Difference between revisions of "Redol, Alves - Livros Proibidos"

From Wikipédia de Autores Algarvios
Jump to: navigation, search
 
(7 intermediate revisions by the same user not shown)
Line 1: Line 1:
 +
[[File:Alves Redol - San Payo (Arquivo de Documentação Fotográfica, DGPC).png|176px]] [[File:Gaibéuslivro.jpg|202px]] [[File:Gaibéuscensura.jpg|183px]]
 +
*'''Alves Redol''' (1911–1969)<br />
 +
Escritor português, natural de Vila Franca de Xira. Figura central do Neorrealismo português, foi autor de uma vasta obra ficcional, que inclui o teatro e o conto. Empenhado na luta de resistência ao regime salazarista, compreendeu a literatura como forma de intervenção social e, nesse mesmo ano, surgiu o seu primeiro romance, Gaibéus, cujo assunto, relacionado com problemas socioeconómicos vividos pelos ceifeiros, fez desta obra o marco do aparecimento do Neorrealismo.
  
*'''Alves Redol''' (1911–1969)
+
*'''Livro proibido - Gaibéus'''
Escritor português, natural de Vila Franca de Xira, António Alves Redol nasceu a 29 de dezembro de 1911 e faleceu 29 de novembro de 1969. Figura central do Neorrealismo português, foi autor de uma vasta obra ficcional, que inclui o teatro e o conto.
 
  
Empenhado na luta de resistência ao regime salazarista, compreendeu a literatura como forma de intervenção social e, nesse mesmo ano, surgiu o seu primeiro romance, Gaibéus, cujo assunto, relacionado com problemas sócio-económicos vividos pelos ceifeiros, fez desta obra o marco do aparecimento do Neorrealismo.
+
*'''Excerto 1'''
 +
Caminhavam aos grupos, aturdidos. De fatos assolapados por remendos, de presilhas e chapéus puxados para os olhos, ficaram-lhes mais som brilho o olhar dos rostos tisnados pelas soalheiras da vindima.<br />Enrolavam-se alguns em gabões desbotados, trazendo ao ombro irmãos sacos e foices, paus e caldeiras.<br />E as mulheres, embrulhadas em xailes desfiados ou saias de casteleta pelos ombros, marchavam silenciosas, de pés descalços.<br />Sentiam saudades da terra que eles negavam o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe…<br />E se lá havia pão para todos! Mal tínhamos acabado de terminar dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d’água. Era um êxodo de desgrana e susto. Que iriam, encontrar ali?!...<br />Algumas encomendas desde há muito; outros vencidos, finalmente, pela escassez dos últimos dois anos.- Nunca se viu coisa assim!... A terra parece praguejada.<br />E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.<br />Courelas pequenas, onde se desunhavam a trabalhar, passando a mãos estranhas que nunca as tinham apalpado à enxada, logo depois feitas courelas grandes com outras e outras que se lhes juntavam.
  
Caminhavam aos grupos, aturdidos. De fatos assolapados por remendos, de presilhas e chapéus puxados para os olhos, ficaram-lhes mais som brilho o olhar dos rostos tisnados pelas soalheiras da vindima.<br />
+
*'''Excerto 2'''
Enrolavam-se alguns em gabões desbotados, trazendo ao ombro irmãos sacos e foices, paus e caldeiras.<br />
+
Esfalfadas, a arfar, as velhas arrastavam os pés, a quererem acompanhar as outras, e levantavam poeira do carril, com o rebanho de volta à malhada. Vinham com elas as que traziam os filhos ao colo, chupando-lhes os peitos sem viço, e a cachopada mais tenra, mal habituada ainda àqueles trabalhos de galé. Alguns iam conhecer patrão pela primeira vez. Já os tocava, porém, a mesma certeza dos que andavam a vida inteira a labutar sem norte.<br />De roupas desajeitadas, feitas para os outros, de panamás negros a encoifar-lhes os rostos, onde os olhos assemelhavam vaga-lumes na noite funda que os cobria, embora o Sol andasse nas alturas a chapinhar luz.<br />Uma velha deixou-se cair no valado, a tossir e a rezar. Os membros aquebrantados pareciam ter-lhe abandonado o corpo e ali ficara sem forças para ir no rastro do rancho.<br />—...  o  Senhor é  convosco...<br />Agatanhando  as  ervas,  subiu  ao  alto  do  valado  e  sentou-se,  como  se  ali  procurasse  refúgio.<br />Tossiu mais — e rezou ainda.<br />—...  bendito  o  fruto  do vosso ventre...<br />Espraiou os olhos pela campina fora, mas sentiu-se só. Só como nunca,  derribada  na  alma.<br />Aqueles troncos, doridos nos estertores do cerne, apareciam-lhe como o espelho da sua própria angústia.<br />E a velha chorou num pranto manso.
E as mulheres, embrulhadas em xailes desfiados ou saias de casteleta pelos ombros, marchavam silenciosas, de pés descalços.<br />
 
Sentiam saudades da terra que eles negavam o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe…<br />
 
E se lá havia pão para todos! Mal tínhamos acabado de terminar dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d’água. Era um êxodo de desgrana e susto. Que iriam, encontrar ali?!...<br />
 
Algumas encomendas desde há muito; outros vencidos, finalmente, pela escassez dos últimos dois anos.- Nunca se viu coisa assim!... A terra parece praguejada.<br />
 
E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.<br />
 
Courelas pequenas, onde se desunhavam a trabalhar, passando a mãos estranhas que nunca as tinham apalpado à enxada, logo depois feitas courelas grandes com outras e outras que se lhes juntavam.<br />
 
<br />
 
(…)<br />
 
<br />
 
Esfalfadas, a arfar, as velhas arrastavam os pés, a quererem acompanhar as outras, e levantavam poeira do carrril, com o rebanho de volta à malhada. Vinham com elas as que traziam os filhos ao colo, chupando-lhes os peitos sem viço, e a cachopada mais tenra, mal habituada ain¬da àqueles trabalhos de galé. Alguns iam conhecer patrão pela primeira vez. Já os tocava, porém, a mesma certeza dos que andavam a vida inteira a labutar sem norte.<br />
 
De roupas desajeitadas, feitas para os outros, de panamás negros a encoifar-lhes os rostos, onde os olhos assemelhavam vaga-lumes na noite funda que os cobria, embora o Sol andasse nas alturas a chapinhar luz.<br />
 
Uma velha deixou-se cair no valado, a tossir e a rezar. Os membros aquebrantados pareciam ter-lhe abandonado o corpo e ali ficara sem forças para ir no rastro do rancho.<br />
 
—...  o  Senhor é  convosco...<br />
 
Agatanhando  as  ervas,  subiu  ao  alto  do  valado  e  sentou-se,  como  se  ali  procurasse  refúgio.<br />  
 
Tossiu mais — e rezou ainda.<br />
 
—...  bendito  o  fruto  do vosso ventre...<br />
 
Espraiou os olhos pela campina fora, mas sentiu-se só. Só como nunca,  derribada  na  alma.<br />
 
Aqueles troncos, doridos nos estertores do cerne, apareciam-lhe como o espelho da sua própria angústia.<br />  
 
E a velha chorou num pranto manso.<br />
 
A cambalear, carril fora, vinham dois homens cantando:<br />
 
<br />
 
... Só por morte eu o vinho deixava<br />
 
<br />
 
Pararam a olhar a velha e riram, quando notaram que lhe caíam lágrimas nas faces golpeadas pelos anos.<br />
 
— Parece que vem prá morte, Mãe Santíssima!<br />
 
— Bem morte…<br />
 
<br />
 
<br />
 
<br />
 
  
Foram saltando aos camalhões, de braços a bambolear pela fadiga, pernas em cadência frouxa e troncos  engibados  pendidos  à  terra.<br />  
+
*'''Excerto 3'''
As  cachopas beliscam-se  e  riem  —  mas o  seu  riso soa a  falso.<br />  
+
Foram saltando aos camalhões, de braços a bambolear pela fadiga, pernas em cadência frouxa e troncos  engibados  pendidos  à  terra.<br />As  cachopas beliscam-se  e  riem  —  mas o  seu  riso soa a  falso.<br />Levam  nos  quadris  casacos  velhos  assolapados  de  remendos  que  lhes  defenderam  os  rins  da  brasa  do  sol.  Os rapazes  passam  agora  pelas  rãs  que  chapinham  nos  charcos e  não  atiram  torrões  para  as  espantar.<br />As  rãs  coaxam  a  sua  liberdade.<br />As  flores  crescidas  nas  travessas  dobram-se  e  desfolham-se  à  passagem  do  rancho  e  só  a  erva  unha-gata  o defronta,  picando as  pernas às  raparigas.  Os  ceifeiros  que chegam  ao  carril  tiram  as  caldeiras  dos  ganchos  do  cambaricho  e  sentam -se  no  chão  ou  na  linha  erguida  à  borda do  arrozal.<br />Já  as  mulheres  que  deixaram  os  filhitos  ao  abandono por  ali  os  apertam  entre  os  braços  e  os  amimam,  beijando-lhes  as  faces  sujas  de  Terra,  amassada  com  lágrimas. E  eles  buscam-lhes,  com  as  bocas  rebentadas  de  feridas, onde  as  moscas  pousam  e  o  ranho  criou  crosta,  os  peitos escorridos,  beliscando-lhes  nas  blusas  a  sua  fome.<br />— Ah,  raça  de  cachopo!  Dá-lhe  de  mama,  mulher.<br />— Vai  blusa  e  tudo,  se  não  lhe  acodes.  Isso  é  que  é um comilão!<br />A  mãe  afaga-lhe  os  cabelitos  ralos,  tendo  nos  dedos duros  carícias  brandas  que  o  fazem  pairar  e  sacudir  o corpo  em  sacões  de  alegria.<br />— Ah, rico filho,  tu  tens  fominha,  não  tens?...<br />— Come  tu,  cachopa,  que  bem  no  precisas.  Se  não tens  tento  na  cabeça...<br />E a mãe tosse,  pondo  a mão na boca; vêm-lhe às faces afiladas  duas  rosetas  brandas,  que  se  desfazem  depois na  cera  do  rosto.  Ergue  o  filho  nos  braços,  como  a  vê-lo bem ,  brincando-lhe  nos  olhos  duas  gotas  que  lhes  dão mais  brilho.<br />—  Ah,  meu  Zezinho...<br />E  puxa-o  de  novo  a  si,  beijando-lhe  o ventre  inchado.
Levam  nos  quadris  casacos  velhos  assolapados  de  remendos  que  lhes  defenderam  os  rins  da  brasa  do  sol.  Os rapazes  passam  agora  pelas  rãs  que  chapinham  nos  char¬cos e  não  atiram  torrões  para  as  espantar.<br />
 
As  rãs  coaxam  a  sua  liberdade.<br />
 
As  flores  crescidas  nas  travessas  dobram-se  e  desfolham-se  à  passagem  do  rancho  e  só  a  erva  unha-gata  o defronta,  picando as  pernas às  raparigas.  Os  ceifeiros  que chegam  ao  carril  tiram  as  caldeiras  dos  ganchos  do  cambaricho  e  sentam -se  no  chão  ou  na  linha  erguida  à  borda do  arrozal.  
 
Já  as  mulheres  que  deixaram  os  filhitos  ao  abandono por  ali  os  apertam  entre  os  braços  e  os  amimam,  beijando-lhes  as  faces  sujas  de  Terra,  amassada  com  lágrimas. E  eles  buscam-lhes,  com  as  bocas  rebentadas  de  feridas, onde  as  moscas  pousam  e  o  ranho  criou  crosta,  os  peitos escorridos,  beliscando-lhes  nas  blusas  a  sua  fome.
 
— Ah,  raça  de  cachopo!  Dá-lhe  de  mama,  mulher.<br />
 
— Vai  blusa  e  tudo,  se  não  lhe  acodes.  Isso  é  que  é um comilão!<br />
 
A  mãe  afaga-lhe  os  cabelitos  ralos,  tendo  nos  dedos duros  carícias  brandas  que  o  fazem  pairar  e  sacudir  o corpo  em  sacões  de  alegria.<br />
 
— Ah, rico filho,  tu  tens  fominha,  não  tens?...<br />
 
— Come  tu,  cachopa,  que  bem  no  precisas.  Se  não tens  tento  na  cabeça...<br />
 
E a mãe tosse,  pondo  a mão na boca; vêm-lhe às faces afiladas  duas  rosetas  brandas,  que  se  desfazem  depois na  cera  do  rosto.  Ergue  o  filho  nos  braços,  como  a  vê-lo bem ,  brincando-lhe  nos  olhos  duas  gotas  que  lhes  dão mais  brilho.<br />
 
—  Ah,  meu  Zezinho...<br />
 
E  puxa-o  de  novo  a  si,  beijando-lhe  o ventre  inchado.<br />
 
Todo  o  rancho  está  no  carril  para  o  almoço<br />
 
Formam  grupos  dispersos,  caldeiras  ao  lado  das  foices,  e  vão  mergulhando  as  colheres  no  caldo  negro  dos feijões, onde ralas olhas de azeite põem pontos doirados.<br />
 
'''Gaibéus, Alves Redol'''<br />
 
<br />
 
<br />
 
  
    Naquela  noite,  na  praia  de  areia fina,  onde  os  avieiros pelo  Inverno vêm  puxar as  redes,  só se  ouvia  o  marulhar brando  do Tejo  a  acariciá-los.
 
    Estava  noite  de  luar.  Um  luar  brando  de  Outono  que vestia  as  coisas de  penumbra  triste.  Piscavam luzes  na  ou¬tra margem, dispersas aqui e além, mais ali reunidas, como num  concilio  de  estrelas.  Eram  constelações  de  vidas,  to¬das  iguais vistas de  longe.
 
    A  luz  que  iluminava  o  senhor  não  brilhava  mais  do que  a  outra  que  alumiava  o  servo.  Ali  não  havia  casebres,  nem  palácios.  Todas  eram  irmãs,  como  as  estrelas da  Estrada  de  Santiago  que  polvilhavam  de  oiro  o  azul-negro.
 
    Dali  os  seus  anseios  partiam para  longas viagens,  em ¬balados  pela  dolência  das  marés,  com  velas  enfunadas pelo  sopro  da  imaginação  de  cada  qual.  Até  ele  vinha  o passado,  qual  história  estranha  dita  pelo  Tejo,  numa  voz meiga  e  doce.  E  o  passado  era  triste  —  mais  triste  que  o badalar de  um  chocalho vindo  de  longe.
 
    Ambições  naufragadas,  restos  de  alegrias  e  desditas, de que tinha vaga  recordação.  O  presente  era amargo,  tão doloroso  como  o  passado. Mas ali,  naquele  silêncio,  guardava  sonhos de  criança, como se  nunca  tivesse  entrado  na  vida  e  ainda  a  julgasse unia  floresta  de  frutos  de  oiro.
 
    Era  ali,  sentado  na  praia,  de  corpo  alquebrado  pelas soalheiras  e  pelo  trabalho,  que  vinha  fazer  a  sua  viagem de promissão.  Na  dolência vaga  da  noite  acompanhava-o, às vezes,  o trapejar de velas  no virar dos bordos.
 
    E  ficava-se  a  olhar  as  fragatas,  embarcando  nelas  os seus  anseios  sempre jovens.
 
    A  carreira  daqueles  barcos  era  curta  e  não  chegava ao  mar.  Descarregavam  em  qualquer  porto  das  margens e  voltavam  de  novo,  rio  acima,  em  viagem  decorada. E  todos  os  dias  e  todas  as  noites,  enquanto  houvesse  fretes:  até o tempo lhes consumir as carcaças e serem vendi¬dos  para  encalhar nos valados.
 
    Barcos  irmãos  da  sua vida  de  alugado.
 
    Também já  andara  p or esse  mundo,  embarcado  como mercadoria.  Encontrara homens de outras raças, raças que afinal  eram  irmãs  da  sua.  Nunca  julgara  isso.  Sabia  agora que  o Agostinho Serra  pertencia  a  outra  raça  e  que  a  sua era  a  mesma  dos  negros descarregadores  dos molhes  dos portos  por  onde  andara.  Irmão  dos  negros  que  colhiam café  e  pilavam  milho,  por  essas  terras  distantes  de  oiro, e  febres.       
 
    Fora  e voltara — sempre  passageiro de  terceira.
 
    Estava agora  ali,  trabalharia amanhã  no fundo de uma mina  a  viver  em  trevas  —  a  sua  vida  assemelhava-se  a uma mina em  trevas. Mas caminhava nela e tinha anseios, porque  sabia  haver  lá  em  cima  outra  vida  com  luz  e  ar. Vivia  na  sub-humanidade  —  morava  na  cave  de  um  prédio  de  muitos  andares,  onde,  nos  altos,  havia  lugar  para ele  e  para  os  companheiros.
 
    O  canavial,  ali  perto,  falou  à  noite.  E  a  noite  não  lhe respondeu.  Só  as  águas  do Tejo  contavam  histórias  estranhas  de  dramas  seus.
 
    Vinha  ai  a  maré  alta.  Ele  desconhecia  ainda  que  a vida  dos ho-mens  é  um  rio com marés,  um rio com fluxos e  refluxos  que  um  dia  o  havia  de  trazer  para  a  luz. 
 
                                                                                                  Gaibéus, Alves Redol
 
 
<br />
 
 
[[File:Logo25abril50anosleiturascensuradas.png|797px|center]]<br />
 
[[File:Logo25abril50anosleiturascensuradas.png|797px|center]]<br />
 
[[File:Wiki-nao-censurada-lapisazul.png|797px|center]]<br />
 
[[File:Wiki-nao-censurada-lapisazul.png|797px|center]]<br />

Latest revision as of 15:23, 15 April 2024

Alves Redol - San Payo (Arquivo de Documentação Fotográfica, DGPC).png Gaibéuslivro.jpg Gaibéuscensura.jpg

  • Alves Redol (1911–1969)

Escritor português, natural de Vila Franca de Xira. Figura central do Neorrealismo português, foi autor de uma vasta obra ficcional, que inclui o teatro e o conto. Empenhado na luta de resistência ao regime salazarista, compreendeu a literatura como forma de intervenção social e, nesse mesmo ano, surgiu o seu primeiro romance, Gaibéus, cujo assunto, relacionado com problemas socioeconómicos vividos pelos ceifeiros, fez desta obra o marco do aparecimento do Neorrealismo.

  • Livro proibido - Gaibéus
  • Excerto 1
Caminhavam aos grupos, aturdidos. De fatos assolapados por remendos, de presilhas e chapéus puxados para os olhos, ficaram-lhes mais som brilho o olhar dos rostos tisnados pelas soalheiras da vindima.
Enrolavam-se alguns em gabões desbotados, trazendo ao ombro irmãos sacos e foices, paus e caldeiras.
E as mulheres, embrulhadas em xailes desfiados ou saias de casteleta pelos ombros, marchavam silenciosas, de pés descalços.
Sentiam saudades da terra que eles negavam o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe…
E se lá havia pão para todos! Mal tínhamos acabado de terminar dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d’água. Era um êxodo de desgrana e susto. Que iriam, encontrar ali?!...
Algumas encomendas desde há muito; outros vencidos, finalmente, pela escassez dos últimos dois anos.- Nunca se viu coisa assim!... A terra parece praguejada.
E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.
Courelas pequenas, onde se desunhavam a trabalhar, passando a mãos estranhas que nunca as tinham apalpado à enxada, logo depois feitas courelas grandes com outras e outras que se lhes juntavam.
  • Excerto 2
Esfalfadas, a arfar, as velhas arrastavam os pés, a quererem acompanhar as outras, e levantavam poeira do carril, com o rebanho de volta à malhada. Vinham com elas as que traziam os filhos ao colo, chupando-lhes os peitos sem viço, e a cachopada mais tenra, mal habituada ainda àqueles trabalhos de galé. Alguns iam conhecer patrão pela primeira vez. Já os tocava, porém, a mesma certeza dos que andavam a vida inteira a labutar sem norte.
De roupas desajeitadas, feitas para os outros, de panamás negros a encoifar-lhes os rostos, onde os olhos assemelhavam vaga-lumes na noite funda que os cobria, embora o Sol andasse nas alturas a chapinhar luz.
Uma velha deixou-se cair no valado, a tossir e a rezar. Os membros aquebrantados pareciam ter-lhe abandonado o corpo e ali ficara sem forças para ir no rastro do rancho.
—... o Senhor é convosco...
Agatanhando as ervas, subiu ao alto do valado e sentou-se, como se ali procurasse refúgio.
Tossiu mais — e rezou ainda.
—... bendito o fruto do vosso ventre...
Espraiou os olhos pela campina fora, mas sentiu-se só. Só como nunca, derribada na alma.
Aqueles troncos, doridos nos estertores do cerne, apareciam-lhe como o espelho da sua própria angústia.
E a velha chorou num pranto manso.
  • Excerto 3
Foram saltando aos camalhões, de braços a bambolear pela fadiga, pernas em cadência frouxa e troncos  engibados  pendidos  à  terra.
As cachopas beliscam-se e riem — mas o seu riso soa a falso.
Levam nos quadris casacos velhos assolapados de remendos que lhes defenderam os rins da brasa do sol. Os rapazes passam agora pelas rãs que chapinham nos charcos e não atiram torrões para as espantar.
As rãs coaxam a sua liberdade.
As flores crescidas nas travessas dobram-se e desfolham-se à passagem do rancho e só a erva unha-gata o defronta, picando as pernas às raparigas. Os ceifeiros que chegam ao carril tiram as caldeiras dos ganchos do cambaricho e sentam -se no chão ou na linha erguida à borda do arrozal.
Já as mulheres que deixaram os filhitos ao abandono por ali os apertam entre os braços e os amimam, beijando-lhes as faces sujas de Terra, amassada com lágrimas. E eles buscam-lhes, com as bocas rebentadas de feridas, onde as moscas pousam e o ranho criou crosta, os peitos escorridos, beliscando-lhes nas blusas a sua fome.
— Ah, raça de cachopo! Dá-lhe de mama, mulher.
— Vai blusa e tudo, se não lhe acodes. Isso é que é um comilão!
A mãe afaga-lhe os cabelitos ralos, tendo nos dedos duros carícias brandas que o fazem pairar e sacudir o corpo em sacões de alegria.
— Ah, rico filho, tu tens fominha, não tens?...
— Come tu, cachopa, que bem no precisas. Se não tens tento na cabeça...
E a mãe tosse, pondo a mão na boca; vêm-lhe às faces afiladas duas rosetas brandas, que se desfazem depois na cera do rosto. Ergue o filho nos braços, como a vê-lo bem , brincando-lhe nos olhos duas gotas que lhes dão mais brilho.
— Ah, meu Zezinho...
E puxa-o de novo a si, beijando-lhe o ventre inchado.
Logo25abril50anosleiturascensuradas.png

Wiki-nao-censurada-lapisazul.png

Voltar à Página Inicial da wiki 25 de Abril - 50 anos - Leituras em Liberdade