Difference between revisions of "Sartre, Jean-Paul - Livros Proibidos"

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*'''Jean-Paul''' Charles Aymard '''Sartre''' (1905 – 1980)
 
*'''Jean-Paul''' Charles Aymard '''Sartre''' (1905 – 1980)
 
  Filósofo, escritor e crítico francês. Foi o expoente máximo do "Existencialismo" – corrente filosófica que pregava a liberdade individual do ser humano. Em maio de 1968, apoiou a rebelião estudantil que ajudou a derrubar o governo conservador francês.
 
  Filósofo, escritor e crítico francês. Foi o expoente máximo do "Existencialismo" – corrente filosófica que pregava a liberdade individual do ser humano. Em maio de 1968, apoiou a rebelião estudantil que ajudou a derrubar o governo conservador francês.
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*Livros Proibidos
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Nesta wiki apresentamos excertos de '''As Moscas''' e de '''As Mãos Sujas'''<br />
  
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*Excerto 1 - '''As Moscas'''
Leitura – As Moscas, Jean-Paul Sartre
 
 
 
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Para que são as moscas aqui chamadas? <br />  
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Oh!  São  um  símbolo.  Mas  o  que  elas  fizeram  julgai-o  por  isto:  olhai  ali  aquela  centopeia  velha  que  arrasta  as  negras  patitas,  rasando  a  parede; é um belo espécime dessa fauna negra e achatada que pulula  nas  fendas.  É  num  instante  que  a  apanho  e  vo-lo  trago  aqui.  (Salta  sobre  a  velha e trá-la para a boca da cena.) Aqui está o pescado. Vede que horror! <br />
 
Oh!  São  um  símbolo.  Mas  o  que  elas  fizeram  julgai-o  por  isto:  olhai  ali  aquela  centopeia  velha  que  arrasta  as  negras  patitas,  rasando  a  parede; é um belo espécime dessa fauna negra e achatada que pulula  nas  fendas.  É  num  instante  que  a  apanho  e  vo-lo  trago  aqui.  (Salta  sobre  a  velha e trá-la para a boca da cena.) Aqui está o pescado. Vede que horror! <br />

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Sartre, Jean-Paul - as mãos sujas - Fotog.jpg Sarte, Jean-Paul - As Moscas - capa.jpgSarte, Jean-Paul - As Moscas - Censura.jpg Sarte, Jean-Paul - as mãos sujas - capa.jpg

  • Jean-Paul Charles Aymard Sartre (1905 – 1980)
Filósofo, escritor e crítico francês. Foi o expoente máximo do "Existencialismo" – corrente filosófica que pregava a liberdade individual do ser humano. Em maio de 1968, apoiou a rebelião estudantil que ajudou a derrubar o governo conservador francês.
  • Livros Proibidos
Nesta wiki apresentamos excertos de As Moscas e de As Mãos Sujas
  • Excerto 1 - As Moscas
O PEDAGOGO

Para que são as moscas aqui chamadas?

JÚPITER

Oh! São um símbolo. Mas o que elas fizeram julgai-o por isto: olhai ali aquela centopeia velha que arrasta as negras patitas, rasando a parede; é um belo espécime dessa fauna negra e achatada que pulula nas fendas. É num instante que a apanho e vo-lo trago aqui. (Salta sobre a velha e trá-la para a boca da cena.) Aqui está o pescado. Vede que horror!
(…)

ORESTES

De verdade? Paredes manchadas de sangue, moscas aos milhões, um cheiro a matadouro, um calor de rebentar, as ruas desertas, um deus com cara de assassino, essas larvas aterradas que batem nos peitos no recôndito das suas casas — e estes gritos insuportáveis; é então isto, o que agrada a Júpiter?

JÚPITER

Ah! Meu jovem, não julgueis os deuses, que eles têm dolorosos segredos.

ORESTES

Enganas-te; eu não me queixo. Nem me poderia queixar: tu deixaste -me uma liberdade igual à desse fios que o vento arranca as teias de aranha e que flutuam a dez pés do solo; ando pelos ares e não peso mais do que um fio. Sei que é uma sorte e como tal a aprecio. (Pausa). Há homens que nascem comprometidos; não têm outra alternativa, pois os impeliram para certo caminho, mas no fim desse caminho há um ato que os espera, o seu ato; e lá vão eles de pés descalços a comprimir a terra com força e a arranhar-se nos calhaus. Achas isto grosseiro este contentamento em ir para certo lugar? E ainda há outros, os taciturnos, que sentem no fundo do seu coração o peso das visões terrenas e turvas; a sua vida mudou porque certo dia da sua infância, com cinco anos, sete anos... Está bem, não são homens superiores. Agora eu, já aos sete anos sabia que era um exilado; os aromas e os sons, o barulho dá chuva nos telhados, as cintilações da luz, tudo isso eu deixava escorregar-me pelo corpo e cair à minha volta; já sabia que era aos outros que essas coisas pertenciam e que jamais poderia fazer delas as minhas recordações. As recordações são na verdade um rico alimento para o espírito dos que possuem as casas, os animais, os criados e os campos. Mas eu... Eu sou livre, graças a Deus. Ah! Como sou livre! E que esplêndido vazio trago na alma. (Aproxima-se do palácio.) Poderia ter vivido aí. Não teria lido nenhum dos teus livros e até talvez nem soubesse ler; é raro um príncipe que saiba ler. Mas teria entrado e saído dez mil vezes por esse portão. Em criança teria brincado com os seus batentes, tê-los empurrado, de pés fincados no chão e eles teriam apenas rangido sem ceder, ficando assim os meus braços a conhecer a sua resistência.
Mais tarde, tê-los-ia empurrado de noite, às escondidas, para ir ter com as raparigas. E, ainda mais tarde, no dia da minha maioridade, os escravos teriam aberto as portas de par em par e eu teria transposto a soleira a cavalo. Meu velho portão de madeira! Seria capaz de encontrar de olhos fechados a tua aldrava. E essa esfoladela aí em baixo, talvez tivesse sido eu quem ta tivesse feito, por imperícia, no primeiro dia em que me tivessem confiado uma lança. (Põe-se a certa distância.) Estilo pequeno-dórico, não é? E que te parecera essas incrustações em ouro? Vi-as parecidas em Dodona; é um belo trabalho. Olha, para te agradar, vou-te dizer: não é o meu palácio nem o meu portão. E nada temos aqui a fazer.
(…)

ELECTRA

Mas de que tendes medo? Olho à vossa volta e apenas vejo as vossas sombras. Agora escutai o que acabo de saber e que desconheceis talvez; há cidades felizes na Grécia. Cidades claras e calmas que se aquecem ao sol como lagartos. A esta mesma hora, sob este mesmo céu há crianças a brincar nas praças de Corinto. E as mães não pedem qualquer perdão por os ter trazido ao mundo. Olham-nos sorrindo e têm orgulho deles. Sois ainda capazes de compreender o orgulho duma mulher que olha o seu filho e pensa: «Fui eu que o trouxe no meu seio»?

                                                                                       As Moscas, Jean-Paul Sartre



O PEDAGOGO


Para que são as moscas aqui chamadas?


JÚPITER


Oh! São um símbolo. Mas o que elas fizeram julgai-o por isto: olhai ali aquela centopeia velha que arrasta as negras patitas, rasando a parede; é um belo espécime dessa fauna negra e achatada que pulula nas fendas. É num instante que a apanho e vo-lo trago aqui. (Salta sobre a velha e trá-la para a boca da cena.) Aqui está o pescado. Vede que horror!


(…)



ORESTES


De verdade? Paredes manchadas de sangue, moscas aos milhões, um cheiro a matadouro, um calor de rebentar, as ruas desertas, um deus com cara de assassino, essas larvas aterradas que batem nos peitos no recôndito das suas casas — e estes gritos insuportáveis; é então isto, o que agrada a Júpiter?


JÚPITER


Ah! Meu jovem, não julgueis os deuses, que eles têm dolorosos segredos.



ORESTES


Enganas-te; eu não me queixo. Nem me poderia queixar: tu deixaste -me uma liberdade igual à desse fios que o vento arranca as teias de aranha e que flutuam a dez pés do solo; ando pelos ares e não peso mais do que um fio. Sei que é uma sorte e como tal a aprecio. (Pausa). Há homens que nascem comprometidos; não têm outra alternativa, pois os impeliram para certo caminho, mas no fim desse caminho há um acto que os espera, o seu acto; e lá vão eles de pés descalços a comprimir a terra com força e a arranhar-se nos calhaus. Achas isto grosseiro este contentamento em ir para certo lugar? E ainda há outros, os taciturnos, que sentem no fundo do seu coração o peso das visões terrenas e turvas; a sua vida mudou porque certo dia da sua infância, com cinco anos, sete anos... Está bem, não são homens superiores. Agora eu, já aos sete anos sabia que era um exilado; os aromas e os sons, o barulho dá chuva nos telhados, as cintilações da luz, tudo isso eu deixava escorregar-me pelo corpo e cair à minha volta; já sabia que era aos outros que essas coisas pertenciam e que jamais poderia fazer delas as minhas recordações. As recordações são na verdade um rico alimento para o espírito dos que possuem as casas, os animais, os criados e os campos. Mas eu... Eu sou livre, graças a Deus. Ah! Como sou livre! E que esplêndido vazio trago na alma. (Aproxima-se do palácio.) Poderia ter vivido aí. Não teria lido nenhum dos teus livros e até talvez nem soubesse ler; é raro um príncipe que saiba ler. Mas teria entrado e saído dez mil vezes por esse portão. Em criança teria brincado com os seus batentes, tê-los empurrado, de pés fincados no chão e eles teriam apenas rangido sem ceder, ficando assim os meus braços a conhecer a sua resistência. Mais tarde, tê-los-ia empurrado de noite, às escondidas, para ir ter com as raparigas. E, ainda mais tarde, no dia da minha maioridade, os escravos teriam aberto as portas de par em par e eu teria transposto a soleira a cavalo. Meu velho portão de madeira! Seria capaz de encontrar de olhos fechados a tua aldrava. E essa esfoladela aí em baixo, talvez tivesse sido eu quem ta tivesse feito, por imperícia, no primeiro dia em que me tivessem confiado uma lança. (Põe-se a certa distância.) Estilo pequeno-dórico, não é? E que te parecera essas incrustações em ouro? Vi-as parecidas em Dodona; é um belo trabalho. Olha, para te agradar, vou-te dizer: não é o meu palácio nem o meu portão. E nada temos aqui a fazer.



(…) ELECTRA


Mas de que tendes medo? Olho à vossa volta e apenas vejo as vossas sombras. Agora escutai o que acabo de saber e que desconheceis talvez; há cidades felizes na Grécia. Cidades claras e calmas que se aquecem ao sol como lagartos. A esta mesma hora, sob este mesmo céu há crianças a brincar nas praças de Corinto. E as mães não pedem qualquer perdão por os ter trazido ao mundo. Olham-nos sorrindo e têm orgulho deles. Sois ainda capazes de compreender o orgulho duma mulher que olha o seu filho e pensa: «Fui eu que o trouxe no meu seio»?


                                                                                       As Moscas, Jean-Paul Sartre

Leitura – As Mãos Sujas, Jean-Paul Sartre

HUGO: Ë tão cómodo dar aos outros: nada melhor para guardar as distâncias. E depois quem come tem sempre um ar de pessoa inofensiva. (Pausa) Peço-te que me desculpes: não tenho fome nem sede. OLGA: Tinha sido mais prático dizeres logo. HUGO: O quê? Já não te lembras? Eu falava sempre de mais. OLGA : Lembro-me. HUGO, olhando à roda dele: Que deserto! E, todavia, tudo está no mesmo sítio. A minha máquina de escrever? OLGA : Vendeu-se. HUGO: Ah! (Pausa. Contempla a sala.) Que vazio! OLGA: Que vazio o quê? HUGO, com gesto circular: Tudo isto! Estes móveis parecem abandonados num deserto. Na prisão, quando eu estendia os braços podia tocar ao mesmo tempo em duas paredes opostas. Anda cá para o pé de mim. (Olga não se aproxima.) É verdade; fora da prisão as pessoas vivem a uma distância respeitosa. Tanto espaço perdido! É cómico estar em liberdade: dá vertigens. Tenho de me habituar outra vez a falar com os outros sem lhes tocar. OLGA: Quando é que eles te libertaram? HUGO: Há bocadinho. OLGA: Vieste para aqui directamente? HUGO: Para onde querias tu que eu fosse? OLGA: Não falaste com ninguém? (Hugo olha para ela e põe-se a rir.) HUGO: Não, Olga, não. Está descansada. Com ninguém. (Olga fica mais sossegada e olha para ele.)

                                                            As Mãos Sujas, Jean-Paul Sartre


O PRÍNCIPE: É evidente que a evolução do conflito cria uma situação nova. Mas não vejo o… HOEDERER: Tenho a certeza, pelo contrário, de que vê muito bem... O senhor quer salvar a Ilíria, estou convencido que sim. Mas quer salvá-la tal qual ela é, com o seu regime de desigualdade social e os seus privilégios de classe. Quando os Alemães pareciam vencedores o seu pai tinha alinhado ao lado deles. Hoje, que a sorte está a mudar de campo, quer entender-se com os Russos. Mas isso é mais difícil. KARSKY: Hoederer, foi em luta contra a Alemanha que caíram tantos dos nossos, e não o deixarei dizer que pactuámos com o inimigo para conservar os nossos privilégios. HOEDERER: Eu sei, Karsky: o Pentágono era antialemão. Vocês tinham o melhor papel: o Regente dava garantias ao Hitler para o impedir de invadir a Ilíria. Mas, ao mesmo tempo, vocês eram contra os Russos, porque os Russos estavam longe. “A Ilíria, só a Ilíria”: conheço a cantiga. Vocês cantaram-na durante dois anos à burguesia nacionalista. Mas o exército vermelho aproxima-se; não tardará um ano que esteja aqui; já a Ilíria não estará tão só. Que fazer? Não preciso arranjar cauções. Que bom se vocês pudessem dizer aos Russos: «O Pentágono trabalhava para vocês e o Regente jogava com pau de dois bicos.» O pior é que talvez eles não acreditem. E que farão nesse caso? Hem? Que farão eles? No fim de contas, declarámos-lhes guerra. O PRÍNCIPE: Meu caro Hoederer, quando a U. R. S. S. compreender que nós pensávamos sinceramente... HOEDERER: Quando a U. R. S. S. compreender que um ditador fascista e um partido conservador pensaram realmente em ajudá-la, mas só depois de descobrirem que ela ganhara a guerra, duvido que lhes fique muito reconhecida (Pausa). Um único partido conservou a confiança da U. R. S. S., um único soube ficar em contacto com ela durante toda a guerra, um único pode enviar emissários através das linhas, um único pode caucionar a vossa brilhante combinação: o nosso. Quando os Russos aqui chegarem, é no que nós lhes dissermos que se hão-de fiar, (Pausa.) Os senhores bem sabem: o melhor que têm a fazer é aceitar as nossas propostas. KARSKY: Eu devia ter-me recusado a vir aqui.

O PRINCIPE: Karsky!

KARSKY: Devia ter previsto que você ia responder a propostas honestas com uma chantagem abjecta. HOEDERER: Grite, se quiser: eu não sou susceptível. Grite como um porco na matança. Mas lembre-se disto: quando o exército soviético alcançar o nosso território, o Pentágono poderá tomar o poder connosco, se, antes, tivermos trabalhando juntos; mas, se não nos chegarmos a entender, o meu partido governará sozinho, acabada a guerra. Agora escolha. KARSKY: Eu já... O PR1NCIPE, para Karsky: A violência não resolve nada: é preciso considerar a situação com realismo. KARSKY, para o Príncipe: Príncipe, o senhor é um cobarde: atraiu-me a esta cilada só para salvar a pele. HOEDERER: Qual cilada? Vá-se embora, se quiser. Não preciso de si para me entender com o Príncipe. KARSKY, para o Príncipe: Não me diga que... O PRÍNCIPE: E porque não? Se a combinação não lhe convém, não vamos obrigá-lo a participar. A minha decisão não depende da sua. HOEDERER: Está bem de ver que a aliança do nosso partido com o governo do Regente porá o Pentágono em situação difícil durante os últimos meses de guerra; está bem de ver ainda que procederemos à liquidação definitiva do seu partido quando os Alemães tiverem capitulado. Mas, já que prefere ficar puro... KARSKY: Lutámos três anos pela independência do nosso país, milhares de rapazes nossos morreram pela nossa causa, fizemos que o mundo nos admirasse, tudo isto para um belo dia o partido alemão se associar ao partido russo e nos assassinar no recôncavo de um bosque. HOEDERER: Deixe-se de sentimentalismos, Karsky: você perdeu porque tinha de perder. «A Ilíria, só a Ilíria...» é uma divisa que protege mal um país pequeno rodeado de vizinhos poderosos. (Pausa.) Aceita as minhas condições? KARSKY: Não tenho poderes para aceitar: não sou sozinho a decidir.

                                                            As Mãos Sujas, Jean-Paul Sartre




HUGO: Onde é que estamos? Estou contente por teres vindo, sabes? Espera lá: aconteceu qualquer coisa, uma coisa muito aborrecida. Já não me podes ajudar. Agora já não me podes ajudar. Foste tu que atiraste o petardo, não foste? OLGA: Fui, HUGO: Porque é que não confiaste em mim? OLGA: Hugo, dentro de um quarto de hora um camarada vai deitar urna corda por cima do muro, e terei de me ir embora. Estou com pressa. É preciso que me ouças. HUGO: Porque é que não confiaste em mim? OLGA: Jéssica, dê-me um copo e esse jarro. (Jéssica executa. Olga enche o copo e atira a água à cara de Hugo) HUGO: Brr! OLGA: Ouves-me agora? HUGo: Vá lá! (Limpa-se.) Que dor de cabeça esta! O jarro ainda tem água? JESSICA: Tem. HUGO: Enche-me um copo, fazes favor. (Jéssica passa-lhe o copo e Hugo bebe.) Que pensam do caso os nossos amigos? OLGA: Que és um traidor. HUGO: Não estão com meias medidas. OLGA: Não podes perder mais nenhum dia. Antes de amanhã à noite o caso tem de estar arrumado. HUGO: Não devias ter atirado o petardo. OLGA: Hugo, tu quiseste encarregar-te de uma tarefa difícil e sozinho. Fui eu a primeira a ter confiança, quando havia cem razões para ta recusar, e comuniquei a minha confiança aos outros. Mas nós não somos escuteiros, e o Partido não foi criado para te proporcionar ocasiões de seres um herói. Há um trabalho para fazer, e tem de ser feito; por quem, pouco importa. Se daqui a vinte e quatro horas não tiveres desempenhado a tua missão, será designada outra pessoa, que a acabará por ti. HUGO: Se me substituírem, saio do Partido. OLGA: Que é que tu imaginas? Julgas que se pode assim abandonar o Partido? Estamos em guerra, Hugo, e os camaradas não andam a brincar. Do Partido só se sai com os pés para diante. HUGO: Não tenho medo de morrer. OLGA: Morrer é o menos. Mas morrer tão estúpidamente, depois de ter falhado em tudo; ser despachado, como um vendido, ou, pior ainda, como um pobre imbecil, cujos disparates se tornaram perigosos... É isso que tu queres? Era isso que tu querias da primeira vez que foste a minha casa, naquele dia em que parecias tão feliz e orgulhoso? Diga-lho a senhora também! Se gosta um pouco dele, não pode querer que o abatam como um cão. JESSICA: A senhora bem sabe que eu, de política, não percebo nada. OLGA: Então, que decides? HUGO: Não devias ter deitado o petardo. OLGA: Que decides? HUGO: Amanhã vocês saberão. OLGA: Está bem. Adeus, Hugo. Hugo: Adeus, Olga. JESSICA: Minha senhora, até à vista. OLGA: É preciso que não me vejam sair. Apague a luz. (Jéssica apaga a luz. Olga abre a porta e sai.)

                                                            As Mãos Sujas, Jean-Paul Sartre





HUGO: O Partido tem um programa: a realização de uma economia socialista; e um meio: a utilização da luta de classes. O senhor vai servir-se dele para fazer urna política de colaboração de classes no quadro de urna economia, capitalista. Durante anos vai mentir, usar de manhas, de rodeios; irá de compromisso em compromisso: vai defender perante os nossos camaradas medidas reacionárias tornadas por um governo de que fará parte. Ninguém compreenderá: os convictos vão abandonar-nos, os outros vão perder a cultura política que acabam de adquirir. Seremos contaminados, amolecidos, desorientados; tornar-nos-emos reformistas e nacionalistas; para rematar, os partidos burgueses terão apenas de se dar ao trabalho de nos liquidarem. Hoederer!, este partido é o seu, o senhor não pode ter esquecido quanto lhe custou forjá-lo, os sacrifícios que foi preciso pedir, a disciplina que foi preciso impor. Suplico-lhe: não o sacrifique pelas suas mãos. HOEDERER: Tanto palavreado. Se não queres correr riscos, não te metas na política. HUGO: Não quero correr riscos desses. HOEDERER: Perfeitamente. Diz-me então como havemos de conservar o poder. HUGO: Não somos obrigados a conquistá-lo. HOEDERER: Estás doido? Um exército socialista vai ocupar o País e queres deixá-lo partir sem aproveitar a ajuda? É uma oportunidade que talvez nunca se repita: já te disse que não somos bastante fortes para fazermos a Revolução sozinhos. HUGO: Por esse preço não se deve tomar o poder. HOEDERER: Que queres tu fazer do Partido? Um grupo desportivo? Para que é que serve passarmos todos os dias a afiar uma faca, se nunca cortamos com ela? Um partido é apenas um meio. O objectivo é só um: o poder. HUGO: O objectivo é só um, sim: fazermos triunfar as nossas ideias, todas as nossas ideias, e apenas elas. HOEDERER: É verdade: já me esquecia que tu tens ideias. Isso passa-te.


                                                            As Mãos Sujas, Jean-Paul Sartre


HUGO: Sim. Apertei realmente o dedo. Mas, num palco, os actores fazem o mesmo. Olha, olha para aqui: aperto o dedo, faço pontaria para ti. (Aponta com a mão direita, com o indicador em gancho.) o mesmo gesto. Talvez fosse eu que não fosse verdadeiro. Talvez só fosse verdadeira a bala. Porque te estás tu a rir? OLGA: Porque me facilitas muito as coisas. HUGO: Achava-me novo de mais; quis pendurar um crime ao pescoço como uma pedra. E receava que ele fosse muito pesado. Grande erro: é leve, horrivelmente leve. Não tem peso. Olha para mim: envelheci, passei dois anos à sombra, separei-me da Jéssica, e hei-de levar esta cómica vida de perplexidade, até os nossos companheiros se encarregarem de me libertar. Tudo isso deriva do meu crime, não é verdade? E, todavia, ele não tem peso, nem o sinto. Nem ao pescoço, nem às costas, nem no coração. O meu crime tornou-se o meu destino, percebes? Vai governando a minha vida, de fora, mas eu não posso vê-lo, nem tocar-lhe. Não é meu; é uma doença mortal que vai matando sem fazer sofrer. Onde é que ele está? Existe porventura? Entretanto disparei. A porta abriu-se... Eu gostava do Hoederer, Olga. Nunca gostei tanto de ninguém na vida. Gostava de o ver e de o ouvir, gostava das mãos e da cara dele, e quando estava com ele serenavam todas as minhas tempestades. Não é o meu crime que me mata, é a morte dele. (Pausa.) E aqui está. Não aconteceu nada. Nada. Passei dez dias no campo e dois anos na prisão; não mudei; continuo tão falador corno antes. Os assassinos deviam trazer um distintivo. Uma papoila na botoeira. (Pausa.) Bom. E afinal? Conclusão? OLGA: Vais regressar ao Partido. HUGO: Bom. OLGA: À meia-noite, o Luís e o Carlos vão voltar aqui para te liquidarem. Eu não lhes abro a porta. Digo-lhes que és recuperável. HUGO, rindo: «Recuperável»! Raio de palavra. Corno um traste posto de parte e que ainda tinha serventia. OLGA: Não estás de acordo? HUGO: Porque não?

                                                            As Mãos Sujas, Jean-Paul Sartre


HUGO: Esquecê-lo? Mas eu... OLGA: Hugo! Tens de o esquecer. Não te peço grande coisa; tu próprio o disseste: não sabes o que fizeste, nem por que razão o fizeste. Nem tens bem a certeza de ter morto o Hoederer. Esplêndido! Estás no bom caminho; é preciso apenas ir um pouco mais longe. Esquece; foi tudo um pesadelo. Não fales mais no caso, nem sequer a mim. O fulano que matou o Hoederer morreu. Chamava-se Raskolnikoff; comeu uns chocolates com licor e morreu envenenado. (Acaricia-lhe os cabelos.) Eu te arranjarei outro nome. HUGO: Que é que sucedeu, Olga? Que é que vocês fizeram? OLGA: O Partido mudou de política. (Hugo olha para ela fixamente.) Não olhes assim para mim. Tenta compreender. Quando te mandámos para casa do Hoederer, as comunicações com a U. R. S. S, estavam interrompidas. Tínhamos de fixar sozinhos a nossa linha de acção. Não olhes assim para mim, Hugo! Não olhes assim para mim. HUGO: Continua. OLGA: Pouco depois, as ligações foram restabelecidas. No Inverno passado a U. R. S. S. fez-nos saber que desejava, por razões puramente militares, que nos aproximássemos do Regente. HUGO: E... e vocês obedeceram? OLGA: Obedecemos. Constituímos um comité clandestino de seis membros com os representantes do Governo e do Pentágono. HUGO: Seis membros. E três são do Partido? OLGA: Sim, como é que sabes? HUGO: Uma ideia. Continua. OLGA: A partir desse momento, as tropas ilírias deixaram praticamente de intervir nas operações. Poupámos talvez umas cem mil vidas. Mas os Alemães invadiram logo o País.

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HUGO: São eles. OLGA: Hugo, seria criminoso! O Partido... HUGO: Deixa-te de palavras bombásticas, Olga. Houve-as a mais nesta história, e produziram péssimos resultados. (O automóvel afasta-se.) Não é o carro deles. Tenho tempo para te explicar. Escuta: eu não sei porque é que matei o Hoederer, mas sei porque é que o devia ter morto: porque ele impunha uma política má, porque mentia aos camaradas e porque fazia o Partido correr o risco de apodrecer. Se eu tivesse tido coragem para disparar quando estava sozinho com ele no escritório, era por essas razões que ele teria morrido, e eu poderia então pensar em mim sem vergonha. Tenho vergonha de mim, porque o matei… depois. E vocês, vocês então querem que eu tenha mais vergonha ainda e que decida que o matei sem razão. Olga, eu ainda penso o que pensava sobre a política do Hoederer. Na prisão, julgava que vocês estavam de acordo comigo, e isso dava-me forças; sei agora que ninguém pensa como eu, mas não mudarei de opinião por causa disso. (Ruído de motor.) OLGA: Desta vez são eles. Ouve, eu não posso... toma lá este revólver. Sai pela porta do meu quarto e tenta a sorte. HUGO, sem pegar no revólver: vocês fizeram do Hoederer um grande homem. Mas nunca poderão gostar dele tanto como eu gostei. Se renegasse o meu acto, ele passaria a ser um cadáver anónimo, um detrito do Partido. (O automóvel pára.) Assassinado por acaso. Assassinado por causa de uma mulher. OLGA: Vai-te embora. HUGO: Um fulano como o Hoederer não morre por acaso. Morre pelas suas ideias, pela sua política; é responsável pela sua morte. Se eu reivindicar o meu crime diante de todos, se reclamar o meu nome de Raskonikoff e se consentir em pagar o preço que é preciso, então o Hoederer terá tido a morto que merecia.

                                                                     As Mãos Sujas, Jean-Paul Sartre


Sartre, Jean-Paul - com-Simone-de-Beauvoir.jpg
Sartre com Simone de Beuavoir.

Nota: As Moscas, que retoma a trilogia Oresteia, de Ésquilo, é uma tragédia em três atos, em que se defende o princípio da liberdade humana e que contém várias passagens esclarecedoras da filosofia existencialista.


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