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'''Ode'''<br />
Composição poética de assunto elevado, própria para ser cantada<br />
Subgénero lírico cultivado, segundo modelos greco-latinos, desde o Renascimento até à época contemporânea, com os temas mais diversos (heroicos, amorosos, etc.) e esquemas métricos também diferentes, mas caracterizando-se pela eloquência, solenidade e elevação de estilo. In: [https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/ode Infopédia]<br />

=='''Pode um desejo imenso'''<br />==
<br />
Pode um desejo imenso<br />
arder no peito tanto<br />
que à branda e a viva alma o fogo intenso<br />
lhe gaste as nódoas do terreno manto,<br />
e purifique em tanta alteza o esprito<br />
com olhos imortais<br />
que faz que leia mais do que vê escrito.<br />
<br />
Que a flama que se acende<br />
alto tanto alumia<br />
que, se o nobre desejo ao bem se estende<br />
que nunca viu, a sente claro dia;<br />
e lá vê do que busca o natural,<br />
a graça, a viva cor,<br />
noutra espécie melhor que a corporal.<br />
<br />
Pois vós, ó claro exemplo<br />
de viva formosura,<br />
que de tão longe cá noto e contemplo<br />
n'alma, que este desejo sobe e apura:<br />
não creais que não vejo aquela imagem<br />
que as gentes nunca vêem,<br />
se de humanos não têm muita vantagem.<br />
<br />
Que, se os olhos ausentes<br />
não vêem a compassada<br />
proporção, que das cores excelentes<br />
de pureza e vergonha é variada;<br />
da qual a Poesia, que cantou<br />
até aqui só pinturas,<br />
com mortais formosuras igualou;<br />
<br />
se não vêem os cabelos<br />
que o vulgo chama de ouro,<br />
e se não vêem os claros olhos belos,<br />
de quem cantam que são do Sol tesouro,<br />
e se não vêem do rosto as excelências,<br />
a quem dirão que deve<br />
rosa, cristal e neve as aparências;<br />
<br />
veem logo a graça pura,<br />
a luz alta e severa,<br />
que é raio da divina formosura<br />
que n'alma imprime e fora reverbera,<br />
assim como cristal do Sol ferido,<br />
que por fora derrama<br />
a recebida flama, esclarecido.<br />
<br />
E vêem a gravidade<br />
com a viva alegria,<br />
que misturada tem, de qualidade<br />
que üa da outra nunca se desvia;<br />
nem deixa üa de ser arreceada<br />
por leda e por suave,<br />
nem outra, por ser grave, muito amada.<br />
<br />
E vêem do honesto siso<br />
os altos resplandores,<br />
temperados co doce e ledo riso,<br />
a cujo abrir abrem no campo as flores;<br />
as palavras discretas e suaves,<br />
das quais o movimento<br />
fará deter o vento e as altas aves;<br />
<br />
dos olhos o virar,<br />
que torna tudo raso,<br />
do qual não sabe o engenho divisar<br />
se foi por artifício, ou feito acaso;<br />
da presença os meneios e a postura,<br />
o andar e o mover-se,<br />
donde pode aprender-se fermosura.<br />
<br />
Aquele não sei que,<br />
que aspira não sei como,<br />
que, invisível saindo, a vista o vê,<br />
mas para o compreender não acha tomo;<br />
o qual toda a Toscana poesia,<br />
que mais Febo restaura,<br />
em Beatriz nem em Laura nunca via;<br />
<br />
em vos a nossa idade,<br />
Senhora, o pode ver,<br />
se engenho e ciência e habilidade<br />
igual a fermosura vossa der,<br />
como eu vi no meu longo apartamento,<br />
qual em ausência a vejo.<br />
Tais asas dá o desejo ao pensamento!<br />
<br />
Pois se o desejo afina<br />
üa alma acesa tanto<br />
que por vós use as partes da divina,<br />
por vós levantarei não visto canto<br />
que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante;<br />
que o nosso claro Tejo<br />
envolto um pouco vejo e dissonante.<br />
<br />
O campo não o esmaltam<br />
flores, mas só abrolhos<br />
o fazem feio; e cuido que lhe faltam<br />
ouvidos para mim, para vós olhos.<br />
Mas faça o que quiser o vil costume;<br />
que o sol, que em vós está,<br />
na escuridão dará mais claro lume.<br />

<br />

 Nesta ode, '''Camões''' reflete sobre o poder do desejo e da contemplação espiritual. Ele descreve como um desejo profundo e elevado pode purificar a alma, permitindo ao espírito transcender as limitações materiais e alcançar uma visão mais sublime e divina.<br />'''O poeta''' dirige-se a uma figura feminina idealizada, cuja beleza não é apenas física, mas também espiritual e transcendente. Elogia as suas qualidades, destacando uma harmonia única entre gravidade, alegria, honestidade e doçura. A sua presença é descrita como irradiando uma luz divina, que inspira e eleva aqueles que a contemplam.<br />'''Camões''' lamenta a ausência física dessa figura, mas celebra como o desejo permite que ele a veja e sinta mesmo à distância. Ele promete cantar a sua beleza e virtudes num poema que transcenderá fronteiras, sendo ouvido em rios famosos como o Tejo, o Tibre e o Bétis.<br />No final, critica o "vil costume" que obscurece o reconhecimento do valor e da beleza verdadeira, mas confia que a luz divina representada por essa figura superará qualquer escuridão.

'''Temas principais''':
O desejo como força de purificação e elevação espiritual.<br />
A idealização da beleza divina e sua manifestação terrena.<br />
A transcendência da ausência física por meio do pensamento e da poesia.<br />
A crítica à ignorância do mundo e a celebração da virtude que resplandece na escuridão.<br />


'''Prática recomendada para uma boa leitura:'''<br />
1. Ler em voz alta cada estrofe pausadamente.<br />
2. Variar a intensidade, respeitando as sugestões da emoção.<br />
3. Gravar-se lendo e ouvir a gravação para ajustar o ritmo e as pausas.<br />

'''Por exemplo:'''<br />

Estrofe de abertura:<br />

"Pode um desejo imenso<br />
arder no peito tanto<br />
que à branda e a viva alma o fogo intenso<br />
lhe gaste as nódoas do terreno manto,<br />
e purifique em tanta alteza o esprito<br />
com olhos imortais<br />
que faz que leia mais do que vê escrito."<br />
<br />

1. Começar com um tom contemplativo e intenso para expressar o impacto do "desejo imenso".<br />
2. Fazer uma pausa leve após "imenso" e "tanto" para criar ritmo.<br />
3. Aumentar o ênfase em "fogo intenso" e "olhos imortais" para destacar a força das imagens.<br />
4. Ler "Pode um desejo imenso" com tom ascendente.<br />
5. No verso "que faz que leia mais do que vê escrito", usar um tom reverente e finalizador.<br />

*Para saber mais:<br />

Livro '''''Pode Um Desejo Imenso''''' de Frederico Lourenço<br />

Pode Um Desejo Imenso conta a história de Nuno Galvão, professor universitário de Literatura, que pensa ter descoberto a chave para a compreensão da poesia lírica de Camões: a paixão do poeta pelo jovem D. António de Noronha, de quem Camões teria sido precetor. Nuno está ele próprio apaixonado por um estudante, em quem projeta a história de amor por si imaginada entre o poeta quinhentista e o seu aluno. Na parte central do livro, a narrativa volta atrás, aos tempos em que o próprio Nuno era estudante, já nessa altura ocupado com a poesia lírica de Camões e com a paixão não correspondida por um colega de curso. No final do romance, juntam-se os vários fios da história; e Nuno acaba por aprender como rumar «em direção à outra margem», onde se abre a hipótese possível de um amor feliz.<br />Vinte anos depois da primeira edição, esta é a versão definitiva de Pode Um Desejo Imenso, como é desejo do autor.<br />Quetzal, 2022