Jorge, Lídia - Joaquim Magalhães: Figura Tutelar
- Lídia Jorge
Boliqueime, Loulé, 18/06/1946.
Figura maior da literatura contemporânea em língua portuguesa. Romancista. Contista. Licenciada em Filologia Românica. Foi Professora. Membro do Conselho de Estado. Integrou o Conselho Geral da Universidade do Algarve. Patrona da Biblioteca Municipal de Albufeira. Foi aluna do professor Magalhães no Liceu de Faro / Escola Secundária de João de Deus nos anos 60 do século XX.
Lídia Jorge:
- [O professor Joaquim Magalhães] foi meu mestre, meu amigo, e continua a tutelar parte da minha vida como um familiar imprescindível.
- Joaquim Magalhães pós de lado a criação literária própria para se entregar à leitura e ao estudo dos grandes autores. Houve nele um ator que levou os outros a entenderem teatro, um poeta que em vez de escrever e publicar poesia, leu poesia e fez outros serem poetas.
- Descobre como Joaquim Magalhães, o professor e o humanista, inspirou gerações no Liceu de Faro — incluindo a escritora algarvia Lídia Jorge — e transformou a educação numa experiência de sabedoria e humanidade nos excertos do artigo Joaquim Magalhães: Figura Tutelar de Lídia Jorge, publicado nos ANAIS do Município de Faro.
Excerto 1
O tempo vai passando, mas a lembrança da figura de Joaquim Magalhães não passa. O que deixou como rasto material, poemas, cartas, fotografias, livros, não faz justiça ao cidadão que foi, como influenciou pessoas para sempre, como mudou o ambiente cultural da cidade onde viveu e lecionou, como deixou impressas as suas marcas nos alunos e discípulos que tiveram a sorte de ter disfrutado da sua companhia, como foi um homem de saber e de princípios. A sua influência realizou-se corpo a corpo, rosto a rosto, a influência da sua personalidade escapa à tentativa de a descrever. Exerceu-se em várias frentes, e dispersou-se, como é próprio de quem atende à solicitação alheia muito mais do que à conveniência do que a si mesmo diz respeito. Mas, para obedecer ao princípio da objetividade, eu diria que os seus passos concretos mais visíveis estão ligados a uma instituição de ensino, o então designado por Liceu Nacional de Faro.
Foi aí que, de forma sistemática, ao longo de muitos anos, Joaquim Magalhães exerceu o seu magistério incomum, já que a sua pedagogia de periferia não se enquadrava, de modo algum, no quadro autoritário próprio da escola do Estado Novo. Admirador dos espíritos livres, e invocando amiúde Sebastião da Gama, as suas aulas eram de leitura e de declamação, de escrita, de informação sobre autores, de estética e de ética, eram aulas concebidas como peças de arte. Diria que o tempo tem passado, mas Joaquim Magalhães como pedagogo, no seu tempo, foi um moderno, de uma modernidade que hoje em dia, ainda só em alguns recantos académicos singulares se pratica, porque ele defendia uma pedagogia livre, uma via maiêutica, como se a lição de Rousseau tivesse tido um eco decisivo na sua personalidade enquanto professor.
Joaquim Magalhães entrava nas aulas e encarava os alunos que se sentavam à sua frente como se todos tivessem nascido para o bem e para a sabedoria, dois eixos que não separava. E acreditava que todos podiam atingir um grau melhor, se não excelente. (…)
Excerto 2
Quem com ele privava percebia que tinha tido vontade de ser um criador. Porque não foi um criador, quando no início da sua juventude tudo indicava que o fosse? Porque escolheu ser um generoso difusor? Um multiplicador cultural, quando a expressão e o conceito ainda não existiam? - São perguntas que não têm resposta. Fazem parte do segredo escondido no seu íntimo, como acontece na partição dos caminhos escolhidos por cada um de nós. Certa vez entregou um molho dos seus poemas às suas alunas mais chegadas, mas disse alguma coisa assim -"Aqui têm, mas vocês têm de fazer muito melhor". Foram momentos preciosos que nos ofereceu, frases inesquecíveis que perduram enquanto vivermos. O que cada um dos seus alunos lhe deve não é mensurável, quanto muito, nomeável. (…)
Excerto 3
Em 2016, a propósito do livro que seu filho, Romero Magalhães, organizou, Joaquim Magalhães em Primeira Pessoa, uma reconstituição biográfica construída a partir da epistolografia deixada por seu pai, pude escrever -"Joaquim Magalhães pôs de lado a criação literária própria para se entregar à leitura e ao estudo dos grandes autores. Houve nele um ator que levou os outros a entenderem teatro, um poeta que em vez de escrever e publicar poesia, leu poesia e fez outros serem poetas. Houve nele um idealista que em vez de discorrer sobre os ideais e publicá-los em livro, viveu-os no quotidiano, com naturalidade, mas em forma de exemplo para aqueles que de si se aproximavam. Houve nele um homem paciente que foi capaz de descobrir e amparar o poeta popular português mais importante de sempre, António Aleixo. (…)
Boliqueime, 16 de Março, 2020.
Os Excertos acima são do Artigo (páginas 26 a 29) Joaquim Magalhães: Figura Tutelar de Lídia Jorge, publicado no Volume XLII dos Anais do Município de Faro, 2020, que pode consultar ou requisitar na biblioteca António Ramos Rosa e nas bibliotecas escolares de Faro.
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- CORREIO DA TARDE
Não sei o que hei de fazer com as nuvens.
O que me dizem são passagens rápidas
sobre as cidades, e às vezes deixam chuva
outras, sombras na paisagem.
Mesmo assim, escrevem-nos palavras
que leio como quem soletra pela primeira vez
uma carta enviada de longe pelo pai
anunciando o seu regresso.
Não trará fortuna, diz a carta.
Mas dará notícia da origem, está escrito
na nuvem.
Trará também consigo, dentro da mala
de viagem, o anúncio da razão de ser.
Vão e voltam, grandes navios de sinais
e levam a minha resposta — peço eu.
Quanto sei, quanto posso, quanto conheço
e de alguma coisa mais que ainda me sobeja
eu daria para poder ler o que vai escrito
nas nuvens desta tarde sobre o espetáculo
do primeiro vapor de água e sua fala ao mundo.
- CONDIÇÃO HUMANA
Comi animais que estavam vivos
antes de chegarem à mesa.
Eu sabia disso.
Não fui eu quem os caçou
mas peguei na faca e no garfo
e dei-lhes a estocada final.
Limpei a minha casa com plumas
vesti-me de véus, perfumes, luvas
e chapéus com laços para comê-los.
Não sei se eles sabiam ao que vinham.
Alguns cresceram no meio natural dos
seus pastos, outros dentro de gaiolas trancadas
e nunca se ofenderam, ou assim parecia
já que se reproduziam e cantavam.
Eu maquilhei o meu rosto para disfarçar
os punhais que existem sobre a mesa.
— Até que me desmaquilhe ao fim da noite
não arruinarei a minha paz.
Mas a fome chega pela manhã
e de novo vou à caça.
- PARTIDA PARA O COMBOIO
Filha minha, caminha pela sombra
que o sol não te altere a cor das faces.
Se encontrares o ribeiro cheio, tira os sapatos
e atravessa-o para chegares a horas
lá onde fazes falta.
A faca é do lado direito, a mão pousada.
Fecha os lábios, que não te caia a mais
pequena migalha na carpete.
Na retrete, une as pernas, urina com cautela
para que ninguém te escute nem te veja.
Não deixes borras de sabão no fundo da banheira
e nem um cabelo lá onde te penteias.
Não fales alto.
Primeira da classe, o teu braço direito
terá de andar no ar como um papagaio de papel
ao vento. Ele diz, sem dizeres — Eu sei, eu sei, senhora.
Secreta sabedora.
Tranca a porta do teu quarto à chave
podem querer roubar-te o coração de carne.
O outro, esconde-o na gaveta para falares com Deus.
Tu, tal como eu, filha minha
pequenina.
Tal como eu, pura até às espadas
assim sejas para sempre.
Ámen.
- A QUE ESPERA
A tristeza sentou-se à minha porta
mas eu não a alimentei.
Cão de guarda por cão de guarda
prefiro a alegria.
A ela entrego os meus dias
e o abraço daquele que vem de longe
para me dizer que o amor que foi ontem
ainda é hoje.
- MAIORIDADE
Sei de éguas e de rosas cuidar como ninguém.
No papel desenho-as, na mesa escrevo-as.
Alimento-as com os meus olhos de guardar
e de suster. Facas, garfos, cabides de madeira
e antiguidades que desprezo e prezo conforme
a hora e o dia. Uma vaga fidalguia que me veio
de ser mais abonada que outros pobres e saber
disso, o como e o onde compro, e a arte de
ficar à espera evitando o desperdício.
O meu vício consiste em perceber como funciona
o fogo e quem o tem, e como arde a carta que o amor
enviou de longe e cuja resposta a sua pessoa ainda
não veio buscar, nem virá.
A minha gateira não abre para o telhado mas para um bar
em frente. De noite, quando há luar, entrego o meu corpo
àquele que em tempos foi cocheiro do meu pai.
Para a minha alma, traves, e um dragão
de guarda e suas chaves.
- NADA DE NOVO
De novo, nada de novo neste Mundo — Na encosta
do monte, a sarça continua a arder e a voz que a ateia
crepita como se fosse a labareda desprendida
de uma estrela.
Pois a estrela longínqua, essa, nasce e morre
tal como entre nós cresce e fenece o passarinho.
Só que leva mais tempo, e o brilho do seu relâmpago
de correr não chegará à Terra, pelo menos enquanto
o dia for claro e a noite escura, e para atravessá-la
tivermos de acender a chama cintilante
de uma vela.
- Excerto 1 (p. 15).
Então Manuel Gertrudes disse. Ah Macário. Ah punhão. Como é possível que eu venha aqui para te falar do que acaba de suceder, e te encontre deitadinho como um animal montês. E depois já de cócoras disse. Dorso curvado. Nem um capachinho debaixo da cabeça, nem um paninho a cobrir-te das moscas. Aqui tombado como não sei o quê. Vinha eu para te dizer o que acaba de acontecer a todos os habitantes. Como um aviso. E vai daí, vejo-te aqui espernegado no chão, sem te mexeres como se estivesses morto pelo flato. Se não afegasses quando te ponho a mão na boca e nas ventas, assim rodeado de bichos, havia de pensar que nem mais mexerias no bandolim. E olhando à volta disse. Felizmente que fui soldado na primeira guerra deste século, e que vivi meses dentro de trincheiras, para poder encarar estas adversidades sem descrer em deus, Faz-te um pouco mais leve, filho da tua mãe, que vou levar-te para a tua cama. Aí deitadinho podes descansar o teu corpo, e quando acordares. Ai, quando acordares. Então logo venho contar o que sucedeu ali no largo em frente de toda a gente. Agora ninguém mais. Macário. Agora ninguém mais põe em dúvida que os anjos existam. Mas tu. Apesar de tudo, tu és a segunda maravilha. Só que em te começandes a almarear. A almarear e a olhar de revés. Já ninguém tem mão na tua natureza. Abres os olhos como se quisesses acordar, ou pelo menos compreender dormindo. Como se tivesses um raminho de cipreste poisando na tua testa. Ai de mim. Ai de mim.
- Excerto 2 (p. 31).
_Tu bem sabes, Esperancinha, que antes dos meus avós isto aqui era um deserto. Só havia ali na curva do rio um moinho velho, onde de noite, apareciam medos. Neste sítio onde tu prantas o pé, era mato alto, como nesse tempo havia, com lenha até à cabeça dum homem. O chão de pedras, e por aqui e por ali uma ou outra, veredinha. As pessoas viviam além atrás dos cerros, além, além. Neste endireito do meu braço. Chamava-se Vilamurada. Ficava aí a umas três horas de andamento na direção do mar. Era sim. Dizem que era uma terra boa para viver. Branca, com rendimento de amêndoa fofana, e vinha de courelas. Mas tinha o senão. Oh Esperancinha. Tinha o grande senão. As tropas dum rei que morava em Lisboa passavam por ali quatro ou cinco vezes no ano, a galope, para as bandas de Silves e Faro. Pilhavam a criação, pisavam a salsa. Ai é assim? Resolveu o meu passado. Um desses que deus haja. Levantar uma casa cá desta banda do rio. Nessa altura o rio ainda era rio, fazendo aqui um cotovelo alagadiço. Oh Esperancinha. Ainda há por lá na embeirada pedras de lavar a roupa.
O noivo aproximou-se-lhe da boca, a princípio encontrou os dentes, mas logo ela parou de rir e as línguas se tocaram diante do fotógrafo. Foi aí que o cortejo sofreu um estremecimento de gáudio e furor, como se qualquer desconfiança de que a Terra pudesse ter deixado de ser fecundada se desvanecesse, Já não estavam junto de nenhum altar, mas no terraço do Stella Maris cujas janelas abriam ao Índico. No terraço, obviamente, não havia janelas, ape- nas pilares sobre os quais se estendia uma cobertura suave mas suficientemente protetora para se poder receber um cortejo daquela importância e quantidade. O fotógrafo subiu a cadeiras e desceu. .1988 até ao chão, de modo a ficar completamente estendido para apanhar o beijo em todas as posições.