mas de que, face a outras preocupações do espírito, se sente de todo afastado no presente.
  
Sem quebra do respeito que merece o labor do falecido Mestre, julga saber, por exemplo, que o conceito teofiliano 
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Sem quebra do respeito que merece o labor do falecido Mestre, julga saber, por exemplo, que o conceito teofiliano  da inspiração de Os Lusíadas por D. Francisca de Aragão nunca alcançou perfeito beneplácito dos historiadores e dos críticos, tido como mais ou menos sempre foi cronologicamente inaceitável, e se reconhece que podia facilmente desenvolver o tema com numerosas transcrições poéticas, que dariam à publicação mais substância, mais conteúdo e maior volume e afivelariam mais profundamente não só a paixão camoneana,
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Mas, porém, a que cuidados,
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mas também a de toda a vasta côrte dos poetas aduladores da "algarvia", confessa que já não teve paciência para o fazer.
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De tudo quanto escreveu e deixa escrito, julga, pensa, calcula que só talvez apenas o problema que esboçou a volta de Disparates da índia, em que Camões, como que ao geito de revindicta, não teve dúvida em malquistar-se com o tio da sua idolatrada, seja o que permanece por esclarecer definitivamente e pode interessar ainda qualquer investigador que nanja ele.
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Mas, seja como for! Se teve então apenas a pretensão de apresentar a sua palestra, primeiro, como que em galante "fait divers" para abrir uma noite de baile e, depois, como simples diversificação, mais ou menos poética, do fechar de uma exposição, não é agora, trinta anos depois, que vai transformá-la e desenvolvê-la, imbuindo-a, decerto que inutilmente, da seriedade de uma comunicação académica...
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Camões, mesmo saneado como foi, não precisa - graças a Deus! - da sua achega para a imortalidade que possui. E de D. Francisca de Aragão, a quem os próprios herdeiros, não obstante as altas posições de que disfrutavam, como que sanearam também não lhe respeitando as últimas vontades, ficará para sempre, pelos tempos fora, a recordação, cheia de graça, de uma formosíssima donzela que foi o encanto das gentes do seu tempo.
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E hoje, tal como outrora, haverá sempre uma mulher bonita para ser o enlevo de qualquer poeta e, apesar de tudo,' vamos lá, um pobre diabo como eu que, com muita ingenuidade então e sem pretensões agora, se disponha a recordar o facto.
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"Amizade-amorosa", um misto de amor, de amizade, de admiração, de apreço e de ternura, perante a impossibilidade de um enlace, que mais podia Camões ter procurado e encontrado na lindíssima quarteirense?
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Isso chegou para seu consolo!
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"Camões e a Algarvia"!
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Pois então?
  
mas também a de toda a vasta côrte dos poetas aduladores da "algarvia", confessa que jã não teve paciência para o fazer. De tudo quanto escreveu e deixa escrito, julga,pensa,cal-cula que só talvez apenas o problema que esboçou a volta de Disparates da índia, em que Camões, como que ao geito de re-vindicta, não teve dúvida em malquistar-se com o tio da sua idolatrada, seja o aue permanece por esclarecer definitiva-mente e pode interessar ainda qualquer investigador que nanja ele. Mas, seja como for! Se teve então apenas a pretensã de apresentar a sua palestra, primeiro, como que emgalanteiFait diversa para abrir uma noite de baile e, depois, como simples-diversificação, mais ou menos poética, do fechar de uma expo-sição, não e agora, trinta anos depois, que vai transforma-la e desenvolvê-la, imbuindo-a, decerto que inütilmente, da se-riedade de uma comunicação académica... Camões, mesmo saneado como foi, não precisa - graças a Deus! - da sua achega para 0 imortalidade que possui. E de D. Francisca de Aragão, a quem os próprios herdeiros,não obstan-te as altas posições de que disfrutavam, como quesanearmntam bém não lhe respeitando as últimas vontades, ficará para sem= pre, pelos tempos fora, a recordação, cheia de graça, de uma formosissima donzela que foi o encanto das gentes do seu tem-po. E hoje, tal como outrora, haverá sempre uma mulher bonita para ser o enlevo de qualquer poeta e, apesar de tudo,' vamos lá, um pobre diabo como eu que, com muita ingenuidade então e sem pretensões agora, se disponha a recordar o facto, "Amizade-amorosa", um misto de amor, de amizade, de admi-
 
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ração, de apreço e de ternura, perante a impossibilidade de um enlace, que mais podia Camões ter procurado e encontradona lindíssima quarteirense? Isso chegou para seu consolo! "Camões e a Algarvia"! Pois então?
 
 
Faro, Junho de 1978  
 
Faro, Junho de 1978  
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M. L. F.  
 
M. L. F.  
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Se, nodiz-e-r---€1-e-;eo-f-iloBrágá,522Amor foi o mó vel principál do.s_pens,amentos e actos" de Camões,sJ-foraffl-Fas as mulheres que Camões amou, concordé="' mos em que ele foi sempre e principalmente - aparte um ou outro triunfo passageiro que lhe não deixou sulcos no coração -, o poeta dos grandes amores in-felizes. Audacioso, valentaço e brigão, ainadaque por a-pregoados pergaminhos e pela fama de bom versejador que alguns amigos dedicados lhe criavam tivessem si do admitido na corte e na roda das boas familias,d: gente "bem" da sua época, o certo e que os venerá-veis papás de então, austeros, rabujentos e barbu-dos como nenhuns outros, viam principalmente nele o "Trinca-fortes" aventureiro e aventuroso, já sabiam que fazer versos - por mais belos e harmoniosos que eles fossem -, não era, positivamente, uma carreira e estavam longe de considera-lo um bom, ou mesmo, apenas, um razoável, um aceitável partido. Por outro lado, parece que o Poeta não devia nada à formosura. E certo que só mais tarde perdeu um olho, mas era ruivo, barbirralo ao tempo dos grandes amores, musculoso, algo desageitado e enor-
 
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MARIO LYSTER FRANCO
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Se, no dizer de Teófilo Braga, o "Amor foi o móvel principal dos pensamentos e atos" de Camões, se foram muitas mulheres que Camões amou, concordemos em que ele foi sempre e principalmente - aparte um ou outro triunfo passageiro que lhe não deixou sulcos no coração -, o poeta dos grandes amores infelizes.
me, de nariz volumoso e adunco, de olhar e vestes sombrias. Quase todos os seus panegiristas não sitam mesmo em chamar-le feio. O encanto,parece que vinha nele apenas da conversa, mas essa não era de molde a limpressionar igualmente todas. Feio e pobre ainda que rico de bravura, de audácia e, sobretudo, de talento, suponho que nada surpreende que a suavi da nos surja cheia de amores mal correspondidos é' cbtitrariados, ou mesmo de amores impossíveis, o que ingénua é mais sério ainda, desde a íngenua priminha, a "me nina dos olhos verdes" das juvenis andanças coiM: bras, o "singular esmalte de beleza", a Belisa das elegias, das éclogas e dos primeiros sonetos, até â decantada e ainda hoje desconhecida Natércia, que tantos cabelos brancos havia de fazer aos seus bió-grafos. E se está hoje por completo posta de parte a lenda manifestamente infeliz, anti-patriótica e derrotísta, criada talvez com intuitos politicos,da sua indigência, e mesmo parece que essa outra bem maís formosa e romântica de ter chegado a erguer os olhais para a própria Infanta D. Maria, a tradição gorosa dos seus amores infelizes mantem-se atra-v, s da história, transparece segura dos seus versos justifica-lhe inteiramente vários passos mais des-concertantes da vida e ë dada como ponto assente. Procurando reconstituir o tipo ideal da Mulher qué o Poeta teria desejado para si, que o Poeta te-ria sonhado, procurando estabelecer o cânon do que teria sido à Eva camoneana, Júlio Dantas, mestre da "Arte de Amar" e nosso comprovinciano a muitos titu los ilustre, dissertou um dia, no Teatro Lírico do Rio, sobre as "Mulheres que Camões amou". O intuito desta ë forçosamente mais restrito. Dos milhentos a mores do Épico, importa-nos, neste momento, apenas focar um. É esse o meu propósito e a ele me circuns crevo, visto que não desejo esquecer, antes de mais nada, que torna mister prender apenas a vossa aten-~ çao durante alguns minutos.  
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Audacioso, valentaço e brigão, ainda que por apregoados pergaminhos e pela fama de bom versejador que alguns amigos dedicados lhe criavam tivessem si do admitido na corte e na roda das boas famílias: gente "bem" da sua época, o certo e que os veneráveis papás de então, austeros, rabugentos e barbudos como nenhuns outros, viam principalmente nele o "Trinca-fortes" aventureiro e aventuroso, já sabiam que fazer versos - por mais belos e harmoniosos que eles fossem -, não era, positivamente, uma carreira e estavam longe de considera-lo um bom, ou mesmo, apenas, um razoável, um aceitável partido.
CAMOES E A ALGARVIA
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Pertencente a uma velha família fidalga, espa-lhada por vários pontos do Pais e mesmo do Algarve, onde os então alcaides-mores de Silves e de Lagos se riam seus parentes e em cujo Morgado de Boina,de um outro parente seu e segundo o parecer desse camoni-anista mago e bruxo que é o nosso queridoMário Saa, teria vindo refugiar-se em 1546, por virtude daque-les amores na Lusa-Atenas a que já fiz referência,o Poeta, "fidalgo cavaleiro da Casa Real" como apare-ce referido num documento descoberto por Juromenha, foi, a certa altura, recebido no Paço. Honraria ambicionada por todos os vates e mes-mo, mo, como e natural, por toda "a gente da epoca,pare-ce não ter sido estranha â satisfação desse desejo de Camões, uma outra apaixonada sua, senhora casada de alta estirpe e de indiscutível seriedade, que te ria achado desse modo a forma airosa e hábil de se ver livre da assiduidade comprometedora daquele ami go de seu marido e que, diga-se, antes de mais nada não ë ainda a mulher que nos interessa. Essa, a algarvia que andou na vida de Camões,se gue-se-lhe na ordem cronológica dos variadissimos a-mores e surge-nos assim logo depois. Era astro de primeira grandeza na Córte que o Poeta passará frequentar e, considerada uma das maiores belezas do seu tempo, naturalissimo era tam bém que todo esse brilho o deslumbrasse. De resto, já o mesmo acontecera com outros poe-tas de segunda plana: Pedro de Andrade Caminha, ri-val do Épico em várias emergências, que lhe dedicou pela vida fora, algumas centenas de poesias em por-^ tugues e castelhano, que já então lhe consagrara a-quele melífluo soneto em que se confessa ... "num puro amor todo desfeito." ... e em cujo ciúme se podem certamente filiar muitas das suas atitudes infelizes e até o epigrama que a  
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Por outro lado, parece que o Poeta não devia nada à formosura. E certo que só mais tarde perdeu um olho, mas era ruivo, barbirralo ao tempo dos grandes amores, musculoso, algo desajeitado e enorme, de nariz volumoso e adunco, de olhar e vestes sombrias. Quase todos os seus panegiristas não sitam mesmo em chamar-lhe feio. O encanto, parece que vinha nele apenas da conversa, mas essa não era de molde a impressionar igualmente todas. Feio e pobre ainda que rico de bravura, de audácia e, sobretudo, de talento, suponho que nada surpreende que a sua vida nos surja cheia de amores mal correspondidos e contrariados, ou mesmo de amores impossíveis, o que ingénua é mais sério ainda, desde a ingénua priminha, a "menina dos olhos verdes" das juvenis andanças coimbrãs, o "singular esmalte de beleza", a Belisa das elegias, das éclogas e dos primeiros sonetos, até à decantada e ainda hoje desconhecida Natércia, que tantos cabelos brancos havia de fazer aos seus biógrafos. E se está hoje por completo posta de parte a lenda manifestamente infeliz, antipatriótica e derrotista, criada talvez com intuitos políticos, da sua indigência, e mesmo parece que essa outra bem maís formosa e romântica de ter chegado a erguer os olhais para a própria Infanta D. Maria, a tradição rigorosa dos seus amores infelizes mantem-se através da história, transparece segura dos seus versos justifica-lhe inteiramente vários passos mais desconcertantes da vida e é dada como ponto assente.
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Procurando reconstituir o tipo ideal da Mulher que o Poeta teria desejado para si, que o Poeta teria sonhado, procurando estabelecer o cânon do que teria sido à Eva camoniana, Júlio Dantas, mestre da "Arte de Amar" e nosso comprovinciano a muitos títulos ilustre, dissertou um dia, no Teatro Lírico do Rio, sobre as "Mulheres que Camões amou". O intuito desta ë forçosamente mais restrito. Dos milhentos a mores do Épico, importa-nos, neste momento, apenas focar um. É esse o meu propósito e a ele me circunscrevo, visto que não desejo esquecer, antes de mais nada, que torna mister prender apenas a vossa atenção durante alguns minutos.  
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Pertencente a uma velha família fidalga, espalhada por vários pontos do Pais e mesmo do Algarve, onde os então alcaides-mores de Silves e de Lagos seriam seus parentes e em cujo Morgado de Boina, de um outro parente seu e segundo o parecer desse camonianista mago e bruxo que é o nosso querido Mário Saa, teria vindo refugiar-se em 1546, por virtude daqueles amores na Lusa-Atenas a que já fiz referência, o Poeta, "fidalgo cavaleiro da Casa Real" como aparece referido num documento descoberto por Juromenha, foi, a certa altura, recebido no Paço.  
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Honraria ambicionada por todos os vates e mesmo, mo, como e natural, por toda "a gente da época, parece não ter sido estranha à satisfação desse desejo de Camões, uma outra apaixonada sua, senhora casada de alta estirpe e de indiscutível seriedade, que teria achado desse modo a forma airosa e hábil de se ver livre da assiduidade comprometedora daquele amigo de seu marido e que, diga-se, antes de mais nada não ë ainda a mulher que nos interessa.  
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Essa, a algarvia que andou na vida de Camões, segue-se-lhe na ordem cronológica dos variadíssimos  amores e surge-nos assim logo depois.  
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Era astro de primeira grandeza na Corte que o Poeta passará frequentar e, considerada uma das maiores belezas do seu tempo, naturalíssimo era também que todo esse brilho o deslumbrasse.  
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De resto, já o mesmo acontecera com outros poetas de segundo plano: Pedro de Andrade Caminha, rival do Épico em várias emergências, que lhe dedicou pela vida fora, algumas centenas de poesias em português e castelhano, que já então lhe consagrara aquele melífluo soneto em que se confessa  
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... "num puro amor todo desfeito." ...
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e em cujo ciúme se podem certamente filiar muitas das suas atitudes infelizes e até o epigrama que a Camões dedicou:
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"Tu dizes que o poeta> há de ter fúria";
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D. Manuel de Portugal, amigo dedicado de  Camões, a quem ela inspira nada menos de quarenta e cinco páginas de poesias de um cancioneiro manuscrito que existe na Biblioteca Nacional; Jorge de Montemor que largamente se lhe refere no livro quarto da sua famosa "Diana"; D. António de Almeida, vedor da casa da Rainha; D. Jorge de Menezes e sabe Deus quantos mais, cujos nomes, se pairaram algures sob os olhos azuis da musa singular, nem sequer tiveram a dita de chegar até aos nossos dias.
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A tudo e a todos a beldade algarvia tinha ficado insensível. Dir-se-ia que o seu fino espírito sabia distinguir prodigiosamente o trigo do joio e parece ter sido com grande surpresa da corte e espanto de toda a gente, que essa mulher singular, até então inacessível, toda beleza, toda graça, toda superioridade e desdém, que mais parecia uma deusa descida pelo seu próprio pé do próprio Olimpo, considerada, depois da Rainha e das Infantas, a mais alta figura feminina do paço, se rendeu aos galanteios do Poeta, entretendo e mantendo com ele, não, talvez um amor material e arrebatado propriamente dito, mas uma "terna amizade-amorosa" na feliz expressão de Júlio Dantas, um amor misto de adoração, de admiração e de ternura, que o acompanhou durante sucessivos anos e que, pela unção espiritual que principalmente o caracteriza, constitui uma das mais belas páginas da vida atribulada de Camões.
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Foi isto, foi este carinho, foi esse amor-amizade, amor-adoração, amor-ternura, talvez que sem arrebatamento, sem encontros comprometedores e sem loucuras, mas também, muito possivelmente, pela primeira vez correspondido de um modo leal e  franco e tão necessário ao desconforto do seu viver, que o Épico encontrou na algarvia.
  
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É esta a opinião mais rigorosamente fundamentada e temos que concordar que não é pouco.
  
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No entanto, repare-se que Teófilo Braga vai mais longe. Para ele, Camões tao loucamente apaixonado estava pela nossa comprovinciana, que ela não é apenas a Musa inspiradora da maior parte das suas "Rimas". Ela não é apenas a "Categorizada Dama" em quem José Maria Rodrigues pretendeu ver a Infanta D. Maria e cuja lenda ficava dessa forma desfeita. Ela é bem alguma coisa de muito mais, pois que o Poeta, inebriado pela sua beleza e deslumbrado pelo brilho da situação que ela disfrutava, reconhece que "para merecer essa mulher ideal era preciso criar uma obra que se impusesse à atenção do Mundo". E quando a Rainha percebe que a sua dama predileta, estimada como uma filha, vai perdendo aquela serenidade olímpica em que sempre se mantivera, vitima do "abalo amoroso" que o Poeta lhe provocara e faz afastar este para o Ribatejo, '"parece que essa paixão empolgante, em que o Poeta se elevou ao mais extraordinário lirismo - é Teófilo que está falando - se transformou inteligentemente numa singela amizade, por um estimulo mais alto".
  
MÁRIO LYSTER FRANCO CAMõES E A ALGARVIA
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O Poeta, pouco tempo depois, regressa à Corte. O perigo, passado o momento crucial, estava conjurado. Nestas coisas de amor ou se triunfa logo ou não se vence nunca e a que fora e é ainda a sua grande paixão, caída já na realidade da grande diferença social, restituída a augusta serenidade que caracteriza todo o seu viver, transformando habilidosamente o amor arrebatado com amizade pura, "pela conversação leda e suave... sugeriu àquele génio criador, a Epopeia do "Peito Lusitano". E os galanteios deslumbrantes foram substituídos pela realização da Epopeia dos Descobrimentos Marítimos, para a qual os cronistas e os eruditos chamavam a atenção dos poetas",
Camões dedicou:
 
"Tu dizes que o poeta> há de ter fúria"; D. Manuel de. Portugal, amigo dedicado de  Camões, a quem ela inspira nada menos á-é qúai-.-e-ri-ta e cinco pá-ginas de poesias de um cancioneiro manuscrito que e-xiste na Biblioteca Nacional; J:21gelumor que largamente se lhe refere no livro quarto da sua fa-mosa "Diana"; D. António de Almeida, vedor da casa da Rainha; D. Jorge de Menezes e sabe Deus quantos mais, cujos nomes, se pairaram algures sob os olhos azuis da musa singular, nem sequer tiveram a dita de chegar até aos nossos dias. A tudo e a todos a beldade algarvia tinha fica-do insensível. Dir-se-ia que o seu fino espirito sa bia distinguir pródigiosamente o trigo do joio e pa rece ter sido com grande surpreza da cõrte e espan-to de toda a gente, que.essa mulher singular,até en tão inacessível, toda beleza, toda graça, tota periorídade e desdem, que mais parecia uma deusa des cida pelo seu próprio pé do próprio Olimpo, consi-derada, depois da Rainha e das Infantas, a mais al-ta figura feminina do paço, se rendeu aos galan-teios do Poeta, entretendo e mantendo com ele, não, talvez um amor material e arrebatado prõPriamentedi to, mas uma `"terna amizade-amorosa" na feliz expres sao de Júlio Dantas, um amor mixto de adoração, de ,admiração e de ternura, que o acompanhou durante su cessivos anos e que, pela unção espiritual que prir-; cipalmente o caracteriza, constitui uma das mais bJ las paginas da vida, atribulada de Camoes. Foi isto, foi este carinho, Èoi esse amor-amiza de, amor-adoração, amor-ternura, talvez que sem arre batamento, sem encontros comprometedores e sem loU= curas, mas também, muito possivelmente, pela primei ra vez correspondido de um modo leal.e frang9 e tao necessário ao desconforto do seu viver, que o Épico
 
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encontrou,na algarvia. E esta a Opinião mais rigorosamente fundamenta-da e temos que concordar que nao e pouco. No entanto, repare-se que Teofilo Bragavaimais longe. Para ele, CamõeS tao loucamente apaixonado estava pela nossa'comprovinciana, que ela não é a-penas a Musa inspiradora da maior parte das . suas "Rimas". Ela não é apenas a "Categorizada:-Dama" em quem José Maria Rodrigues pretendeu ver a Infanta D. Maria e cuja lenda ficava dessa forma desfeita. Ela é bem alguma coisa de muito. mais,pois que o Poe ta, inebriado pela sua beleza e deslumbrado pelõ brilho da situação que ela. disfrutava,reconhece que "para merecer essa mulher ideal:era preciso crear u ma obra que se impuzesse a atenção do Mundo".E quan do a Rainha percebe que a sua dama predilecta,esti= mada como uma filha, vai perdendo aquela serenidade olimpica em que sempre se mantivera, vitima do "aba lo amoroso" que o Poeta lhe provocara e faZ afastar. estera o Ribatejo,'"parece que essa paixão empol-gante, em que o Poeta se elevou ao mais extraordina rio lirismo - é Teófilo que está falando - se trans formou inteligentemente numa singela amizade,por um estimulo mais alto". O Poeta, pouco tempo depois, regressa a Cõrte. O perigo,passado o momento crucial, estava conjura-dó. Nestas coisas -de amor ou se triunfa logo ou não se vence nunca e a que fôra e é ainda a sua grande -paixão, calda .na'realidade da grande diferença social, restituída a augusta serenidade que cáracte ri'za todo o aeu viver, transformando habilIdosameri= te o amor arrebatado. com amizade pura, "pela conver saçao leda asuave.,.. sugeriu aquele .genia_creador, anEpopeia dó "PeitolLusitano". E os galanteioa_das-lumbrantes foraM-SUbstituldoa pelaa-rdealizaçao da Epopeia dos DesabbríMentós Maritimoa;.' para 'a qual os -cronistas e os eruditos chamavam a atençao, dos poetas",  
 
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Revision as of 13:57, 11 February 2025


Mário Lyster Franco - Camões e a Algarvia

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Camões e a Algarvia, da autoria de Mário Lyster Franco, é uma palestra sobre Camões, proferida originalmente em 1945 e 1946 e só publicada anos depois. O autor começa por referir o contexto e a intenção original da palestra, reconhecendo que, embora pudesse ter feito a sua revisão e aprofundá-la, prefere mantê-la na sua forma inicial. Destaca a relação de Camões com o Algarve e sua ligação com D. Francisca de Aragão, uma musa que teria inspirado o poeta. O autor enfatiza que Camões foi marcado por grandes amores infelizes, visto na época como um aventureiro e pouco promissor para os pais das moças da alta sociedade. Apesar disso, a sua genialidade poética imortalizou as suas paixões e a sua obra, independente da visão que tinham dele em vida.
  • Excertos:

A modos de prelúdio... Escrita há bem mais de trinta anos, proferida, primeiro, em Dezembro de 1945, no Sarau do aniversário do Ginásio Clube Farense e, depois, em 29 de Novembro de 1946, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, no fecho da I Exposição Bibliográfica e de Artes Plásticas do Algarve, realizada na capital, esquecida no fundo de uma gaveta e só publicada no "Correio do Sul" dez anos depois, lembraram-se agora os amigos do GRUPO DE ESTUDOS ALGARVIOS de que podia haver interesse em dar a esta palestra aquela divulgação livresca ou mais propriamente opuscular, que mais natural seria então tivesse tido

Isso decerto melhor desculparia certas ingenuidades e fantasias, a talvez que demasiada brevidade que o A. lhe deu e o deixar em branco alguns pormenores, defeitos que, porventura, destinando-a a ser ouvida, tomou então por qualidades e de que - sabe-se lá! - talvez sem grande esforço, destinada que vai ser à leitura, pudesse expurgá-la agora!

Publica-se, no entanto, na sua pureza original. E fácil se torna reconhecer assim que o A. entende que, no revesti-la agora da erudição que então não teve, por mais certa e brilhante que ela fosse, não haveria honesto proceder. Teria, de resto, que efetuar leituras e investigações e que embrenhar-se em problemas que talvez então o tivessem interessado mas de que, face a outras preocupações do espírito, se sente de todo afastado no presente.

Sem quebra do respeito que merece o labor do falecido Mestre, julga saber, por exemplo, que o conceito teofiliano da inspiração de Os Lusíadas por D. Francisca de Aragão nunca alcançou perfeito beneplácito dos historiadores e dos críticos, tido como mais ou menos sempre foi cronologicamente inaceitável, e se reconhece que podia facilmente desenvolver o tema com numerosas transcrições poéticas, que dariam à publicação mais substância, mais conteúdo e maior volume e afivelariam mais profundamente não só a paixão camoneana,

Mas, porém, a que cuidados,


mas também a de toda a vasta côrte dos poetas aduladores da "algarvia", confessa que já não teve paciência para o fazer.

De tudo quanto escreveu e deixa escrito, julga, pensa, calcula que só talvez apenas o problema que esboçou a volta de Disparates da índia, em que Camões, como que ao geito de revindicta, não teve dúvida em malquistar-se com o tio da sua idolatrada, seja o que permanece por esclarecer definitivamente e pode interessar ainda qualquer investigador que nanja ele.

Mas, seja como for! Se teve então apenas a pretensão de apresentar a sua palestra, primeiro, como que em galante "fait divers" para abrir uma noite de baile e, depois, como simples diversificação, mais ou menos poética, do fechar de uma exposição, não é agora, trinta anos depois, que vai transformá-la e desenvolvê-la, imbuindo-a, decerto que inutilmente, da seriedade de uma comunicação académica...

Camões, mesmo saneado como foi, não precisa - graças a Deus! - da sua achega para a imortalidade que possui. E de D. Francisca de Aragão, a quem os próprios herdeiros, não obstante as altas posições de que disfrutavam, como que sanearam também não lhe respeitando as últimas vontades, ficará para sempre, pelos tempos fora, a recordação, cheia de graça, de uma formosíssima donzela que foi o encanto das gentes do seu tempo.

E hoje, tal como outrora, haverá sempre uma mulher bonita para ser o enlevo de qualquer poeta e, apesar de tudo,' vamos lá, um pobre diabo como eu que, com muita ingenuidade então e sem pretensões agora, se disponha a recordar o facto.

"Amizade-amorosa", um misto de amor, de amizade, de admiração, de apreço e de ternura, perante a impossibilidade de um enlace, que mais podia Camões ter procurado e encontrado na lindíssima quarteirense? Isso chegou para seu consolo! "Camões e a Algarvia"! Pois então?

Faro, Junho de 1978

M. L. F.


Se, no dizer de Teófilo Braga, o "Amor foi o móvel principal dos pensamentos e atos" de Camões, se foram muitas mulheres que Camões amou, concordemos em que ele foi sempre e principalmente - aparte um ou outro triunfo passageiro que lhe não deixou sulcos no coração -, o poeta dos grandes amores infelizes.

Audacioso, valentaço e brigão, ainda que por apregoados pergaminhos e pela fama de bom versejador que alguns amigos dedicados lhe criavam tivessem si do admitido na corte e na roda das boas famílias: gente "bem" da sua época, o certo e que os veneráveis papás de então, austeros, rabugentos e barbudos como nenhuns outros, viam principalmente nele o "Trinca-fortes" aventureiro e aventuroso, já sabiam que fazer versos - por mais belos e harmoniosos que eles fossem -, não era, positivamente, uma carreira e estavam longe de considera-lo um bom, ou mesmo, apenas, um razoável, um aceitável partido. 

Por outro lado, parece que o Poeta não devia nada à formosura. E certo que só mais tarde perdeu um olho, mas era ruivo, barbirralo ao tempo dos grandes amores, musculoso, algo desajeitado e enorme, de nariz volumoso e adunco, de olhar e vestes sombrias. Quase todos os seus panegiristas não sitam mesmo em chamar-lhe feio. O encanto, parece que vinha nele apenas da conversa, mas essa não era de molde a impressionar igualmente todas. Feio e pobre ainda que rico de bravura, de audácia e, sobretudo, de talento, suponho que nada surpreende que a sua vida nos surja cheia de amores mal correspondidos e contrariados, ou mesmo de amores impossíveis, o que ingénua é mais sério ainda, desde a ingénua priminha, a "menina dos olhos verdes" das juvenis andanças coimbrãs, o "singular esmalte de beleza", a Belisa das elegias, das éclogas e dos primeiros sonetos, até à decantada e ainda hoje desconhecida Natércia, que tantos cabelos brancos havia de fazer aos seus biógrafos. E se está hoje por completo posta de parte a lenda manifestamente infeliz, antipatriótica e derrotista, criada talvez com intuitos políticos, da sua indigência, e mesmo parece que essa outra bem maís formosa e romântica de ter chegado a erguer os olhais para a própria Infanta D. Maria, a tradição rigorosa dos seus amores infelizes mantem-se através da história, transparece segura dos seus versos justifica-lhe inteiramente vários passos mais desconcertantes da vida e é dada como ponto assente.

Procurando reconstituir o tipo ideal da Mulher que o Poeta teria desejado para si, que o Poeta teria sonhado, procurando estabelecer o cânon do que teria sido à Eva camoniana, Júlio Dantas, mestre da "Arte de Amar" e nosso comprovinciano a muitos títulos ilustre, dissertou um dia, no Teatro Lírico do Rio, sobre as "Mulheres que Camões amou". O intuito desta ë forçosamente mais restrito. Dos milhentos a mores do Épico, importa-nos, neste momento, apenas focar um. É esse o meu propósito e a ele me circunscrevo, visto que não desejo esquecer, antes de mais nada, que torna mister prender apenas a vossa atenção durante alguns minutos.

Pertencente a uma velha família fidalga, espalhada por vários pontos do Pais e mesmo do Algarve, onde os então alcaides-mores de Silves e de Lagos seriam seus parentes e em cujo Morgado de Boina, de um outro parente seu e segundo o parecer desse camonianista mago e bruxo que é o nosso querido Mário Saa, teria vindo refugiar-se em 1546, por virtude daqueles amores na Lusa-Atenas a que já fiz referência, o Poeta, "fidalgo cavaleiro da Casa Real" como aparece referido num documento descoberto por Juromenha, foi, a certa altura, recebido no Paço.

Honraria ambicionada por todos os vates e mesmo, mo, como e natural, por toda "a gente da época, parece não ter sido estranha à satisfação desse desejo de Camões, uma outra apaixonada sua, senhora casada de alta estirpe e de indiscutível seriedade, que teria achado desse modo a forma airosa e hábil de se ver livre da assiduidade comprometedora daquele amigo de seu marido e que, diga-se, antes de mais nada não ë ainda a mulher que nos interessa.

Essa, a algarvia que andou na vida de Camões, segue-se-lhe na ordem cronológica dos variadíssimos amores e surge-nos assim logo depois.

Era astro de primeira grandeza na Corte que o Poeta passará frequentar e, considerada uma das maiores belezas do seu tempo, naturalíssimo era também que todo esse brilho o deslumbrasse.

De resto, já o mesmo acontecera com outros poetas de segundo plano: Pedro de Andrade Caminha, rival do Épico em várias emergências, que lhe dedicou pela vida fora, algumas centenas de poesias em português e castelhano, que já então lhe consagrara aquele melífluo soneto em que se confessa

... "num puro amor todo desfeito." ...

e em cujo ciúme se podem certamente filiar muitas das suas atitudes infelizes e até o epigrama que a Camões dedicou: 

"Tu dizes que o poeta> há de ter fúria";

D. Manuel de Portugal, amigo dedicado de Camões, a quem ela inspira nada menos de quarenta e cinco páginas de poesias de um cancioneiro manuscrito que existe na Biblioteca Nacional; Jorge de Montemor que largamente se lhe refere no livro quarto da sua famosa "Diana"; D. António de Almeida, vedor da casa da Rainha; D. Jorge de Menezes e sabe Deus quantos mais, cujos nomes, se pairaram algures sob os olhos azuis da musa singular, nem sequer tiveram a dita de chegar até aos nossos dias.

A tudo e a todos a beldade algarvia tinha ficado insensível. Dir-se-ia que o seu fino espírito sabia distinguir prodigiosamente o trigo do joio e parece ter sido com grande surpresa da corte e espanto de toda a gente, que essa mulher singular, até então inacessível, toda beleza, toda graça, toda superioridade e desdém, que mais parecia uma deusa descida pelo seu próprio pé do próprio Olimpo, considerada, depois da Rainha e das Infantas, a mais alta figura feminina do paço, se rendeu aos galanteios do Poeta, entretendo e mantendo com ele, não, talvez um amor material e arrebatado propriamente dito, mas uma "terna amizade-amorosa" na feliz expressão de Júlio Dantas, um amor misto de adoração, de admiração e de ternura, que o acompanhou durante sucessivos anos e que, pela unção espiritual que principalmente o caracteriza, constitui uma das mais belas páginas da vida atribulada de Camões.

Foi isto, foi este carinho, foi esse amor-amizade, amor-adoração, amor-ternura, talvez que sem arrebatamento, sem encontros comprometedores e sem loucuras, mas também, muito possivelmente, pela primeira vez correspondido de um modo leal e franco e tão necessário ao desconforto do seu viver, que o Épico encontrou na algarvia.

É esta a opinião mais rigorosamente fundamentada e temos que concordar que não é pouco.

No entanto, repare-se que Teófilo Braga vai mais longe. Para ele, Camões tao loucamente apaixonado estava pela nossa comprovinciana, que ela não é apenas a Musa inspiradora da maior parte das suas "Rimas". Ela não é apenas a "Categorizada Dama" em quem José Maria Rodrigues pretendeu ver a Infanta D. Maria e cuja lenda ficava dessa forma desfeita. Ela é bem alguma coisa de muito mais, pois que o Poeta, inebriado pela sua beleza e deslumbrado pelo brilho da situação que ela disfrutava, reconhece que "para merecer essa mulher ideal era preciso criar uma obra que se impusesse à atenção do Mundo". E quando a Rainha percebe que a sua dama predileta, estimada como uma filha, vai perdendo aquela serenidade olímpica em que sempre se mantivera, vitima do "abalo amoroso" que o Poeta lhe provocara e faz afastar este para o Ribatejo, '"parece que essa paixão empolgante, em que o Poeta se elevou ao mais extraordinário lirismo - é Teófilo que está falando - se transformou inteligentemente numa singela amizade, por um estimulo mais alto".

O Poeta, pouco tempo depois, regressa à Corte. O perigo, passado o momento crucial, estava conjurado. Nestas coisas de amor ou se triunfa logo ou não se vence nunca e a que fora e é ainda a sua grande paixão, caída já na realidade da grande diferença social, restituída a augusta serenidade que caracteriza todo o seu viver, transformando habilidosamente o amor arrebatado com amizade pura, "pela conversação leda e suave... sugeriu àquele génio criador, a Epopeia do "Peito Lusitano". E os galanteios deslumbrantes foram substituídos pela realização da Epopeia dos Descobrimentos Marítimos, para a qual os cronistas e os eruditos chamavam a atenção dos poetas",