Jorge, Lídia - Joaquim Magalhães: figura tutelar-artigo-completo

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Joaquim Magalhães: Figura Tutelar. Lídia Jorge

In: ANAIS DO MUNICÍPIO DE FARO
Volume XLII 2020

O tempo vai passando, mas a lembrança da figura de Joaquim Magalhães não passa. O que deixou como rasto material, poemas, cartas, fotografias, livros, não faz justiça ao cidadão que foi, como influenciou pessoas para sempre, como mudou o ambiente cultural da cidade onde viveu e lecionou, como deixou impressas as suas marcas nos alunos e discípulos que tiveram a sorte de ter disfrutado da sua companhia, como foi um homem de saber e de princípios. A sua influência realizou-se corpo a corpo, rosto a rosto, a influência da sua personalidade escapa à tentativa de a descrever. Exerceu-se em várias frentes, e dispersou-se, como é próprio de quem atende à solicitação alheia muito mais do que à conveniência do que a si mesmo diz respeito. Mas, para obedecer ao princípio da objetividade, eu diria que os seus passos concretos mais visíveis estão ligados a uma instituição de ensino, o então designado por Liceu Nacional de Faro.

Foi aí que, de forma sistemática, ao longo de muitos anos, Joaquim Magalhães exerceu o seu magistério incomum, já que a sua pedagogia de periferia não se enquadrava, de modo algum, no quadro autoritário próprio da escola do Estado Novo. Admirador dos espíritos livres, e invocando amiúde Sebastião da Gama, as suas aulas eram de leitura e de declamação, de escrita, de informação sobre autores, de estética e de ética, eram aulas concebidas como peças de arte. Diria que o tempo tem passado, mas Joaquim Magalhães como pedagogo, no seu tempo, foi um moderno, de uma modernidade que hoje em dia, ainda só em alguns recantos académicos singulares se pratica, porque ele defendia uma pedagogia livre, uma via maiêutica, como se a lição de Rousseau tivesse tido um eco decisivo na sua personalidade enquanto professor.

Joaquim Magalhães entrava nas aulas e encarava os alunos que se sentavam à sua frente como se todos tivessem nascido para o bem e para a sabedoria, dois eixos que não separava. E acreditava que todos podiam atingir um grau melhor, se não excelente. Acreditava e praticava a pedagogia como um ato de libertação, a instrução, como um meio de promover a dignidade. Assim, a crença na natureza humana como um projeto luminoso que sempre poderia ser realizado enformava as suas aulas, as suas leituras em voz alta, a sua ideia de que contagiar pelo entusiasmo era a melhor forma de criar cidadãos sensíveis. A gramática, que ele considerava um refúgio, o esquema da lição, que considerava dever estar aberto ao acontecer na aula, a surpresa que aconteceria em redor dos textos como elemento instigador da leitura, do comentário e da escrita a propósito, • eram ingredientes, nos quais, passadas todas estas décadas, se reconhecem perspetivas que muitas escolas do mundo moderno, o dos computadores, ainda estão por implementar.

Não deixou essa teoria escrita? - Não deixou. Passado todo este tempo, poderemos estar a abusar da memória que nos deixou, podemos estar a sublinhá-la em demasia, a alterá-la segundo a nossa própria vivência e o nosso desejo? - Não creio. A troca de impressões ocasionais que se estabelecem entre os seus antigos alunos confirma que o seu método, que parecia não ter método, e a força da Interpretação estimulante dos grandes textos, que abordava como peças de religião, fez dele uma figura multo própria, um entusiasta generoso, cuja pedagogia magna ia para além do espaço da aula, e se estendia pela cidade onde ele pontuava como animador, instigador, promotor de ações culturais em várias áreas. Muitos dos seus alunos foram chamados para a música porque ele os chamou, para as exposições de pintura porque ele enviava recados aos alunos para as sessões de abertura, para se conhecerem de perto os pintores, muitos de nós vimos teatro pele primeira vez porque ele nos incitava. Os filmes que passavam no cinema da Rua de Santo António em Faro mereciam o seu comentário, incitação ou desvio. Joaquim Magalhães em cada estação do ano não só construía um programa, como ele mesmo era uma agenda cultural de difusão, numa cidade de província pacata, sem grandes voos e muito pouca ambição.

Quem com ele privava percebia que tinha tido vontade de ser um criador. Porque não foi um criador, quando no início da sua juventude tudo indicava que o fosse? Porque escolheu ser um generoso difusor? Um multiplicador cultural, quando a expressão e o conceito ainda não existiam? - São perguntas que não têm resposta. Fazem parte do segredo escondido no seu íntimo, como acontece na partição dos caminhos escolhidos por cada um de nós. Certa vez entregou um molho dos seus poemas às suas alunas mais chegadas, mas disse alguma coisa assim -"Aqui têm, mas vocês têm de fazer muito melhor". Foram momentos preciosos que nos ofereceu, frases inesquecíveis que perduram enquanto vivermos. O que cada um dos seus alunos lhe deve não é mensurável, quanto muito, nomeável.

Em 2016, a propósito do livro que seu filho, Romero Magalhães, organizou, Joaquim Magalhães em Primeira Pessoa, uma reconstituição biográfica construída a partir da epistolografia deixada por seu pai, pude escrever -"Joaquim Magalhães pôs de lado a criação literária própria para se entregar à leitura e ao estudo dos grandes autores. Houve nele um ator que levou os outros a entenderem teatro, um poeta que em vez de escrever e publicar poesia, leu poesia e fez outros serem poetas. Houve nele um idealista que em vez de discorrer sobre os ideais e publicá-los em livro, viveu-os no quotidiano, com naturalidade, mas em forma de exemplo para aqueles que de si se aproximavam. Houve nele um homem paciente que foi capaz de descobrir e amparar o poeta popular português mais importante de sempre, António Aleixo. Houve nele um sedutor pela palavra, um orador extraordinário, pela simplicidade e pelo saber. Houve um homem que ensinou a ler em voz alta, com o acento da voz baixa, como poucos atores o sabem fazer. Essa parte, essa não consta das cartas senão enquanto reflexo da sua personalidade cuidada, sofisticada e ao mesmo tempo simples."

Passados estes anos, é falha minha não saber dizer mais nem melhor sobre aquele que foi meu mestre, meu amigo, e continua a tutelar parte da minha vida como um familiar imprescindível.
Boliqueime, 16 de Março, 2020

ver também https://wikialgarve.pt/autoresalgarvios/index.php/Jorge,_L%C3%ADdia_-_Joaquim_Magalh%C3%A3es:_figura_tutelar