Redol, Alves - Livros Proibidos

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Gaibéus, Alves Redol

Propus-me  com Gaibéus criar um  romance  antiassunto,  ou,  melhor, anti-história,  sem personagens principais  que  só pedissem  compassaria  às outras.  O  tema  nasce  no  colectivo  de  um  rancho  de  ceifeiros  migradores, acompanha-lhes  os passos  desde  a  chegada à  partida   da  lezíria   ribatejana, no  drama  simples  e  directo  da  sua  condição,  destaca  um  ou  outro  para apontar certos fios  m ais individualizados,  mas logo  os f az regressar à  trama do grupo.

O trabalho produtivo, a explorado descamada do homem pelo homem, tomados nos seus aspectos mais crus, na lâmina viva do dia-a-dia, dominam o livro.


Ia já  para  três  dias  que  o  tractor  parara  e  a  regadeira não via  pinga  de  água  trasfegada  do  Tejo.

O arrozeiro, apertado pelo patrão, andava numa dobadoura, por marachas e linhas, a deitar olho aos canteiros de espiga mais loira, fazendo piques, agora aqui, agora ali, para que as águas fossem caminhando para a vala de esgoto e os ranchos pudessem meter foices no arrozal.
De pá ao alto, descansada no ombro, o «seu Arriques» já pensava na volta a casa, pois da sangria à recolha do bago poucas semanas iam. — Que rica seara! Andei-me nela que nem sombra atrás d ’alma penada, mas o patrão arrinca para cima de quarenta sementes. Se os outros a pudessem comer coa inveja... E lançava a vista sobre o manto de panículas aloiradas, que os camalhões percintavam e a aragem branda enrugava, com o mareta em oceano de oiro. Mais além e aqui, uma mancha ou outra de verde a denunciar o cromo que o sol lhe arrancava, indício de algum cabeço que as enxadas, no armar da terra, não haviam derrubado.— S’o patrão não andasse de fogo no rabo por mor do rancho, seis dias de molho davam-lhe uns saquitos bem bons. Andava por oito meses que corria aqueles com irmãos de alto a baixo. Primeiro, de bandeirolas a tirar miras para o erguer das travessas e a mandar homens na rebaixa, até os tabuleiros poderem receber urna lâmina de água para a sementeira; depois, a dirigir aquele caudal que todos os dias entrava Lezíria dentro, pela regadeira mestra, não fosse afogar-se os pés de arroz ou morrer alguns por míngua. Quantas noites não pregara olho a tragar planos para os canteiros da ponta de baixo que pareciam avessos a receber frescura? Então, erguia-se da esteira para percorrer o arrozal, levando as estrelas por camaradas mais a endecha da água e o zangarreio das rãs.
De quando em quando, o desânimo vencia-o — o desânimo e as sezões.
Se a terra fosse sua, quantas vezes se deixaria ficar na poisada a refazer o corpo. Mas se não andasse, quem havia de cuidar daquilo?...Nunca patrão algum lhe atirara remoque por desmazelo no trabalho. Ele transmitiu à família dos Milhanos de Marinhais, sempre famosos no Ribatejo com os arrozeiros sabidos e safos de mândria.
E lá ia, que remédio!, de balde ao ombro, a espreitar alguma maracha que precisasse de engravatada, por oscilação das terras, ou canteiro mais soberbo por desequilíbrio da gleba. Bem regara aquela maldita com o seu suor; longas horas de descanso tinha perdido à sua volta. Mas também a alegria de ver todo o arrozal farto de espigas o dava por bem pago no fim do contrato.
Cada panícula era um monco de perú cheiínho de bago graúdo e loiro.
A milhã, rapineira de energia dos arrozais, pouco lá entrara; a brança só invadiu um ou outro pé; e o limo e a sarna tinham ficado cá por baixo, a enfeitar a água, e a verem crescer a sua seara; sua, pois então: ninguém lhe dera tanta canseira e apaparicos.


Esfalfadas, a arfar, as velhas arrastavam os pés, a quererem acompanhar as outras, e levantavam poeira do car¬ril, com o rebanho de volta à malhada. Vinham com elas as que traziam os filhos ao colo, chupando-lhes os peitos sem viço, e a cachopada mais tenra, mal habituada ain¬da àqueles trabalhos de galé. Alguns iam conhecer patrão pela primeira vez. Já os tocava, porém, a mesma certeza dos que andavam a vida inteira a labutar sem norte.
De roupas desajeitadas, feitas para os outros, de panamás negros a encoifar-lhes os rostos, onde os olhos assemelhavam vaga-lumes na noite funda que os cobria, embora o Sol andasse nas alturas a chapinhar luz.
Urna velha deixou-se cair no valado, a tossir e a rezar. Os membros aquebrantados pareciam ter-lhe abandonado o corpo e ali ficara sem forças para ir no rastro do rancho. —... o Senhor é convosco...
Agatanhando as ervas, subiu ao alto do valado e sentou-se, como se ali procurasse refúgio.
Tossiu mais — e rezou ainda.
—... bendito o fruto do vosso ventre...
Espraiou os olhos pela campina fora, mas sentiu-se só. Só como nunca, derribada na alma.
Aqueles troncos, doridos nos estertores do cerne, apareciam-lhe como o espelho da sua própria angústia.
E a velha chorou num pranto manso.
A cambalear, carril fora, vinham dois homens cantando:
... Só por morte eu o vinho deixava
Pararam a olhar a velha e riram, quando notaram que lhe caíam lágrimas nas faces golpeadas pelos anos.
— Parece que vem prá morte, Mãe Santíssima!
— Bem morte…
Gaibéus, Alves Redol

Pelo tecto da poisada e pelas frinchas das portas entram cordas de claridade. Homens e mulheres, enrolados nas mantas listradas, dormem pelo chão, em ressonares profundos, sobre esteiras ou em palha, como o gado que está na mota a remoer. Estão para ali, sem divisões de sexo, vencidos pelo torpor que o trabalho lhes deixa nos corpos.

Do alto da trave mestra pende um arame que agarra um candeeiro, frouxo de luz. E a claridade, entrando pelas frinchas, acorda um capataz que se levanta, a abrir os braços, e vai apagar o candeeiro.

— Eh, gente!... Vá d ‘arribar, q u ‘o dia não tarda. — Eh, gente!... E a malta mexe-se, molengona, esfregando os olhos, a bocejar. O ambiente anda carregado com o cheiro dos corpos suados pelo trabalho e pelas sezões; deixa nas cabeças uma moinha pesada. Os homens enfiam os barretes ou os chapéus que deixaram pendurados nos cabides dos alforges; as mulheres ajeitam os lenços e os cabelos desataviados, sem ganas de voltar para a ceifa. Olham -se estranhos, sem palavras, movendo-se em gestos lentos. — Eh, cachopa!... Olha que o sol vai-te envergonhar!...Se já ‘stás assim no primeiro dia, como é que hás-de deitar fora as semanadas? Anda lá, mulher!... Os capatazes vieram cá para fora e formaram grupo, fincando os paus no chão e nos sovacos, a enrolar cigarros e a espreitar às portas. Da mota dos bois chega o badalar dos chocalhos e os gritos dos guardadores. — Eiióóó... Fasta, Doirado!... E os ceifeiros vão saindo da noite das poisadas, foices ao ombro, piscando os olhos pelo contraste da luz branda que a manhã traz, aperreando os braços ao tronco, pela nortada agreste que canta nas espigas do arrozal e no zinco dos telheiros. Vão-se sentando, alguns pelo chão, de cabeças pendidas pelo carrego dos pensamentos, a riscar linhas e círculos, com o bico da foice. Quando erguem os olhos vêem a ínsua doirada do arrozal, donde se levantam calhandras a piar, agitadas pelos tiros e pelos gritos do pardaleiro.

    Lá ao longe, na resteva do grão, urna manada de éguas tasquinha. As mais ariscas estão peadas, de mãos presas pelas cobras, e saltam sem jeito para se chegarem a algum bocado mais de apetecer.
    (…)
    À porta do aposento, a puxar à frente as pontas da jaqueta e a mirar o rancho, o patrão aparece com a empáfia de quem manobra tutela.
    Logo os capatazes deitam mãos aos relógios e dão ordem para se ir à faina.
    — Eh, gente!... São horas, vá de andar!
    — Eh, cachopos!
    E todos se erguem, de foices na mão, marchando em grupos pelo carril que leva ao arrozal. Caminham a passo ligeiro, entre larachas e risos. O primeiro dia de trabalho é sempre uma trégua na angústia dos dias parados.
    Até as velhas parecem remoçadas pela jorna que vão ganhar e só caem em amargura quando recordam que aquela pode ser a última.
    Mas lá à frente vai uma cachopa a cantar, e a cantiga esvoaça até às velhas para lhes dar novos alentos.
                                                                                                      Gaibéus, Alves Redol
    Foram saltando aos camalhões, de braços a bambolear pela fadiga, pernas em cadência frouxa e troncos  engibados  pendidos  à  terra. 
    As  cachopas beliscam-se  e  riem  —   mas o  seu  riso soa a  falso.    
    Levam  nos  quadris  casacos  velhos  assolapados  de  re¬mendos  que  lhes  defenderam   os  rins  da  brasa  do   sol.  Os rapazes  passam  agora  pelas  rãs  que  chapinham   nos  char¬cos  e  não  atiram  torrões  para  as  espantar.
    As  rãs  coaxam   a  sua  liberdade.
    As  flores  crescidas  nas  travessas  dobram-se  e  desfolham-se  à  passagem   do   rancho  e  só  a  erva  unha-gata  o defronta,  picando as  pernas às  raparigas.  Os  ceifeiros  que chegam   ao  carril  tiram   as  caldeiras  dos  ganchos  do   cambaricho  e  sentam -se  no  chão  ou  na  linha  erguida  à  borda do  arrozal. 
    Já  as  mulheres  que  deixaram   os  filhitos  ao  abandono por  ali  os  apertam   entre  os  braços  e  os  amimam,  beijando-lhes  as  faces  sujas  de  Terra,  amassada  com   lágrimas. E  eles  buscam-lhes,  com   as  bocas  rebentadas  de  feridas, onde  as  moscas  pousam   e  o  ranho  criou  crosta,  os  peitos escorridos,  beliscando-lhes  nas  blusas  a  sua  fome.
    — Ah,  raça  de  cachopo!  Dá-lhe  de  mama,  mulher.
    — Vai  blusa  e  tudo,  se  não  lhe  acodes.  Isso  é  que  é um comilão!
    A  mãe  afaga-lhe  os  cabelitos  ralos,  tendo  nos  dedos duros  carícias  brandas  que  o  fazem  pairar  e  sacudir  o corpo  em  sacões  de  alegria.
    — Ah, rico filho,  tu  tens  fominha,  não  tens?...
    — Come  tu,  cachopa,  que  bem   no  precisas.  Se  não tens  tento  na  cabeça...
    E a mãe tosse,  pondo  a mão na boca; vêm-lhe às faces afiladas  duas  rosetas  brandas,  que  se  desfazem   depois na  cera  do   rosto.  Ergue  o  filho  nos  braços,  como  a  vê-lo bem ,  brincando-lhe  nos  olhos  duas  gotas  que  lhes  dão mais  brilho.
    —  Ah,  meu  Zezinho...
    E  puxa-o  de  novo  a  si,  beijando-lhe  o ventre  inchado.
    Todo  o  rancho  está  no  carril  para  o   almoço
    Formam  grupos  dispersos,  caldeiras  ao  lado  das  foices,  e  vão   mergulhando  as  colheres  no  caldo  negro  dos feijões, onde ralas olhas de azeite põem pontos doirados.
                                                                                                 Gaibéus, Alves Redol
    Pareciam  cercados  no  trabalho  pelo  braseiro  de  um  fogo  que  alastrasse  na  Lezíria  Grande.  Como  se  da  Ponta de  Erva  ao  Vau  a  leiva  se  consumisse  nas  labaredas  de um   incêndio  que  irrompesse  ao  mesmo  tempo  por  toda a  parte.
    O  ar  escaldava;  lambia-lhes  de  febre  os  rostos  corridos pelo  suor  e  vincados  por  esgares  que  o  esforço  da  ceifa provocava.  O   Sol  desaparecera  há  muito,  envolvido  pela massa  cinzenta  das  nuvens  cerradas.  Os  ceifeiros  não  o sentiam  penetrar-lhes  a  carne  abalada  pela  fadiga.  Lento, mas persistente,  parecia ter-se dissolvido no ar que  respiravam,  pastoso  e  espesso.  Trabalhavam  à  porta  de  uma  for- nalha que lhes alimentava os pulmões com metal em  fusão.
    Quase  exaustos,  os  peitos  arfavam  num   ritmo  de  má¬quinas velhas  saturadas  de  movimento.
    A  ceifa,  porém ,  não  parava,  e  ainda  bem   —  a  ceifa levava  o  seu  tempo  marcado.  Se  chovesse,  o  patrão  apanharia  um   boléu  de  aleijar,  diziam   os  rabezanos  na  sua linguagem  taurina.  Eles  próprios  não  a  desejavam;  se  as foices  não  cortassem   arroz,  as  jornas   acabariam   também . E se  ao sábado o apontador não enchesse a folha,  as fateiras  não  trariam   pão   e  conduto  da  vila.
    Então  os  dias  tornar-se-iam   ainda  mais  penosos  e  o degredo  por terras  estranhas  mais  insuportável.
    Vencidos  pelo  torpor,  os  braços  não  param.  Lançam  as foices  no  eito,  juntando  os  pés  de  arroz  na  mão  esquerda, e  o  hábito  arrasta--os  em   gestos  quase  automáticos,  mais um   passo  e  outro,  a  caminho   da  maracha  que  fecha  o extremo  de  cada  canteiro.  Cami- nham  sempre  no  mes¬mo  balouçar de  ombros; as  pegadas  do  seu  esforço ficam marcadas  na  resteva  lodosa.
    Talvez  muitos  deles  pensem   que  o  arroz  deitado  nas gavelas  repousa  primeiro  do  que  os  seus  corpos.  Se  pu¬dessem   deter-se  também,  por  instantes,  e  descansarem  depois  a  cabeça  nos  montes  de  espigas  que  deixam   atrás de  si,  a  ceifa  poderia  animar.
    Mas  o  bafo  que  vem  da  seara  queima  mais  em   cada minuto e  as  cabeças  dos  alugados  pesam  já  tanto como  o cabo  das  foices  nos  braços  esgotados.  Estão  atafulhadas de  amarelo,  de pensamentos e de grãos de fogo que a  ca¬nícula  doente  lhes  insuflou  no sangue.
    Ninguém  entoa  cantigas  para  animar,  embora  os  ca¬patazes  tenham   incitado  as  raparigas  cantaroleiras  para  o fazer.  Nos  ranchos não  há  agora  quem  saiba  cantar.
    Como  podem   as  cachopas  entrar  em   cantos  ao  desa¬fio,  se  os  peitos  parecem   fendidos  pela  fadiga  e  o  ar que respiram se  tornou  lava  do vulcão  da  planície?!...
    — Auga!...  Auga!...  — gritam os  rapazes  aguadeiros.
    Os  seus  brados  parecem  vogar  sobre  o  rancho  e  não se  dissolvem.  Ficam  a  boiar  na  massa  espessa  da  lava  de fogo e  angústia que  cobre as searas.  As palavras não nau¬fragam.
    Talvez  por isso também  as raparigas não cantem.  Ago¬ra  só saberiam canções  tristes  que  lhes  recordassem  a  sua condição de  alugadas.
    — Auga!...  Auga!...Os três gaibéus andam  numa roda viva a encher os cântaros  e  a  entregá-los  às  mãos  suplicantes  dos  ceifeiros.
    (…)
    O  ar fica  a  repetir aquela  chicotada  no  silêncio  opressivo.
    Nem  um   pássaro  anda  no  ar.  Não  conseguem   singrar agora  naquele  céu  de  metais  em fusão. 
    Os  pássaros  não voam.  Mas os  ceifeiros  trabalham.
    A  ceifa  não  pára  —   a  ceifa  não  pára  nunca.
    O  Agostinho  Serra  tem   os  seus  encargos,  fala  deles  a toda  a  hora,  e  se  começa  a  chover  apanha  um   boléu  dos grandes.  A  Senhora  Companhia  não  perdoa  a  renda  da terra,  haja  o   que  houver.
    De quando  em  quando, um deixa a foice e vai saltando as  travessas  para  se  ir  abaixar  a  boa  distância  do  olhar dos  capatazes.
                                                                                                 Gaibéus, Alves Redol


    Naquela  noite,  na  praia  de  areia fina,  onde  os  avieiros pelo  Inverno vêm   puxar as  redes,  só se  ouvia  o  marulhar brando  do Tejo  a  acariciá-los. 
    Estava  noite  de  luar.  Um  luar  brando  de  Outono  que vestia  as  coisas de  penumbra  triste.  Piscavam luzes  na  ou¬tra margem, dispersas aqui e além, mais ali reunidas, como num   concilio  de  estrelas.  Eram  constelações  de  vidas,  to¬das  iguais vistas de  longe. 
    A  luz  que  iluminava  o  senhor  não  brilhava  mais  do que  a  outra  que  alumiava  o  servo.  Ali  não  havia  casebres,  nem   palácios.  Todas  eram  irmãs,  como  as  estrelas da  Estrada  de  Santiago  que  polvilhavam  de  oiro  o  azul-negro.
    Dali  os  seus  anseios  partiam para  longas viagens,  em ¬balados  pela  dolência  das  marés,  com  velas  enfunadas pelo  sopro  da  imaginação  de  cada  qual.  Até  ele  vinha  o passado,  qual  história  estranha  dita  pelo  Tejo,  numa  voz meiga  e  doce.  E  o   passado  era  triste  —  mais  triste  que  o badalar de  um  chocalho vindo  de  longe. 
    Ambições  naufragadas,  restos  de  alegrias  e  desditas, de que tinha vaga  recordação.  O  presente  era amargo,  tão doloroso  como  o  passado. Mas ali,  naquele  silêncio,  guardava  sonhos de  criança, como se  nunca  tivesse  entrado  na  vida  e  ainda  a  julgasse unia  floresta  de  frutos  de  oiro.
    Era  ali,  sentado  na  praia,  de  corpo  alquebrado  pelas soalheiras  e  pelo  trabalho,  que  vinha  fazer  a  sua  viagem de promissão.  Na  dolência vaga  da  noite  acompanhava-o, às vezes,  o trapejar de velas  no virar dos bordos.
    E  ficava-se  a  olhar  as  fragatas,  embarcando  nelas  os seus  anseios  sempre jovens.
    A  carreira  daqueles  barcos  era  curta  e  não  chegava ao  mar.  Descarregavam  em   qualquer  porto  das  margens e  voltavam  de  novo,   rio  acima,  em   viagem  decorada. E  todos  os  dias  e  todas  as  noites,  enquanto  houvesse  fretes:  até o tempo lhes consumir as carcaças e serem vendi¬dos  para  encalhar nos valados. 
    Barcos  irmãos  da  sua vida  de  alugado. 
    Também já  andara  p or esse  mundo,  embarcado  como mercadoria.  Encontrara homens de outras raças, raças que afinal  eram   irmãs  da  sua.  Nunca  julgara  isso.  Sabia  agora que  o Agostinho Serra  pertencia  a  outra  raça  e  que  a  sua era  a  mesma  dos  negros descarregadores  dos molhes  dos portos  por  onde  andara.  Irmão  dos  negros  que  colhiam café  e  pilavam  milho,  por  essas  terras  distantes  de  oiro, e  febres.        
    Fora  e voltara — sempre  passageiro de  terceira.
    Estava agora  ali,  trabalharia amanhã  no fundo de uma mina  a  viver  em   trevas  —  a  sua  vida  assemelhava-se  a uma mina em  trevas. Mas caminhava nela e tinha anseios, porque  sabia  haver  lá  em   cima  outra  vida  com  luz  e  ar. Vivia  na  sub-humanidade  —  morava  na  cave  de  um   prédio  de  muitos  andares,  onde,  nos  altos,  havia  lugar  para ele  e  para  os  companheiros. 
    O  canavial,  ali  perto,  falou  à  noite.  E  a  noite  não  lhe respondeu.  Só  as  águas  do Tejo  contavam  histórias  estranhas  de  dramas  seus. 
    Vinha  ai  a  maré  alta.  Ele  desconhecia  ainda  que  a vida  dos ho-mens  é  um  rio com marés,  um rio com fluxos e  refluxos  que  um   dia  o  havia  de  trazer  para  a  luz.  
                                                                                                 Gaibéus, Alves Redol


— Fora daí com isso tudo... Não quero tropeços no caminho.

    O  senhor  de  boné  branco  viera  de  sobrolho  franzido para  dar aquela  ordem   e  desaparecera.  Dois  carregadores levaram  a  mão  ao  boné  quando   ele  passou  e  ficaram, como um  eco,  a  repetir-lhe  as  palavras.
    — Fora  daí  com   isso  tudo...
    Tinham   posto  os  sacos  em   cima  do   banco  e  agora levavam-nos  para  junto  do   balcão  dos  despachos.  O  se¬nhor  de  boné  branco  dissera  aquilo  num   tom   que  não merecia  dúvidas.
    —  É  o  chefe...  — esclareceu  um,  em  voz baixa.  Amontoaram  o que puderam  para não tomar espaço, olhando, de soslaio,  os  dois carregadores.—  Não  quero   tropeços  no   caminho...  —  insistiu  um  dos  carregadores. 
    O  outro veio espreitar por detrás  dos sacos,  com  a  expressão dura  que o chefe lhe emprestara,  e  indagou quem  era  o   capataz.
    — É dizer  a  esta  gente  que  o   chão  não   é  para  sujar. Fazem disto  esterqueira...
    (…)
    Uma  criança  chorou.  A  mãe  tapou-lhe  a  boca  com  o bico  do  seio.  Logo  as  outras  entraram   na  choraminguice, até  que  a  mamada  as  calou. 
    Um mendigo, todo farrapos e casca  negra  de  porcaria, levantou-se do  banco e  pôs-se a passear defronte  das mu¬lheres,  devorando-lhes os peitos com  o olhar. Tirou  detrás da   orelha  uma  ponta  de  cigarro  e  acendeu-a. 
    As mulheres não deram por ele. Miravam-se nos filhos e nas com- panheiras  débeis  que  tossiam.  Depois  o  men¬digo  cansou-se  do   passeio  e  foi  sentar-se  no  banco.  Dali sonhou  uma  mulher que  nunca  tivera.
    Homens  descalços,  de  saca  ao  ombro,  vieram   encostar-se  ao  balcão  em   conversa.  As  gaibéuas  perceberam  que  falavam  de  trabalho.  Um  deles  ria  por  tudo   e  fazia caretas  quando   mastigava  as  palavras.  As  camisas  esta¬vam  sujas de  pó  amassado com  suor e  as barbas crescidas enegreciam-lhes  os  rostos.
                                                                                                 Gaibéus, Alves Redol