Redol, Alves - Livros Proibidos

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Alves Redol


Gaibéus, Alves Redol

Caminhavam aos grupos, aturdidos. De fatos assolapados por remendos, de presilhas e chapéus puxados para os olhos, ficaram-lhes mais som brilho o olhar dos rostos tisnados pelas soalheiras da vindima.
Enrolavam-se alguns em gabões desbotados, trazendo ao ombro irmãos sacos e foices, paus e caldeiras.
E as mulheres, embrulhadas em xailes desfiados ou saias de casteleta pelos ombros, marchavam silenciosas, de pés descalços.
Sentiam saudades da terra que eles negavam o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe…
E se lá havia pão para todos! Mal tínhamos acabado de terminar dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d’água. Era um êxodo de desgrana e susto. Que iriam, encontrar ali?!...
Algumas encomendas desde há muito; outros vencidos, finalmente, pela escassez dos últimos dois anos.- Nunca se viu coisa assim!... A terra parece praguejada.
E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.
Courelas pequenas, onde se desunhavam a trabalhar, passando a mãos estranhas que nunca as tinham apalpado à enxada, logo depois feitas courelas grandes com outras e outras que se lhes juntavam.

(…)

  • Esfalfadas, a arfar, as velhas arrastavam os pés, a quererem acompanhar as outras, e levantavam poeira do carrril, com o rebanho de volta à malhada. Vinham com elas as que traziam os filhos ao colo, chupando-lhes os peitos sem viço, e a cachopada mais tenra, mal habituada ain¬da àqueles trabalhos de galé. Alguns iam conhecer patrão pela primeira vez. Já os tocava, porém, a mesma certeza dos que andavam a vida inteira a labutar sem norte.

De roupas desajeitadas, feitas para os outros, de panamás negros a encoifar-lhes os rostos, onde os olhos assemelhavam vaga-lumes na noite funda que os cobria, embora o Sol andasse nas alturas a chapinhar luz.
Uma velha deixou-se cair no valado, a tossir e a rezar. Os membros aquebrantados pareciam ter-lhe abandonado o corpo e ali ficara sem forças para ir no rastro do rancho.
—... o Senhor é convosco...
Agatanhando as ervas, subiu ao alto do valado e sentou-se, como se ali procurasse refúgio.
Tossiu mais — e rezou ainda.
—... bendito o fruto do vosso ventre...
Espraiou os olhos pela campina fora, mas sentiu-se só. Só como nunca, derribada na alma.
Aqueles troncos, doridos nos estertores do cerne, apareciam-lhe como o espelho da sua própria angústia.
E a velha chorou num pranto manso.
A cambalear, carril fora, vinham dois homens cantando:

... Só por morte eu o vinho deixava

Pararam a olhar a velha e riram, quando notaram que lhe caíam lágrimas nas faces golpeadas pelos anos.
— Parece que vem prá morte, Mãe Santíssima!
— Bem morte…



Foram saltando aos camalhões, de braços a bambolear pela fadiga, pernas em cadência frouxa e troncos engibados pendidos à terra.
As cachopas beliscam-se e riem — mas o seu riso soa a falso.
Levam nos quadris casacos velhos assolapados de remendos que lhes defenderam os rins da brasa do sol. Os rapazes passam agora pelas rãs que chapinham nos char¬cos e não atiram torrões para as espantar.
As rãs coaxam a sua liberdade.
As flores crescidas nas travessas dobram-se e desfolham-se à passagem do rancho e só a erva unha-gata o defronta, picando as pernas às raparigas. Os ceifeiros que chegam ao carril tiram as caldeiras dos ganchos do cambaricho e sentam -se no chão ou na linha erguida à borda do arrozal. Já as mulheres que deixaram os filhitos ao abandono por ali os apertam entre os braços e os amimam, beijando-lhes as faces sujas de Terra, amassada com lágrimas. E eles buscam-lhes, com as bocas rebentadas de feridas, onde as moscas pousam e o ranho criou crosta, os peitos escorridos, beliscando-lhes nas blusas a sua fome. — Ah, raça de cachopo! Dá-lhe de mama, mulher.
— Vai blusa e tudo, se não lhe acodes. Isso é que é um comilão!
A mãe afaga-lhe os cabelitos ralos, tendo nos dedos duros carícias brandas que o fazem pairar e sacudir o corpo em sacões de alegria.
— Ah, rico filho, tu tens fominha, não tens?...
— Come tu, cachopa, que bem no precisas. Se não tens tento na cabeça...
E a mãe tosse, pondo a mão na boca; vêm-lhe às faces afiladas duas rosetas brandas, que se desfazem depois na cera do rosto. Ergue o filho nos braços, como a vê-lo bem , brincando-lhe nos olhos duas gotas que lhes dão mais brilho.
— Ah, meu Zezinho...
E puxa-o de novo a si, beijando-lhe o ventre inchado.
Todo o rancho está no carril para o almoço
Formam grupos dispersos, caldeiras ao lado das foices, e vão mergulhando as colheres no caldo negro dos feijões, onde ralas olhas de azeite põem pontos doirados.



Naquela noite, na praia de areia fina, onde os avieiros pelo Inverno vêm puxar as redes, só se ouvia o marulhar brando do Tejo a acariciá-los. Estava noite de luar. Um luar brando de Outono que vestia as coisas de penumbra triste. Piscavam luzes na ou¬tra margem, dispersas aqui e além, mais ali reunidas, como num concilio de estrelas. Eram constelações de vidas, to¬das iguais vistas de longe.
A luz que iluminava o senhor não brilhava mais do que a outra que alumiava o servo. Ali não havia casebres, nem palácios. Todas eram irmãs, como as estrelas da Estrada de Santiago que polvilhavam de oiro o azul-negro.
Dali os seus anseios partiam para longas viagens, embalados pela dolência das marés, com velas enfunadas pelo sopro da imaginação de cada qual. Até ele vinha o passado, qual história estranha dita pelo Tejo, numa voz meiga e doce. E o passado era triste — mais triste que o badalar de um chocalho vindo de longe.
Ambições naufragadas, restos de alegrias e desditas, de que tinha vaga recordação. O presente era amargo, tão doloroso como o passado. Mas ali, naquele silêncio, guardava sonhos de criança, como se nunca tivesse entrado na vida e ainda a julgasse unia floresta de frutos de oiro.
Era ali, sentado na praia, de corpo alquebrado pelas soalheiras e pelo trabalho, que vinha fazer a sua viagem de promissão. Na dolência vaga da noite acompanhava-o, às vezes, o trapejar de velas no virar dos bordos.
E ficava-se a olhar as fragatas, embarcando nelas os seus anseios sempre jovens.
A carreira daqueles barcos era curta e não chegava ao mar. Descarregavam em qualquer porto das margens e voltavam de novo, rio acima, em viagem decorada. E todos os dias e todas as noites, enquanto houvesse fretes: até o tempo lhes consumir as carcaças e serem vendi¬dos para encalhar nos valados.
Barcos irmãos da sua vida de alugado.
Também já andara por esse mundo, embarcado como mercadoria. Encontrara homens de outras raças, raças que afinal eram irmãs da sua. Nunca julgara isso. Sabia agora que o Agostinho Serra pertencia a outra raça e que a sua era a mesma dos negros descarregadores dos molhes dos portos por onde andara. Irmão dos negros que colhiam café e pilavam milho, por essas terras distantes de oiro, e febres.
Fora e voltara — sempre passageiro de terceira.
Estava agora ali, trabalharia amanhã no fundo de uma mina a viver em trevas — a sua vida assemelhava-se a uma mina em trevas. Mas caminhava nela e tinha anseios, porque sabia haver lá em cima outra vida com luz e ar. Vivia na sub-humanidade — morava na cave de um prédio de muitos andares, onde, nos altos, havia lugar para ele e para os companheiros. O canavial, ali perto, falou à noite. E a noite não lhe respondeu. Só as águas do Tejo contavam histórias estranhas de dramas seus.
Vinha ai a maré alta. Ele desconhecia ainda que a vida dos homens é um rio com marés, um rio com fluxos e refluxos que um dia o havia de trazer para a luz.

Gaibéus, Alves Redol