Peça de teatro adaptada pelo algarvio Júlio Dantas
Auto de El-Rei Seleuco
O tema de El-Rei Seleuco é extraído da história e já anteriormente fora tratado por Plutarco na sua obra Vida de Demétrio. A jovem esposa do velho rei Seleuco é também desejada pelo filho deste, Antíoco. Para evitar uma crise dinástica e, dado que aquela também ama Antíoco, o velho rei cede heroicamente a sua mulher ao filho.
Nesta peça, e de acordo com Isabel Pascoal, na introdução à sua obra Poesia Lírica de Luís de Camões, assiste-se a "um predomínio dos aspetos psicológicos e sentimentais, pois omite-se a cedência do reino por Seleuco, insistindo-se apenas na cedência da esposa", afastando-se Camões, neste aspeto, da sua fonte - Vida de Demétrio, de Plutarco.
À anedota histórica juntou momentos de farsa, como as pretensões falhadas dum Porteiro junto de uma Moça de câmara, as tentativas ridículas de versificação pelo Porteiro ou o diálogo castelhano entre o Físico e o seu Moço.
A peça está enquadrada por um prólogo e um epílogo em prosa, inteiramente desligados do contexto da peça e que descrevem pormenorizadamente o costume de representar autos em pátios de casas particulares lisboetas.
Adaptado de https://www.infopedia.pt/artigos/$el-rei-seleuco
Júlio Dantas - Escritor português nascido em 1876, em Lagos, e falecido em 1962, em Lisboa. Cultivou os mais variados géneros literários, como o romance, a poesia, o teatro e conto, tendo-se também dedicado ao ensaio. Alcançou os seus maiores êxitos no teatro, com obras como A Severa, A Ceia dos Cardeais, Rosas de Todo o Ano e O Reposteiro Verde.




Personagens: Moço, Mordomo (dono da casa), Martins, Ambrósio, escudeiro, representador, El-Rei Seleuco, Rainha Estratónica (sua mulher), Antíoco (príncipe), Leocádio (pajem de Antíoco), Moça, Porteiro, Alexandre (músico), restantes músicos, Frolalta (criada da Rainha), físico, Sancho (criado do físico) e Estácio da Fonseca.
- Excerto - Páginas 15 a 19.
MARTIM, vendo rir LANÇAROTE
Que salgado moço, este!
— Anda cá.
— Zombaste de mim?
ROMÃO, a LANÇAROTE
Como te chamas tu?
LANÇAROTE
Eu nunca me chamo.
MARTIM
Donde és natural?
LANÇAROTE
Donde quer que me acho.
MARTIM
Pergunto-te onde nasceste.
LANÇAROTE
Nas mãos das parteiras.
ROMÃO
Em que terra?
LANÇAROTE
Toda a terra é uma; e mais,
eu nasci em casa assobrada,
varrida daquela hora,
que não havia palmo de terra nela.
MARTIM
Bem varrido de vergonha que tu me pareces.
Dize: de quem és filho?
LANÇAROTE
Eu?
MARTIM
É para ver com que disparate respondes.
LANÇAROTE
A falar verdade, parece-me a mim
que sou filho de um meu tio.
ROMÃO
De teu tio?
MARTIM
E isso como?
LANÇAROTE
Como? Isto, senhor, é adivinhação
que vossas mercês não entendem.
Meu pai era clérigo; os clérigos
sempre chamam aos filhos, sobrinhos;
e daqui me ficou a mim
ser filho de meu tio.
MARTIM, rindo
Ora te digo que és gracioso.
LANÇAROTE
E ainda vossas mercês
me não ouviram uma trova.
Faço-as tão bem como o Chiado.
ROMÃO
Tu?
LANÇAROTE
E canto-as à viola.
MARTIM, dando-lhe uma viola que está sobre um tamborete
Ora assenta-te aqui.
— Vamos lá ouvir uma trova,
enquanto não chegam as figuras do Auto.
LANÇAROTE, tomando a viola
Aí vai uma, feita à moça Briolanja, minha dama.
— Assoem vossas mercês os engenhos,
senão não entendem nada.
Cantando:
Por amor de vós, Briolanja,
Ando eu morto,
Pesar de meu avô torto...
ROMÃO
Mas que culpa tem teu avô
dos desfavores de tua dama?
LANÇAROTE
Pois, senhor,
se eu houver de pesar dalguém,
não pesarei antes dos meus parentes
que dos alheios? —
Ora ouçam vossas mercês a volta.
Cantando:
Vossos olhos tão daninhos
Me trataram de feição,
Que não há em meu coração
Nem um trapo para atar dois reis de cominhos.
Meu bem, ando sem focinhos,
Por vós morto,
Pesar de meu avô torto...
Peça já em domínio público disponibilizada na plataforma Internet Archive
Neste excerto da peça Auto de El-Rei Seleuco, adaptada pelo escritor português Júlio Dantas, os personagens MARTIM, ROMÃO e LANÇAROTE envolvem-se num diálogo espirituoso e brincalhão que utiliza humor, jogos de palavras e absurdos para explorar temas de identidade e linhagem.
Aspetos-Chave do Excerto
Ambiguidade de Identidade:
LANÇAROTE apresenta-se declarando que “nunca me chamo” e descreve de forma humorística as suas origens como “nas mãos das parteiras”. Esta recusa lúdica em ser definido pelos marcadores tradicionais de identidade constitui uma subversão deliberada das normas sociais relativas ao nascimento e à família.
Jogos de Palavras Humorísticos:
A conversa está repleta de trocadilhos e paradoxos. Por exemplo, quando lhe perguntam onde é “natural” ou onde nasceu, as respostas evasivas e irónicas de LANÇAROTE—“Donde quer que me acho” e “Nas mãos das parteiras”—desafiam a importância convencional da linhagem e da origem. A sua piada sobre ser “filho de um meu tio” reforça ainda mais essa desobediência cómica à lógica e às expectativas sociais.
Elementos Musicais e Poéticos:
O diálogo transforma-se numa performance musical quando LANÇAROTE canta uma trova — um breve poema lírico — dedicada à Briolanja, sua dama. Isto não só evidencia o seu talento e sagacidade, como também adiciona uma camada de teatralidade e ritmo à peça, reforçando o tom leve e irreverente da obra.
Contexto e Adaptação:
Adaptada por Júlio Dantas, esta peça integra uma tradição mais ampla do teatro português, que combina temas históricos ou mitológicos com humor contemporâneo e comentário social. A obra utiliza a farsa e a sátira para entreter e, ao mesmo tempo, criticar subtilmente as rígidas estruturas sociais da sua época.