Difference between revisions of "Ribeiro, Aquilino - Livros Proibidos"

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*'''Aquilino Ribeiro'''(1885-1963)<br />
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Aquilino Ribeiro é um dos mais prolíficos autores portugueses. Escreveu romances, contos, novelas, estudos etnográficos e históricos, biografias e literatura infantil. Colaborou na II série da revista Alma nova (1915-1918), começada a publicar em Faro em 1914.Em 1960 foi proposto para o Prémio Nobel da Literatura por Francisco Vieira de Almeida, proposta subscrita por José Cardoso Pires, Urbano Tavares Rodrigues, Mário Soares, Alves Redol, Vergílio Ferreira, entre muitos outros.
  
Tem colaboração na II série da revista Alma nova[8] (1915-1918) começada a publicar em Faro em 1914
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*'''Livro proibido - Quando os Lobos Uivam'''<br />
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O livro retrata a saga dos beirões em defesa dos terrenos baldios durante a ditadura, nos finais dos anos 40 e início dos anos 50. Serra dos Milhafres, finais dos anos 40, o Estado Novo resolve impor aos beirões uma nova lei: Os terrenos baldios que sempre tinham sido utilizados para bem comunitário e onde essa comunidade retirava parte vital do seu sustento, seriam agora "expropriados" e esses terrenos utilizados para plantar pinheiros. Assim, sem mais nem menos, o Estado chega e diz que, a partir daquele momento, acabou. Implanta-se um clima de medo nas gentes e é esse clima que Manuel Louvadeus, que havia emigrado para o Brasil anos antes, vem encontrar quando regressa à aldeia. Homem vivido e culto devido, segundo o próprio, aos muitos livros que por lá havia lido, Manuel tem uma visão para os dois lados e um sentido de justiça que rapidamente o fazem cair nas boas graças das gentes do povo.<br />O romance "Quando os Lobos Uivam" que foi publicado em 1958, por Aquilino Ribeiro e lhe valeu um mandato de captura e a apreensão de todos os exemplares pelo regime salazarista.
  
Em 1960 é proposto para o Prémio Nobel da Literatura por Francisco Vieira de Almeida, proposta subscrita por José Cardoso Pires, Urbano Tavares Rodrigues, Mário Soares, Alves Redol, Vergílio Ferreira, entre muitos outros.
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*'''Excerto 1'''<br />
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Era lua cheia, pelos fins de Março Marçagão, na altura do ano em que os dias são iguais às noites, e pelo tinir dos garfos e pausas intermitentes assentou para consigo que estavam a cear. – Miga bem a tigela! – dizia a voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. – Miga bem, Jaime, que só tens caldo! Depois as vozes calaram-se.<br />(...) Bateu uma…duas…três vezes, e postou-se, parado, à escuta, como os mendigos depois de rezarem o padre-nosso. Mentalmente pôs-se a orçar o tempo que ia passando pelo tempo que levariam a apreender o apelo, a erguer-se da esteira, a poisar a malga, e a abrir-lhe a porta. Demoravam-se… Pareceram-lhe delongas a mais. Não teriam ouvido! Considerando afinal que as pancadas, percutidas frouxas e irresolutas, não se tivessem imposto à atenção, martelou rijo e afoito. Agora sim, uma voz juvenil, abelhuda, destas que no cortiço estão sempre prontas a acudir ao rumor, ergueu-se:<br />- Quem está lá?<br />- Gente…<br />Notou que o silêncio, um silêncio precaucioso, enchia a casa como a luz da candeia que se acende no escuro. Um segundo… dois… três, nem que passassem as alpoldras dum rio. Então Filomena não reconhecia o metal da sua voz?! Que não lhe havia de parecer de todo estranho, estava em que lhe ouviu proferir subitamente e de afogadilho:<br />- Vai ver quem é, Jorgina!<br />Sentiu correr o fecho, e Manuel Louvadeus empurrou a porta. E, sem aguardar que se abrisse de todo, mal lhe ofereceu passagem, de ilharga, quase acotovelando a moça, entrou com uma golfada de vento.
  
O romance "Quando os Lobos Uivam" que foi publicado em 1958, por Aquilino Ribeiro e lhe valeu um mandato de captura e a apreensão de todos os exemplares pelo regime salazarista,
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*'''Excerto 2'''<br />
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Estavam, como palpitara, de malga em punho à roda do lume. O cepo ardia ao fundo na pedra lar e a sua lumalha verde descompunha a claridade da candeia que voltejava ao centro na ponta do nagalho. Viu a todos suspensos. A mulher olhava para ele, atónita. Os filhos olhavam para ele sem o conhecer, pudera! O gato maltês, com o espalhafato da entrada, cobrara medo e pinchara assarapantado para um canto, donde o observava com pupilas a fuzilar de cólera e inquietação. E Manuel Louvadeus, risonho, sem os deixar respirar, lançou de chofre por cima de suas cabeças perplexas:<br />- Santas noites lhes dê Deus!<br />Só então Filomena pulou na esteira. Muito pesada tinha a rabadilha! Pois a ela, que era perra fina, não devia saltar ao entendimento que um homem com aquele rompante, aquele traje, em cabelo, não era senão o seu homem que voltava?! Seria que a penumbra da casa o desfigurasse! Qual! De relance, um relance de nada, notou que ela estava ainda a afirmar-se, dir-se-ia incrédula ou meio timorata, olhos postos nele mais fixos que os tições no braseiro. E foi como se lhe dessem com uma moca. Caramba, assim estaria mudado!?
  
*'''Quando os Lobos Uivam, Aquilino Ribeiro'''<br />
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*'''Excerto 3'''<br />
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Não, não tinha desculpa que, embora andasse há uns dez anos pelo mundo, sem que há uns seis desse novas nem mandatos – morreu, está preso, mataram-no – por muito, mesmo muito que os trabalhos e o trópico picassem a fisionomia de um homem, o coração lhes não advertisse logo quem ali estava. E, cheio de ressentimento, metade mágoa, metade raiva, ia a cometer o despropósito de despir o paletó e pôr à mostra o lanho que uma gadanha antiga lhe deixara no braço: sou o Manuel Louvadeus ou quem sou? – quando ela se atirou a ele:<br />- Ah, marido da minha alma!<br />E, ao passo que se lhe enroscava ao pescoço, desengonçada e temível como a onça, gemia num ricto de angústia e vexame:<br />- Que tonta eu sou que te não reconheci logo à primeira! O Coração bem me dizia que eras tu! Mas quem o havia de crer, mudado como tu vens?! Quem o havia de crer depois de tantos anos sem dares sinal de vida!?<br />(…) Então seu pai era aquele homem de ar exótico, lúrido do clima, tocado na figadeira, com um traje diferente ao da terra, sarja azul tão lustrosa que lhe devolvia a tinta dos olhos, relógio de prata em pulseira de oiro, sapatos amarelos, esta espécie de sapatos meio pantufos, que parecem botas de elástico aparadas por baixo do tornozelo, e ele comprara em Asunción?!
  
O livro que retrata a saga dos beirões em defesa dos terrenos baldios durante a ditadura, nos finais dos anos 40 e início dos anos 50, é o exemplo de uma obra literária que foi censurada pelo Estado Novo
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*'''Excerto 4'''<br />                                                                     
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- Já disse, e voltarei a dizê-lo na Câmara segunda-feira que vem, que já fomos chamados: a serra é nossa e muito nossa. Queremo-la assim, estamos no nosso direito. Desta forma é que nos faz arranjo. Os de Lisboa querem-na coberta de pinhal…? Semeiem pinhal nos parques e jardins onde têm empedrado e relva só para vista. – Assim é-vos melhor, dá mais lucro – dizem eles. – Pois dará. São opiniões. – Admitindo que fosse certo, e ainda não o disse nenhum Salomão, nós é que a havemos de semear. Tudo o que seja para fora desta regra é roubo. A serra era de nossos pais e avós, dos nossos rebanhos, dos bolos que no-los comiam, do vento galego que afiava lá pelos descampados as suas navalhas de barba. Pois então?
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Era lua cheia, pelos fins de Março Marçagão, na altura do ano em que os dias são iguais às noites, e pelo tinir dos garfos e pausas intermitentes assentou para consigo que estavam a cear. – Miga bem a tigela! – dizia a voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. – Miga bem, Jaime, que só tens caldo! Depois as vozes calaram-se. Ressoam assim os córregos quando descem das serras e tropeçam nos seixos solevantados. Mas ele que tinha que especular?! Decidiu-se. Bateu uma…duas…três vezes, e postou-se, parado, à escuta, como os mendigos depois de rezarem o padre-nosso. Mentalmente pôs-se a orçar o tempo que ia passando pelo tempo que levariam a apreender o apelo, a erguer-se da esteira, a poisar a malga, e a abrir-lhe a porta. Demoravam-se… Pareceram-lhe delongas a mais. Não teriam ouvido! Considerando afinal que as pancadas, percutidas frouxas e irresolutas, não se tivessem imposto à atenção, martelou rijo e afoito. Agora sim, uma voz juvenil, abelhuda, destas que no cortiço estão sempre prontas a acudir ao rumor, ergueu-se:<br />
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*'''Excerto 5''' <br />
- Quem está lá?<br />
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  Manhã alta, quando romperam para o planalto as duas turmas dos Serviços Florestais com tractores, caterpillars, arados de ferro puxados a bois do vale do Távora, e uma centena de operários engajados, longe, nas aldeias famintas dos ratinhos, já encontraram muito povo pelas rechãs. (…) Os aldeões, que foram saindo das luras, perante o homem de meia-idade, alto, de lábios e mãos delicadas, cabelo loiro aparado à escovinha, orelhas tombantes, olhos pequenos por cima duma massa gelatinosa cor de açafrão, uma grande carraça branca no ouvido, cobraram o seu respeito. Reparando bem para ele, ficaram com a ideia dum rosto cortado à goiva, ângulos vivos, linhas bruscas, como as imagens dos santeiros na primeira mão.
- Gente…<br />
 
Notou que o silêncio, um silêncio precaucioso, enchia a casa como a luz da candeia que se acende no escuro. Um segundo… dois… três, nem que passassem as alpoldras dum rio. Então Filomena não reconhecia o metal da sua voz?! Que não lhe havia de parecer de todo estranho, estava em que lhe ouviu proferir subitamente e de afogadilho:<br />
 
- Vai ver quem é, Jorgina!<br />
 
Sentiu correr o fecho, e Manuel Louvadeus empurrou a porta. E, sem aguardar que se abrisse de todo, mal lhe ofereceu passagem, de ilharga, quase acotovelando a moça, entrou com uma golfada de vento. Estavam, como palpitara, de malga em punho à roda do lume. O cepo ardia ao fundo na pedra lar e a sua lumalha verde descompunha a claridade da candeia que voltejava ao centro na ponta do nagalho. Viu a todos suspensos. A mulher olhava para ele, atónita. Os filhos olhavam para ele sem o conhecer, pudera! O gato maltês, com o espalhafato da entrada, cobrara medo e pinchara assarapantado para um canto, donde o observava com pupilas a fuzilar de cólera e inquietação. E Manuel Louvadeus, risonho, sem os deixar respirar, lançou de chofre por cima de suas cabeças perplexas:<br />
 
- Santas noites lhes dê Deus!<br />
 
Só então Filomena pulou na esteira. Muito pesada tinha a rabadilha! Pois a ela, que era perra fina, não devia saltar ao entendimento que um homem com aquele rompante, aquele traje, em cabelo, não era senão o seu homem que voltava?! Seria que a penumbra da casa o desfigurasse! Qual! De relance, um relance de nada, notou que ela estava ainda a afirmar-se, dir-se-ia incrédula ou meio timorata, olhos postos nele mais fixos que os tições no braseiro. E foi como se lhe dessem com uma moca. Caramba, assim estaria mudado!? Não, não tinha desculpa que, embora andasse há uns dez anos pelo mundo, sem que há uns seis desse novas nem mandatos – morreu, está preso, mataram-no – por muito, mesmo muito que os trabalhos e o trópico picassem a fisionomia de um homem, o coração lhes não advertisse logo quem ali estava. E, cheio de ressentimento, metade mágoa, metade raiva, ia a cometer o despropósito de despir o paletó e pôr à mostra o lanho que uma gadanha antiga lhe deixara no braço: sou o Manuel Louvadeus ou quem sou? – quando ela se atirou a ele:<br />
 
- Ah, marido da minha alma!<br />
 
E, ao passo que se lhe enroscava ao pescoço, desengonçada e temível como a onça, gemia num ricto de angústia e vexame:<br />
 
- Que tonta eu sou que te não reconheci logo à primeira! O Coração bem me dizia que eras tu! Mas quem o havia de crer, mudado como tu vens?! Quem o havia de crer depois de tantos anos sem dares sinal de vida!?<br />
 
(…) Então seu pai era aquele homem de ar exótico, lúrido do clima, tocado na figadeira, com um traje diferente ao da terra, sarja azul tão lustrosa que lhe devolvia a tinta dos olhos, relógio de prata em pulseira de oiro, sapatos amarelos, esta espécie de sapatos meio pantufos, que parecem botas de elástico aparadas por baixo do tornozelo, e ele comprara em Asunción?!<br />
 
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*                                                                      
 
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(…) No seu tempo era ali que se selavam alianças para a vida e para a morte e se combinavam até cardanhos e cacetadas. E agora? Agora seria a mesma coisa, que a bola do mundo dava muita volta até uma costumeira se voltar da cabeça para os pés. Sim, senhores! À medida que rodava a caneca com vinho de Távora, um vinho que arranhava o céu da boca blandiciosamente – aquilo o vendeiro acabara de lhe meter a torneira e não tivera ainda tempo de o baptizar – as línguas desentaramelavam. Veio a talho de foice a semeadura da serra dos Milhafres. Justo Rodrigues, um dos quarenta-maiores, agiota, marchante de gado e com vacas ao ganho em dúzias e dúzias de presépios, que era o presidente da Junta, declarou, e a sua palavra fazia doutrina:<br />
 
- Já disse, e voltarei a dizê-lo na Câmara segunda-feira que vem, que já fomos chamados: a serra é nossa e muito nossa. Queremo-la assim, estamos no nosso direito. Desta forma é que nos faz arranjo. Os de Lisboa querem-na coberta de pinhal…? Semeiem pinhal nos parques e jardins onde têm empedrado e relva só para vista. – Assim é-vos melhor, dá mais lucro – dizem eles. – Pois dará. São opiniões. – Admitindo que fosse certo, e ainda não o disse nenhum Salomão, nós é que a havemos de semear. Tudo o que seja para fora desta regra é roubo. A serra era de nossos pais e avós, dos nossos rebanhos, dos bolos que no-los comiam, do vento galego que afiava lá pelos descampados as suas navalhas de barba. Pois então?<br />
 
Chegou ali um homem de Corgo das Lontras: compra samarras. O Nacomba voltou-se para ele:<br />
 
- E a gente lá da terrinha que diz, tio João do Almagre?<br />
 
- Conho, que há-de dizer? A serra foi dos serranos desde que o mundo é mundo, herdada de pais para filhos. Quem vier para no-la tirar, connosco se há-de haver!<br />
 
Um rapaz novo, de grevas, a mão no guiador duma velha bicicleta, atravessou-se à boca da taverna:<br />
 
- No Labrujal, está toda a gente a postos. Tirarem-nos a serra é o mesmo que arrancarem-nos coiro e cabelo. Mas falam os trabucos, oh se falam! Estão prontinhos, carregados com sal e cacos de pote!<br />
 
- Lá os meus rabosanos da Azenha da Moura andam a arder – disse Manuel do Rosário, ferreiro e velho amigalhaço do Louvadeus, ao tempo que riscava no rol a conta dum freguês que acabava de lhe pagar.<br />
 
- Se nos privam da serra, como nos havemos de governar?! Temos então que nos meter a ladrões dos caminhos?!<br />
 
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Manhã alta, quando romperam para o planalto as duas turmas dos Serviços Florestais com tractores, caterpillars, arados de ferro puxados a bois do vale do Távora, e uma centena de operários engajados, longe, nas aldeias famintas dos ratinhos, já encontraram muito povo pelas rechãs. (…) Os aldeões, que foram saindo das luras, perante o homem de meia-idade, alto, de lábios e mãos delicadas, cabelo loiro aparado à escovinha, orelhas tombantes, olhos pequenos por cima duma massa gelatinosa cor de açafrão, uma grande carraça branca no ouvido, cobraram o seu respeito. Reparando bem para ele, ficaram com a ideia dum rosto cortado à goiva, ângulos vivos, linhas bruscas, como as imagens dos santeiros na primeira mão.<br />
 
(…)<br />
 
- Excomungados, vêm-nos roubar a serra!<br />
 
- Oh, malditos eles sejam!<br />
 
- Onde vão pastar as nossas pobres ovelhinhas?<br />
 
- Toque-se a rebate! Toque-se a rebate, e vamo-nos a eles!<br />
 
E, de facto, os sinos de Almofaça desataram a tocar. Estes passaram senha aos outros, e dali a pouco dez, vinte campanários repicavam freneticamente. Pelas aldeias, velhos, mulheres e crianças, depois de atafulharem no caldo mais umas sopetarras, e meterem na algibeira o seu tropeço de broa com meio queijo ou um salpicão, puseram-se em marcha para a serra, a ajuntar-se às hostes. Estava um dia mortiço de Inverno, e na luz baça, esvantes, os longes perdiam todo o relevo. Aos engenheiros em seus jeeps devia ter sido assinalado o avanço das várias colunas de povo que marchavam a corta-mato, subindo os cerros, afundindo-se nos vales para reaparecer mais perto, nítidas e truculentas, com seu matiz de horda, estopa, burel, chitas versicolores nas mulheres, mobilidades fugazes de rapazes e rapariguinhas, e uma ou outra voz mais alta, às vezes um rumor de palavras marteladas, trazidas na refega do vento. Eram seis, dez colunas, afora os grupos por detrás dos outeiros, que se viam crescer. A certa altura, a falange que parecia mais compacta deteve-se, um galope de cavalo à distância dos caterpillars. Logo vultos se entrecruzaram dumas para as outras, por certo no papel de parlamentários.<br />
 
Streit, que era homem de expediente, deu ordem para que se iniciassem os trabalhos. As escavadoras por um lado, as juntas de bois por outro, romperam. No intuito de averiguar com que fígados vinha aquela gente mandou os dois Lêndeas falar com eles.<br />
 
Bruno chegou e disse:<br />
 
- Vós que quereis? Medir-vos com a tropa? Estais muito enganadinhos. Não vedes a cavalaria com as clavinas a tiracolo? Reparai bem para o que ides fazer. Depois não vos queixeis!
 
- Traidor! Fora o traidor! Fora o Lêndeas que se vendeu!<br />
 
Bruno Barnabé, ante aquela assuada, temeu-se:<br />
 
- Não me queiram mal, rapazes! Cada um governa a vida como pode. Eu estou convosco, mas é preciso tino. O chefe é o Rebordão, não é? Onde está ele?<br />
 
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Nasceram menos anhos e cabritos na serra de Milhafres e alargaram-se mais nos cotovelos e rótulas os rasgões da miséria ancestral, mas o Estado todo-poderoso, absoluto, levou a sua avante. A todo o lés do Perímetro Florestal o penisco germinou, cresceu e em poucos anos lombas e valeiros revestiam uma linda e uniforme capa de asperges, de veludo esmeralda. Caminhos, com pontões aqui e além, onde poderia transitar o automóvel, cruzavam-se de monte para monte. Nos recostos, aos quatro ventos, erguiam-se as casas dos guardas, com seu telhado vermelho e linha simples, escarolada e exótica na terra troglodítica, e os postos de vigilância, ligados telefonicamente. Um engenheiro silvicultor reinava em toda a extensão como em domínio feudal. Convidava os nobres amigos para montarias no couto como os reis para as tapadas, onde inçava o veado e o cervo. Na serra de Milhafres faltavam estas espécies venatórias, mas, com o tempo e extensão dos poderes, lá se chegaria. E os povos? Os povos tiritavam encardidos de pobreza e barbárie, incrustados nas suas orlas. Mas que importavam as vicissitudes dos velhos aglomerados e que fossem dignos de lástima os netos dos iberos e turdetanos?<br />
 
A Rochambana foi expropriada pelos Serviços, que a floresta alastrara, desenvolvendo-se a todo o quadrante. Com os Louvadeus foi quase providencial, pois que para pagar a multa judiciária não chegariam todos os seus bens em Arcabuzais. Mesmo assim, foi preciso acrescentar à importância aviltada o mais possível pelos síndicos do Estado, que ainda e sempre se mostraram as células vorazes duma canceração, indiferentes à saúde e bem-estar do corpo social, embora nutrindo-se-lhe da seiva e ferradas nele com ventosas do polvo. Ainda o valimento do Dr. Rigoberto contribuiu a que o preço não fosse equiparado ao da uva mijona. Mas não bastou.<br />
 
Teotónio e os seus regressaram à velha moradia da aldeia, a sachar duas vezes o centeio das terras vãs, a cavar a horta pequenina, e a cuidar de manha à noite do milho que se colhe em Setembro e há que embebedar em muitos pontos, que andasse a refazer-se num retirado barrocal duma chumbada que lhe deram. Mas a sua alma refervia em ódio, a ânsia da vingança, que foi sempre o primeiro estímulo dos bárbaros, dava-lhe fôlego e ralé, dir-se-ia, cada vez mais mordente e atrevida.<br />
 
Antes de completar os três anos e meio de Penitenciária, o meio ano representando o agravo de pena com que o Supremo Tribunal, olho atento da Ordem, entendeu gratificar os delinquentes, Manuel Louvadeus beneficiou de uma amnistia, muito simbólica, significativa de exemplar bom comportamento, mandaram-no em paz a pretexto do exercício duma virtude que deixara de ser inibitória para a sua condenação. Apresentou-se inesperadamente em Arcabuzais, mais velho, mais macilento, mais lido e sabedor das coisas do mundo, e mais idealista. E foi uma epifania. Tinha-se por causa dele arruinado a casa, mas não tivera raça de culpa, nem ninguém lhe lançava em rosto. Ele, coitado, propunha-se recuperar tudo a breve prazo. Ia exumar as riquezas que jaziam enterradas à sua espera no chão misterioso de Mato Grosso. Era tão certo lá estarem como estarem sentados à volta do cepo, malga do caldo na mão, por cima deles a candeia a bailar, tal como no dia em que chegara como seu fatinho de embarcadiço e exclamara, surpreso que o não houvessem reconhecido: Não sabes quem eu sou, mulher? <br />                                                       
 
                                           
 
'''Quando os Lobos Uivam, Aquilino Ribeiro'''
 
  
 
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Latest revision as of 14:19, 15 April 2024

Aquilinofoto.jpg Quando os lobos uivam-1.1800x0.png Aquilinorelatoriocensura.jpeg

  • Aquilino Ribeiro(1885-1963)

Aquilino Ribeiro é um dos mais prolíficos autores portugueses. Escreveu romances, contos, novelas, estudos etnográficos e históricos, biografias e literatura infantil. Colaborou na II série da revista Alma nova (1915-1918), começada a publicar em Faro em 1914.Em 1960 foi proposto para o Prémio Nobel da Literatura por Francisco Vieira de Almeida, proposta subscrita por José Cardoso Pires, Urbano Tavares Rodrigues, Mário Soares, Alves Redol, Vergílio Ferreira, entre muitos outros.

  • Livro proibido - Quando os Lobos Uivam

O livro retrata a saga dos beirões em defesa dos terrenos baldios durante a ditadura, nos finais dos anos 40 e início dos anos 50. Serra dos Milhafres, finais dos anos 40, o Estado Novo resolve impor aos beirões uma nova lei: Os terrenos baldios que sempre tinham sido utilizados para bem comunitário e onde essa comunidade retirava parte vital do seu sustento, seriam agora "expropriados" e esses terrenos utilizados para plantar pinheiros. Assim, sem mais nem menos, o Estado chega e diz que, a partir daquele momento, acabou. Implanta-se um clima de medo nas gentes e é esse clima que Manuel Louvadeus, que havia emigrado para o Brasil anos antes, vem encontrar quando regressa à aldeia. Homem vivido e culto devido, segundo o próprio, aos muitos livros que por lá havia lido, Manuel tem uma visão para os dois lados e um sentido de justiça que rapidamente o fazem cair nas boas graças das gentes do povo.
O romance "Quando os Lobos Uivam" que foi publicado em 1958, por Aquilino Ribeiro e lhe valeu um mandato de captura e a apreensão de todos os exemplares pelo regime salazarista.

  • Excerto 1
Era lua cheia, pelos fins de Março Marçagão, na altura do ano em que os dias são iguais às noites, e pelo tinir dos garfos e pausas intermitentes assentou para consigo que estavam a cear. – Miga bem a tigela! – dizia a voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. – Miga bem, Jaime, que só tens caldo! Depois as vozes calaram-se.
(...) Bateu uma…duas…três vezes, e postou-se, parado, à escuta, como os mendigos depois de rezarem o padre-nosso. Mentalmente pôs-se a orçar o tempo que ia passando pelo tempo que levariam a apreender o apelo, a erguer-se da esteira, a poisar a malga, e a abrir-lhe a porta. Demoravam-se… Pareceram-lhe delongas a mais. Não teriam ouvido! Considerando afinal que as pancadas, percutidas frouxas e irresolutas, não se tivessem imposto à atenção, martelou rijo e afoito. Agora sim, uma voz juvenil, abelhuda, destas que no cortiço estão sempre prontas a acudir ao rumor, ergueu-se:
- Quem está lá?
- Gente…
Notou que o silêncio, um silêncio precaucioso, enchia a casa como a luz da candeia que se acende no escuro. Um segundo… dois… três, nem que passassem as alpoldras dum rio. Então Filomena não reconhecia o metal da sua voz?! Que não lhe havia de parecer de todo estranho, estava em que lhe ouviu proferir subitamente e de afogadilho:
- Vai ver quem é, Jorgina!
Sentiu correr o fecho, e Manuel Louvadeus empurrou a porta. E, sem aguardar que se abrisse de todo, mal lhe ofereceu passagem, de ilharga, quase acotovelando a moça, entrou com uma golfada de vento.
  • Excerto 2
Estavam, como palpitara, de malga em punho à roda do lume. O cepo ardia ao fundo na pedra lar e a sua lumalha verde descompunha a claridade da candeia que voltejava ao centro na ponta do nagalho. Viu a todos suspensos. A mulher olhava para ele, atónita. Os filhos olhavam para ele sem o conhecer, pudera! O gato maltês, com o espalhafato da entrada, cobrara medo e pinchara assarapantado para um canto, donde o observava com pupilas a fuzilar de cólera e inquietação. E Manuel Louvadeus, risonho, sem os deixar respirar, lançou de chofre por cima de suas cabeças perplexas:
- Santas noites lhes dê Deus!
Só então Filomena pulou na esteira. Muito pesada tinha a rabadilha! Pois a ela, que era perra fina, não devia saltar ao entendimento que um homem com aquele rompante, aquele traje, em cabelo, não era senão o seu homem que voltava?! Seria que a penumbra da casa o desfigurasse! Qual! De relance, um relance de nada, notou que ela estava ainda a afirmar-se, dir-se-ia incrédula ou meio timorata, olhos postos nele mais fixos que os tições no braseiro. E foi como se lhe dessem com uma moca. Caramba, assim estaria mudado!?
  • Excerto 3
Não, não tinha desculpa que, embora andasse há uns dez anos pelo mundo, sem que há uns seis desse novas nem mandatos – morreu, está preso, mataram-no – por muito, mesmo muito que os trabalhos e o trópico picassem a fisionomia de um homem, o coração lhes não advertisse logo quem ali estava. E, cheio de ressentimento, metade mágoa, metade raiva, ia a cometer o despropósito de despir o paletó e pôr à mostra o lanho que uma gadanha antiga lhe deixara no braço: sou o Manuel Louvadeus ou quem sou? – quando ela se atirou a ele:
- Ah, marido da minha alma!
E, ao passo que se lhe enroscava ao pescoço, desengonçada e temível como a onça, gemia num ricto de angústia e vexame:
- Que tonta eu sou que te não reconheci logo à primeira! O Coração bem me dizia que eras tu! Mas quem o havia de crer, mudado como tu vens?! Quem o havia de crer depois de tantos anos sem dares sinal de vida!?
(…) Então seu pai era aquele homem de ar exótico, lúrido do clima, tocado na figadeira, com um traje diferente ao da terra, sarja azul tão lustrosa que lhe devolvia a tinta dos olhos, relógio de prata em pulseira de oiro, sapatos amarelos, esta espécie de sapatos meio pantufos, que parecem botas de elástico aparadas por baixo do tornozelo, e ele comprara em Asunción?!
  • Excerto 4
- Já disse, e voltarei a dizê-lo na Câmara segunda-feira que vem, que já fomos chamados: a serra é nossa e muito nossa. Queremo-la assim, estamos no nosso direito. Desta forma é que nos faz arranjo. Os de Lisboa querem-na coberta de pinhal…? Semeiem pinhal nos parques e jardins onde têm empedrado e relva só para vista. – Assim é-vos melhor, dá mais lucro – dizem eles. – Pois dará. São opiniões. – Admitindo que fosse certo, e ainda não o disse nenhum Salomão, nós é que a havemos de semear. Tudo o que seja para fora desta regra é roubo. A serra era de nossos pais e avós, dos nossos rebanhos, dos bolos que no-los comiam, do vento galego que afiava lá pelos descampados as suas navalhas de barba. Pois então?
                                                             
  • Excerto 5
Manhã alta, quando romperam para o planalto as duas turmas dos Serviços Florestais com tractores, caterpillars, arados de ferro puxados a bois do vale do Távora, e uma centena de operários engajados, longe, nas aldeias famintas dos ratinhos, já encontraram muito povo pelas rechãs. (…) Os aldeões, que foram saindo das luras, perante o homem de meia-idade, alto, de lábios e mãos delicadas, cabelo loiro aparado à escovinha, orelhas tombantes, olhos pequenos por cima duma massa gelatinosa cor de açafrão, uma grande carraça branca no ouvido, cobraram o seu respeito. Reparando bem para ele, ficaram com a ideia dum rosto cortado à goiva, ângulos vivos, linhas bruscas, como as imagens dos santeiros na primeira mão.


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