Magalhães, Joaquim - Uma Escrita na Primeira Pessoa

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Uma Escrita na Primeira Pessoa de Joaquim Magalhães recolha e anotações de JOAQUIM ANTERO ROMERO MAGALHÃES –com prefácio de Lídia Jorge:

Título: Uma Escrita na Primeira Pessoa
Autor: Joaquim Magalhães (recolha e anotação por Joaquim Romero Magalhães)
Editora: Âncora Editora
Ano de edição: dezembro de 2016
ISBN: 978‑9727805808
Páginas / Formato: 312 páginas; capa mole; dimensões ~148 × 229 mm
Natureza da obra / Conteúdo: Trata‑se de uma recolha de cartas escritas por Joaquim Magalhães — um diário epistolar/biográfico — com anotações do organizador (J. Romero Magalhães). O livro apresenta essas cartas como retratos do século XX português através da vivência pessoal do autor.
O livro foi lançado publicamente com sessão de apresentação num evento de «Livros Abertos» — em Loulé — onde se destacou a importância da “epistolografia deixada pelo extraordinário professor” que foi Joaquim Magalhães. Como obra, oferece um retrato íntimo, documental e pessoal, permitindo conhecer o autor sob uma perspetiva biográfica e quotidiana .


  • Prefácio de Lídia Jorge
  • Excerto 1

O DADOR UNIVERSAL
Se cada homem é feito de muitos homens, o homem culto é feito de muitos homens cultos. Joaquim Magalhães em Primeira Pessoa, uma reconstituição biográfica a partir da epistolografia deixada pelo extraordinário professor que foi este homem evocado neste livro, revela isso mesmo. Um ambiente familiar culturalmente exigente, a convivência com a élite intelectual mais criativa da sua geração durante o período de juventude, a relação com o mundo cultural pedagógico que foi acompanhando ao longo do seu tempo, alterando-o, subvertendo-o, servindo de modelo antecipado para muitas das mudanças que na sua altura pareciam desviantes, para mais tarde serem incorporadas como revolucionárias e modernas. Este livro fala dessa figura que se formou na atmosfera dos modernistas portugueses, sem nunca se desviar do seu ideário de ousadia, universalismo e comprometimento com o pequeno mundo, tendo como referência o mundo maior.

  • Excerto 2

Mas o que mais me sensibiliza nesta viagem pelo interior de uma vida, condensada neste livro de memória, é poder perceber, de forma retroativa, quem era na intimidade o homem público que marcou tantas gerações, deixando sinais luminosos por todos os lugares por onde foi passando. Podermos acompanhar, através desta compilação, a sua trajetória pessoal com recurso ao relato semiprivado e semipúblico, que é o corpo híbrido que sempre constitui uma carta dirigida a amigos, ou uma carta dirigida ao pai e à família. Quem conheceu de perto Joaquim Magalhães, foi seu amigo, ou seu aluno, ou mesmo seu discípulo, por certo que este encontro com a caótica outra vida, agora revelada, traz à luz do dia, por seu próprio punho a vida de um homem que, de outro modo, não caberia em nenhum livro. Ainda bem que o seu filho, Joaquim Romero Magalhães, se sentiu na obrigação de publicar estas cartas e de lhes juntar os textos, necessários para que ficassem históricas e compreensíveis. À enumeração caótica que constitui todas as vidas no quotidiano, acrescenta Romero Magalhães a descrição do contexto, os esclarecimentos que faltam, as notas sobre a vida, os acertos das datas, as ligações entre passado e futuro, a partir do conhecimento privilegiado que a proximidade lhe permite e, neste caso, a admiração e o amor incitam. Também por isso, este é um livro de família. Mas um livro de família sem outra pretensão que não seja desenhar uma árvore de ascendentes e descendentes, raízes e ramos, unidos por um tronco comum, a figura de um homem luminoso.

  • Excerto 3

Um homem luminoso cujo nome fica ligado, como ele bem entendeu, e estas cartas o demonstram, àquela área a que hoje se chamaria de divulgador ou animador cultural. Um professor de Liceu de cultura superior, um infindável presencista, que procurava, a partir da Literatura, de forma voluntária, e pro bono, retirar da inércia as províncias pachorrentas por onde passava. Um oponente ao Estado Novo, atiçando o discernimento pela inteligência, e procurando por esse meio, lento, mas eficaz, formar pessoas através da Arte e da Beleza para a compreensão dos factos. Estas cartas falam dessa luta, e falam também de como Joaquim Magalhães pôs de lado a criação literária própria para se entregar à leitura e ao estudo dos grandes autores. Houve nele um ator que levou os outros a entenderem teatro, um poeta que em vez de escrever e publicar poesia, leu poesia e fez outros serem poetas. Houve nele um idealista que em vez de discorrer sobre os ideais, e publicá-los em livro, viveu-os no quotidiano, com naturalidade, mas em forma de exemplo para aqueles que de si se aproximavam. Houve nele um homem paciente que foi capaz de descobrir e amparar o poeta popular português mais importante de sempre, António Aleixo. Houve nele um sedutor pela palavra, um orador extraordinário, pela simplicidade e pelo saber. Houve um homem, que ensinou a ler em voz alta, com o acento da sua voz baixa, como poucos atores o sabem fazer. Essa parte, essa não consta das cartas senão enquanto reflexo da sua personalidade cuidada, sofisticada e ao mesmo tempo simples.

  • Excerto 4

Aliás, o próprio organizador desta publicação sabe que existe uma dimensão de Joaquim Magalhães que não pode ser captada nas cartas, senão como reflexo. Refiro-me à dimensão do homem falador. Uma dimensão que os meios da altura não costumavam captar, e até porque o melhor da sua prestação era a intervenção espontânea, afetiva, despida de qualquer representação pública. Muitos de nós, seus alunos, alguns tornados seus discípulos, sabem quanto esse homem era uma lição aberta. Estas cartas, literariamente impecáveis, falam desse seu carácter singular. E são redobradamente interessantes porque permitem ainda recriar um tempo histórico, já distante ainda tão presente, um modo de comunicar que entretanto se tornou extemporâneo, mas poeticamente se faz contemporâneo pela distância atraente que move consigo. São privações próprias de um tempo, histórias de doenças e noivados, nascimentos, batizados, de mistura com notícias de deambulações, perseguições, incompreensões, traições e fidelidades, assaltos e julgamentos públicos, reconhecimentos, e atos de gratidão, as varizes da circulação humana que estão para além dos tempos. São cartas de uma vida reunidas, a que faltam muitas que, por certo, dariam vários outros livros. São cartas que retratam o século XX português, escritas pela mão de um homem que sabia escrever e contar, e que o fez na simplicidade pura de apenas falar de si, para dar conhecimento aos seus.

  • Excerto 5

Por mim, sinto pena de não ter guardado as cartas que me dirigiu sobretudo durante os anos sessenta. Não foram muitas, mas foram algumas, pelo menos as necessárias para nos entendermos e selarmos uma amizade que nunca esmoreceu. Cartas bem singulares. Lembro-me que numa delas, havia uma menção misteriosa à questão dos grupos sanguíneos. Parecia Joaquim Magalhães acreditar que existia uma relação estreita entre o tipo de sangue e a qualidade do espírito, e perguntava-me se eu sabia qual o meu grupo, porque ele estava convencido que eu seria do grupo O, um dador universal, aquele que tudo dava, e tudo perdia pelos outros. Um O, um generoso puro. Eu ter-lhe-ia respondido que pertencia a outro grupo, não generoso, mas sem me aperceber das implicações de semelhante pergunta. Só passados muitos anos, quando certa vez o visitei num hospital, me ocorreu que Joaquim Magalhães seria ele mesmo um dador desse tipo. O meu professor já não se lembrava da carta, por certo, e confirmou que sim, que ele mesmo pertencia ao grupo dos dadores universais, sem fazer qualquer outro comentário. Não era preciso. Junto da sua cama branca, eu compreendi, então, que, um dia, no passado, ele teria desejado que eu fosse do seu team humano, superior. E eu não era. O que eu daria, agora, para reconstituir essa carta. Não para que fosse publicada neste volume, construído, peça a peça, com tanta delicadeza, pelo seu filho. Antes num outro, bem mais caótico, por certo, onde constassem todas as cartas dos seus outros filhos, aqueles a quem Joaquim Magalhães chamava simplesmente alunos. Mas na dimensão do seu afeto, e na conceção que tinha do mundo, nós sempre soubemos que, para ele, éramos bem mais que que isso.

Lídia Jorge
P. 9-12