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Caminhavam aos grupos, aturdidos. De fatos assolapados por remendos, de presilhas e chapéus puxados para os olhos, ficaram-lhes mais som brilho o olhar dos rostos tisnados pelas soalheiras da vindima.<br />
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[[File:Alves Redol - San Payo (Arquivo de Documentação Fotográfica, DGPC).png|176px]] [[File:Gaibéuslivro.jpg|202px]] [[File:Gaibéuscensura.jpg|183px]]
Enrolavam-se alguns em gabões desbotados, trazendo ao ombro irmãos sacos e foices, paus e caldeiras.<br />
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*'''Alves Redol''' (1911–1969)<br />
E as mulheres, embrulhadas em xailes desfiados ou saias de casteleta pelos ombros, marchavam silenciosas, de pés descalços.<br />
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Escritor português, natural de Vila Franca de Xira. Figura central do Neorrealismo português, foi autor de uma vasta obra ficcional, que inclui o teatro e o conto. Empenhado na luta de resistência ao regime salazarista, compreendeu a literatura como forma de intervenção social e, nesse mesmo ano, surgiu o seu primeiro romance, Gaibéus, cujo assunto, relacionado com problemas socioeconómicos vividos pelos ceifeiros, fez desta obra o marco do aparecimento do Neorrealismo.
Sentiam saudades da terra que eles negavam o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe…<br />
 
E se lá havia pão para todos! Mal tínhamos acabado de terminar dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d’água. Era um êxodo de desgrana e susto. Que iriam, encontrar ali?!...<br />
 
Algumas encomendas desde há muito; outros vencidos, finalmente, pela escassez dos últimos dois anos.- Nunca se viu coisa assim!... A terra parece praguejada.<br />
 
E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.<br />
 
Courelas pequenas, onde se desunhavam a trabalhar, passando a mãos estranhas que nunca as tinham apalpado à enxada, logo depois feitas courelas grandes com outras e outras que se lhes juntavam.<br />
 
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()<br />
 
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Esfalfadas, a arfar, as velhas arrastavam os pés, a quererem acompanhar as outras, e levantavam poeira do carrril, com o rebanho de volta à malhada. Vinham com elas as que traziam os filhos ao colo, chupando-lhes os peitos sem viço, e a cachopada mais tenra, mal habituada ain¬da àqueles trabalhos de galé. Alguns iam conhecer patrão pela primeira vez. Já os tocava, porém, a mesma certeza dos que andavam a vida inteira a labutar sem norte.<br />
 
De roupas desajeitadas, feitas para os outros, de panamás negros a encoifar-lhes os rostos, onde os olhos assemelhavam vaga-lumes na noite funda que os cobria, embora o Sol andasse nas alturas a chapinhar luz.<br />
 
Uma velha deixou-se cair no valado, a tossir e a rezar. Os membros aquebrantados pareciam ter-lhe abandonado o corpo e ali ficara sem forças para ir no rastro do rancho.<br />
 
—...  o  Senhor é  convosco...<br />
 
Agatanhando  as  ervas,  subiu  ao alto  do  valado  e  sentou-se, como se  ali  procurasse  refúgio.<br />
 
Tossiu mais — e rezou ainda.<br />
 
—...  bendito  o  fruto  do vosso ventre...<br />
 
Espraiou os olhos pela campina fora, mas sentiu-se só. Só como nunca, derribada  na  alma.<br />
 
Aqueles troncos, doridos nos estertores do cerne, apareciam-lhe como o espelho da sua própria angústia.<br />
 
E a velha chorou num pranto manso.<br />
 
A cambalear, carril fora, vinham dois homens cantando:<br />
 
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... Só por morte eu o vinho deixava<br />
 
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Pararam a olhar a velha e riram, quando notaram que lhe caíam lágrimas nas faces golpeadas pelos anos.<br />
 
— Parece que vem prá morte, Mãe Santíssima!<br />
 
— Bem morte…<br />
 
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Foram saltando aos camalhões, de braços a bambolear pela fadiga, pernas em cadência frouxa e troncos  engibados  pendidos  à  terra.<br />
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*'''Livro proibido - Gaibéus'''
As  cachopas beliscam-se  e  riem  —  mas o  seu  riso soa a  falso.<br />   
 
Levam  nos  quadris  casacos  velhos  assolapados  de  remendos  que  lhes  defenderam  os  rins  da  brasa  do  sol.  Os rapazes  passam  agora  pelas  rãs  que  chapinham  nos  char¬cos  e  não  atiram  torrões  para  as  espantar.<br />
 
As  rãs  coaxam  a  sua  liberdade.<br />
 
As  flores  crescidas  nas  travessas  dobram-se  e  desfolham-se  à  passagem  do  rancho  e  só  a  erva  unha-gata  o defronta,  picando as  pernas às  raparigas.  Os  ceifeiros  que chegam  ao  carril  tiram  as  caldeiras  dos  ganchos  do  cambaricho  e  sentam -se  no  chão  ou  na  linha  erguida  à  borda do  arrozal.
 
Já  as  mulheres  que  deixaram  os  filhitos  ao  abandono por  ali  os  apertam  entre  os  braços  e  os  amimam,  beijando-lhes  as  faces  sujas  de  Terra,  amassada  com  lágrimas. E  eles  buscam-lhes,  com  as  bocas  rebentadas  de  feridas, onde  as  moscas  pousam  e  o  ranho  criou  crosta,  os  peitos escorridos,  beliscando-lhes  nas  blusas  a  sua  fome.
 
— Ah,  raça  de  cachopo!  Dá-lhe  de  mama,  mulher.<br />
 
— Vai  blusa  e  tudo,  se  não  lhe  acodes.  Isso  é  que  é um comilão!<br />
 
A  mãe  afaga-lhe  os  cabelitos  ralos,  tendo  nos  dedos duros  carícias  brandas  que  o  fazem  pairar  e  sacudir  o corpo  em  sacões  de  alegria.<br />
 
— Ah, rico filho,  tu  tens  fominha,  não  tens?...<br />
 
— Come  tu,  cachopa,  que  bem  no  precisas.  Se  não tens  tento  na  cabeça...<br />
 
E a mãe tosse,  pondo  a mão na boca; vêm-lhe às faces afiladas  duas  rosetas  brandas,  que  se  desfazem  depois na  cera  do  rosto.  Ergue  o  filho  nos  braços,  como  a  vê-lo bem ,  brincando-lhe  nos  olhos  duas  gotas  que  lhes  dão mais  brilho.<br />
 
—  Ah,  meu  Zezinho...<br />
 
E  puxa-o  de  novo  a  si,  beijando-lhe  o ventre  inchado.<br />
 
Todo  o  rancho  está  no  carril  para  o  almoço<br />
 
Formam  grupos  dispersos,  caldeiras  ao  lado  das  foices,  e  vão  mergulhando  as  colheres  no  caldo  negro  dos feijões, onde ralas olhas de azeite põem pontos doirados.<br />
 
'''Gaibéus, Alves Redol'''<br />
 
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    Naquela noite, na  praia  de areia fina, onde  os  avieiros pelo  Inverno vêm  puxar as redes, se ouvia  o marulhar brando  do Tejo  a acariciá-los.  
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*'''Excerto 1'''
    Estava  noite  de luar. Um  luar  brando  de  Outono  que vestia as coisas de penumbra  triste. Piscavam luzes  na  ou¬tra margem, dispersas aqui e além, mais ali reunidas, como num  concilio  de estrelas. Eram  constelações  de vidas, to¬das  iguais vistas de  longe.
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  Caminhavam aos grupos, aturdidos. De fatos assolapados por remendos, de presilhas e chapéus puxados para os olhos, ficaram-lhes mais som brilho o olhar dos rostos tisnados pelas soalheiras da vindima.<br />Enrolavam-se alguns em gabões desbotados, trazendo ao ombro irmãos sacos e foices, paus e caldeiras.<br />E as mulheres, embrulhadas em xailes desfiados ou saias de casteleta pelos ombros, marchavam silenciosas, de pés descalços.<br />Sentiam saudades da terra que eles negavam o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe…<br />E se lá havia pão para todos! Mal tínhamos acabado de terminar dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d’água. Era um êxodo de desgrana e susto. Que iriam, encontrar ali?!...<br />Algumas encomendas desde há muito; outros vencidos, finalmente, pela escassez dos últimos dois anos.- Nunca se viu coisa assim!... A terra parece praguejada.<br />E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.<br />Courelas pequenas, onde se desunhavam a trabalhar, passando a mãos estranhas que nunca as tinham apalpado à enxada, logo depois feitas courelas grandes com outras e outras que se lhes juntavam.
    A  luz  que iluminava  o senhor  não  brilhava  mais  do que  a outra  que  alumiava  o servoAli não havia  casebres,  nem  paláciosTodas eram  irmãscomo as estrelas da Estrada de Santiago que polvilhavam de oiro o azul-negro.
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    Dali os seus anseios partiam para  longas viagensem ¬balados pela dolência  das  marés, com  velas  enfunadas pelo  sopro  da imaginação  de  cada  qualAté  ele  vinha  o passado, qual  história  estranha  dita  pelo  Tejonuma voz meiga e doceE o  passado era  triste mais  triste  que  o badalar de  um chocalho vindo de longe.  
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*'''Excerto 2'''
    Ambições naufragadas, restos de alegrias e desditas, de que tinha vaga recordação. O presente era amargo, tão doloroso como o passado. Mas ali, naquele silêncio, guardava sonhos de criança, como se nunca tivesse entrado na vida e ainda a julgasse unia floresta de frutos de oiro.
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  Esfalfadas, a arfar, as velhas arrastavam os pés, a quererem acompanhar as outras, e levantavam poeira do carril, com o rebanho de volta à malhada. Vinham com elas as que traziam os filhos ao colo, chupando-lhes os peitos sem viço, e a cachopada mais tenra, mal habituada ainda àqueles trabalhos de galé. Alguns iam conhecer patrão pela primeira vez. Já os tocava, porém, a mesma certeza dos que andavam a vida inteira a labutar sem norte.<br />De roupas desajeitadas, feitas para os outros, de panamás negros a encoifar-lhes os rostos, onde os olhos assemelhavam vaga-lumes na noite funda que os cobria, embora o Sol andasse nas alturas a chapinhar luz.<br />Uma velha deixou-se cair no valado, a tossir e a rezar. Os membros aquebrantados pareciam ter-lhe abandonado o corpo e ali ficara sem forças para ir no rastro do rancho.<br />—..o Senhor é convosco...<br />Agatanhando as ervassubiu ao alto do valado e sentou-se, como se ali procurasse refúgio.<br />Tossiu mais — e rezou ainda.<br />—..bendito o fruto do vosso ventre...<br />Espraiou os olhos pela campina fora, mas sentiu-se só. Só como nuncaderribada na alma.<br />Aqueles troncos, doridos nos estertores do cerne, apareciam-lhe como o espelho da sua própria angústia.<br />E a velha chorou num pranto manso.
    Era ali, sentado na praia, de  corpo  alquebrado  pelas soalheiras pelo trabalho, que vinha fazer sua viagem de promissão. Na dolência vaga da  noite  acompanhava-o, às vezes, o trapejar de velas no virar dos bordos.
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    E ficava-se a olhar as  fragatas, embarcando nelas os seus anseios sempre jovens.
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*'''Excerto 3'''
    A carreira daqueles barcos era curta e não chegava ao marDescarregavam em  qualquer porto das margens e voltavam de novo,  rio acima, em   viagem  decorada. E  todos os  dias todas  as noitesenquanto houvesse  fretes:  até o tempo lhes consumir as carcaças e serem vendi¬dos  para  encalhar nos valados.
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  Foram saltando aos camalhões, de braços a bambolear pela fadiga, pernas em cadência frouxa e troncos engibados pendidos à terra.<br />As cachopas beliscam-se e riem   mas seu riso soa a falso.<br />Levam nos quadris casacos velhos assolapados de  remendos que lhes defenderam  os rins da brasa do  solOs rapazes passam agora pelas rãs que chapinham  nos charcos e não atiram torrões para as espantar.<br />As rãs coaxam  a sua liberdade.<br />As flores crescidas nas travessas dobram-se desfolham-se à passagem  do  rancho e erva unha-gata o defronta, picando as pernas às  raparigas. Os ceifeiros que chegam  ao carril tiram  as  caldeiras dos ganchos do  cambaricho e sentam -se no chão ou na linha erguida à borda do arrozal.<br />Já as mulheres que deixaram  os filhitos ao abandono por ali os apertam   entre os  braços os amimambeijando-lhes as  faces sujas de  Terraamassada com  lágrimas. E  eles buscam-lhescom   as bocas rebentadas de feridas, onde as moscas pousam  e ranho criou crosta, os peitos escorridos, beliscando-lhes nas blusas sua fome.<br />— Ahraça de cachopo! Dá-lhe de  mamamulher.<br />Vai blusa e tudose não lhe acodes. Isso é que é um comilão!<br />A mãe afaga-lhe  os cabelitos ralostendo  nos dedos duros carícias brandas que o fazem pairar sacudir o corpo em sacões de  alegria.<br />— Ah, rico filho, tu tens fominhanão tens?...<br />— Come tucachopa, que bem  no precisasSe não tens tento na cabeça...<br />E a mãe tosse, pondo a mão na boca; vêm-lhe às faces afiladas duas  rosetas brandas, que se desfazem  depois na cera do   rosto. Ergue o filho nos braços, como a vê-lo bem , brincando-lhe nos olhos duas gotas que  lhes dão mais brilho.<br />— Ahmeu Zezinho...<br />E puxa-o de novo a si, beijando-lhe o ventre inchado.
    Barcos  irmãos da sua vida de  alugado.
 
    Também já  andara  p or esse  mundoembarcado como mercadoriaEncontrara homens de outras raças, raças que afinal eram   irmãs da sua. Nunca julgara isso. Sabia agora que o Agostinho Serra pertencia a outra raça e que a sua era mesma  dos  negros descarregadores  dos molhes dos portos  por  onde  andara. Irmão  dos  negros  que  colhiam café  e  pilavam  milhopor essas terras distantes de  oiro, e febres.      
 
    Fora  e voltara sempre passageiro de terceira.
 
    Estava agora alitrabalharia amanhã no fundo de uma mina a viver em  trevas a sua vida assemelhava-se a uma mina em trevas. Mas caminhava nela e tinha anseios, porque sabia haver em  cima outra vida com luz ar. Vivia na sub-humanidade —  morava  na  cave de  um  prédio de muitos andaresonde, nos altoshavia lugar para ele e  para  os  companheiros.  
 
    O canavial, ali perto, falou à  noiteE noite não lhe respondeu. as águas do Tejo contavam histórias estranhas de dramas seus.
 
    Vinha ai a maré alta. Ele desconhecia ainda que  a vida dos ho-mens é um  rio com marésum rio com fluxos e refluxos que um  dia o havia de trazer para  a luz.
 
                                                                                                  Gaibéus, Alves Redol
 
  
<br />
 
 
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Latest revision as of 15:23, 15 April 2024

Alves Redol - San Payo (Arquivo de Documentação Fotográfica, DGPC).png Gaibéuslivro.jpg Gaibéuscensura.jpg

  • Alves Redol (1911–1969)

Escritor português, natural de Vila Franca de Xira. Figura central do Neorrealismo português, foi autor de uma vasta obra ficcional, que inclui o teatro e o conto. Empenhado na luta de resistência ao regime salazarista, compreendeu a literatura como forma de intervenção social e, nesse mesmo ano, surgiu o seu primeiro romance, Gaibéus, cujo assunto, relacionado com problemas socioeconómicos vividos pelos ceifeiros, fez desta obra o marco do aparecimento do Neorrealismo.

  • Livro proibido - Gaibéus
  • Excerto 1
Caminhavam aos grupos, aturdidos. De fatos assolapados por remendos, de presilhas e chapéus puxados para os olhos, ficaram-lhes mais som brilho o olhar dos rostos tisnados pelas soalheiras da vindima.
Enrolavam-se alguns em gabões desbotados, trazendo ao ombro irmãos sacos e foices, paus e caldeiras.
E as mulheres, embrulhadas em xailes desfiados ou saias de casteleta pelos ombros, marchavam silenciosas, de pés descalços.
Sentiam saudades da terra que eles negavam o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe…
E se lá havia pão para todos! Mal tínhamos acabado de terminar dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d’água. Era um êxodo de desgrana e susto. Que iriam, encontrar ali?!...
Algumas encomendas desde há muito; outros vencidos, finalmente, pela escassez dos últimos dois anos.- Nunca se viu coisa assim!... A terra parece praguejada.
E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.
Courelas pequenas, onde se desunhavam a trabalhar, passando a mãos estranhas que nunca as tinham apalpado à enxada, logo depois feitas courelas grandes com outras e outras que se lhes juntavam.
  • Excerto 2
Esfalfadas, a arfar, as velhas arrastavam os pés, a quererem acompanhar as outras, e levantavam poeira do carril, com o rebanho de volta à malhada. Vinham com elas as que traziam os filhos ao colo, chupando-lhes os peitos sem viço, e a cachopada mais tenra, mal habituada ainda àqueles trabalhos de galé. Alguns iam conhecer patrão pela primeira vez. Já os tocava, porém, a mesma certeza dos que andavam a vida inteira a labutar sem norte.
De roupas desajeitadas, feitas para os outros, de panamás negros a encoifar-lhes os rostos, onde os olhos assemelhavam vaga-lumes na noite funda que os cobria, embora o Sol andasse nas alturas a chapinhar luz.
Uma velha deixou-se cair no valado, a tossir e a rezar. Os membros aquebrantados pareciam ter-lhe abandonado o corpo e ali ficara sem forças para ir no rastro do rancho.
—... o Senhor é convosco...
Agatanhando as ervas, subiu ao alto do valado e sentou-se, como se ali procurasse refúgio.
Tossiu mais — e rezou ainda.
—... bendito o fruto do vosso ventre...
Espraiou os olhos pela campina fora, mas sentiu-se só. Só como nunca, derribada na alma.
Aqueles troncos, doridos nos estertores do cerne, apareciam-lhe como o espelho da sua própria angústia.
E a velha chorou num pranto manso.
  • Excerto 3
Foram saltando aos camalhões, de braços a bambolear pela fadiga, pernas em cadência frouxa e troncos  engibados  pendidos  à  terra.
As cachopas beliscam-se e riem — mas o seu riso soa a falso.
Levam nos quadris casacos velhos assolapados de remendos que lhes defenderam os rins da brasa do sol. Os rapazes passam agora pelas rãs que chapinham nos charcos e não atiram torrões para as espantar.
As rãs coaxam a sua liberdade.
As flores crescidas nas travessas dobram-se e desfolham-se à passagem do rancho e só a erva unha-gata o defronta, picando as pernas às raparigas. Os ceifeiros que chegam ao carril tiram as caldeiras dos ganchos do cambaricho e sentam -se no chão ou na linha erguida à borda do arrozal.
Já as mulheres que deixaram os filhitos ao abandono por ali os apertam entre os braços e os amimam, beijando-lhes as faces sujas de Terra, amassada com lágrimas. E eles buscam-lhes, com as bocas rebentadas de feridas, onde as moscas pousam e o ranho criou crosta, os peitos escorridos, beliscando-lhes nas blusas a sua fome.
— Ah, raça de cachopo! Dá-lhe de mama, mulher.
— Vai blusa e tudo, se não lhe acodes. Isso é que é um comilão!
A mãe afaga-lhe os cabelitos ralos, tendo nos dedos duros carícias brandas que o fazem pairar e sacudir o corpo em sacões de alegria.
— Ah, rico filho, tu tens fominha, não tens?...
— Come tu, cachopa, que bem no precisas. Se não tens tento na cabeça...
E a mãe tosse, pondo a mão na boca; vêm-lhe às faces afiladas duas rosetas brandas, que se desfazem depois na cera do rosto. Ergue o filho nos braços, como a vê-lo bem , brincando-lhe nos olhos duas gotas que lhes dão mais brilho.
— Ah, meu Zezinho...
E puxa-o de novo a si, beijando-lhe o ventre inchado.
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