Régio, José - Livros Proibidos

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Leitura – Os Dez Dias que Abalaram o Mundo, John Reed

OS BASTIDORES

Em fins de setembro de 1917, um professor de sociologia que percorria a Rússia veio visitar-me em Petrogrado. Os homens de negócios e os intelectuais haviam-lhe garantido que a revolução começara a declinar. O professor acreditou em tais informações e escreveu um artigo sustentando essa opinião. Entretanto, continuou a viajar pelo país, visitando cidades industriais e pequenas aldeias do interior. Com assombro, verificou então que a revolução parecia entrar em nova fase de desenvolvimento. Entre os operários das fábricas e os camponeses pobres ouvia-se frequentemente falar de "todas as terras aos camponeses" e "todas as fábricas aos trabalhadores". Se o professor tivesse visitado as trincheiras, verificaria, também, que os soldados só falavam em paz... O homem ficou aturdido, mas não havia razão para tal. Ambas as observações eram corretas. Na Rússia, as classes dominantes tornavam-se cada vez mais conservadoras, e as massas populares, cada vez mais radicais. Os capitalistas, os negociantes e os intelectuais achavam que a revolução não só já fora demasiado longe, como durara excessivamente... Era essa, também, a opinião dos socialistas "moderados", que dominavam então, e dos sociais-nacionalistas mencheviques e socialistas revolucionários, que apoiavam o Governo Provisório de Kerenski. Em 14 de outubro, o órgão oficial dos socialistas "moderados" escrevia: "O drama da revolução tem dois atos: no primeiro, destrói-se o velho regime; no segundo, cria -se o novo. O primeiro ato já durou muito tempo. Chegou o momento de passarmos, quanto antes, ao segundo. Convém lembrar as palavras de um antigo revolucionário: 'Amigos, precisamos terminar a revolução imediatamente. Aqueles que a prolongam não colhem os seus frutos...'” Entretanto, os trabalhadores, os soldados e os camponeses não pensavam do mesmo modo. Achavam, mesmo, que o "primeiro ato" ainda não havia terminado. Na frente de combate, os comitês do Exército destituíam sem cessar os oficiais que maltratavam os seus subordinados. Na retaguarda, os membros dos comitês agrários, eleitos pelos camponeses, foram encarcerados porque tiveram a "audácia" de pôr em prática os dispositivos governamentais sobre a propriedade da terra. Nas fábricas, os operários lutavam contra as listas negras e os lockouts*. Mas, não era tudo: emigrados políticos que chegavam à Rússia tornavam a ser expulsos do país como "elementos indesejáveis". Houve mesmo casos de pessoas que, voltando para casa, foram presas por terem participado da Revolução de 1905.

*Coligação de patrões que, em resposta à ameaça de greve de seus operários, fecham as suas fábricas. (N. do T.)
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Os bolcheviques constituíam nesse momento um pequeno partido, mas se colocaram, resolutamente, à testa do movimento de julho. O fracasso dessa tentativa sediciosa ergueu a opinião pública reacionária contra eles. Sem chefes, suas tropas retornaram ao bairro de Viborg, o Saint-Antoine de Petrogrado. O governo começou então a caçar os bolcheviques de maneira selvagem, prendendo centenas e centenas de militantes do partido de Lenine, entre os quais Trótski, Kamenev e Aleksandra Kolontai. Lenine e Zinoviev, perseguidos pela justiça, tiveram de se esconder. Os jornais bolcheviques foram proibidos de circular. Reacionários e provocadores espalhavam aos quatro ventos que os bolcheviques eram agentes dos alemães. Gritaram tanto que acabaram sendo ouvidos. Mas o Governo Provisório não conseguiu provar que os bolcheviques serviam como agentes de Guilherme II. Ao contrário, ficou evidenciado que os documentos a respeito da imaginária conspiração pró-Alemanha não passavam de grosseira falsificação. Aos poucos, os bolcheviques foram sendo libertados pelos tribunais, com ou sem fiança e sem julgamento. Só seis permaneceram presos. Evidenciou-se daí por diante, aos olhos de todo mundo, a total impotência e indecisão do governo. Os bolcheviques lançaram, então, novamente, a palavra de ordem "Todo o poder aos sovietes!", tão querida das massas, apesar de, nessa época, a maioria dos sovietes estar nas mãos dos seus encarniçados inimigos, os socialistas "moderados". Os bolcheviques sondaram os desejos do povo. Compreenderam as aspirações elementares e rudes dos trabalhadores, dos soldados, dos operários. Levando-as em conta, elaboraram o seu programa. Os social-patriotas mencheviques, ao contrário, estavam ao lado da burguesia, em íntimo contato com ela, entrando em acordos, firmando compromissos. Em consequência dessa ação, os bolcheviques conquistaram rapidamente as massas da Rússia. Em julho, eram caçados como animais ferozes, insultados, desprezados. Mas, em setembro, os marinheiros da esquadra do Báltico e os soldados já haviam sido conquistados para a sua causa. As eleições realizadas nessa época mostraram isso de modo bem expressivo, pois os mencheviques e os socialistas revolucionários, que, em junho, concentravam setenta por cento dos votos, obtiveram apenas dezoito por cento... Um facto intrigou imensamente os observadores estrangeiros: o Comitê Central Executivo dos Sovietes, os comitês centrais do Exército e da Marinha e a direção central de alguns sindicatos, principalmente dos sindicatos dos Telegrafistas e dos Ferroviários, faziam violenta oposição aos bolcheviques. Contudo, era um fenómeno perfeitamente explicável. Esses comitês haviam sido eleitos no verão anterior, quando os mencheviques e os socialistas revolucionários gozavam de enorme prestígio. Depois, a situação se modificou. Sabendo que não contavam mais com o apoio das massas, esforçavam-se agora para impedir novas eleições ou para retardá-las o mais possível.

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APROXIMA-SE A TEMPESTADE

Esperando tornar-se o ditador da Rússia, em setembro, o General Kornilov marchou sobre Petrogrado. Por trás dele, aparecia o punho armado da burguesia, procurando descaradamente esmagar a revolução. Alguns ministros socialistas estavam, também, ligados à conspiração. Sobre o próprio Kerenski pesavam sérias suspeitas. Savinkov foi chamado pelo comitê central de seu partido, o Partido Socialista Revolucionário, para explicar sua atitude. Negando-se à explicação, foi expulso. Alguns generais e ministros seus aliados foram depostos. Após a queda do gabinete, Kerenski tentou formar novo governo com a participação dos cadetes, o partido da burguesia. Mas o seu partido, o Socialista Revolucionário, exigiu que os cadetes fossem excluídos. Kerenski era contra essa resolução e ameaçou pedir demissão se os socialistas revolucionários insistissem. A agitação popular era tão intensa, porém, que, momentaneamente, não se pôde fazer-lhe oposição. Formou-se, então, um diretório de cinco velhos ministros, encabeçados por Kerenski, que assumiu o poder em caráter provisório, até a solução definitiva do impasse. O golpe de Kornilov colocou todos os grupos socialistas, tanto os moderados como os revolucionários, numa extrema situação de combate. Basta de Kornilov. Devia constituir-se um novo governo que fosse responsável perante todos os elementos que apoiaram a revolução. Resolvido isso, o Tsik convidou as organizações populares a enviar delegados para uma conferência democrática, que se reuniria em setembro, na cidade de Petrogrado. No seio do Tsik nasceram imediatamente três correntes. Os bolcheviques exigiam que se convocasse o Congresso Pan-Russo dos Sovietes, que deveria assenhorear-se do poder. O centro socialista revolucionário, dirigido por Tchernov, ao lado da esquerda socialista revolucionária, dirigida por Kamkov e Spiridonova, dos mencheviques internacionalistas do grupo Martov, do centro menchevique representado por Bogdanov e Skobeliev, pedia um governo socialista puro. Tseretelli, Dan e Lieber, à frente da ala direita menchevique, e a direita socialista revolucionária dirigida por Avksentiev e Gotz, insistiam na participação da burguesia no novo governo. Os bolcheviques conquistaram a maioria dos sovietes, quase simultaneamente em Petrogrado, Moscou, Kiev, Odessa e em outras cidades. Os mencheviques e socialistas revolucionários, senhores do Tsik, alarmados, achavam que, em último caso, Kornilov era um mal menor, em relação a Lenine. O plano da representação na Conferência Democrática foi revisto. Nele foram incluídos em maior número os delegados das cooperativas socialistas e de outras organizações conservadoras. Apesar de tudo, essa assembleia heterogénea votou, desde os primeiros instantes, um governo de coalizão sem os cadetes. Diante da ameaça de Kerenski, de pedir demissão, e da atitude dos socialistas moderados, que gritavam "A República corre perigo", a assembleia resolveu, por pequena maioria, manifestar-se a favor do princípio da coalizão com a burguesia, aprovando a formação de uma espécie de parlamento consultivo, sem nenhum poder legislativo, denominado Conselho Provisório da República Russa. A burguesia, praticamente, dirigia o novo ministério e possuía a maior parte dos votos do Conselho Provisório.

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ÀS VÉSPERAS Nas relações entre um governo fraco e um povo em revolta, há certos momentos em que qualquer ação das autoridades só consegue exasperar as massas e cada recuo ou prova de fraqueza apenas tem como resultado aumentar seu desprezo. O plano de evacuar Petrogrado desencadeou uma tormenta. Quando Kerenski afirmou que não pensava em tal coisa, ergueram-se protestos e ditos zombeteiros. "Pressionado pela revolução", gritava o Rabótchi Put, "o Governo Provisório de burgueses pretende livrar-se do aperto, afirmando mentirosamente que nunca pensou em fugir de Petrogrado, e que não quer entregar a capital... " Em Khárkov, surgiu uma organização de trinta mil mineiros, que adotou o preâmbulo dos estatutos da IWW* . "Não há nada de comum entre a classe trabalhadora e a classe exploradora."

  • Industrial Workers of the World, isto é, operários industriais do mundo: confederação operária fundada em Chicago, em junho de 1905. (N. do E.)

Dispersados pelos cossacos, os mineiros foram, em grande parte, vítimas do lockout dos proprietários. Os restantes declararam greve geral. Konovalov, ministro do Comércio e da Indústria, deu carta branca ao assistente Orlov para dominar o movimento. Orlov era odiado pelos mineiros. Mas o Tsik não só apoiou sua indicação para o cargo, como se recusou a agir no sentido de obrigar os cossacos a se retirarem da bacia do Donetz. Em seguida, foi dissolvido o Soviete de Kaluga, no qual os bolcheviques, depois de terem conquistado a maioria, resolveram decretar a liberdade de alguns presos políticos. Com a aprovação do representante do governo, a Duma Municipal enviou tropas reacionárias a Minsk e bombardeou com a artilharia a sede do soviete. Os bolcheviques renderam-se. Mas, no momento em que abandonavam o edifício, foram atacados pelos cossacos, que investiram contra eles gritando: — É isso que precisamos fazer com todos os outros sovietes bolcheviques, inclusive os de Petrogrado e de Moscovo! — Esse facto levantou em toda a Rússia uma violenta onda de indignação. Justamente nessa ocasião, o Congresso dos Sovietes do Norte realizava em Petrogrado, sob a presidência de Krilenko, a sessão final, onde a quase maioria se pronunciou pela tomada do poder pelo Congresso Pan-Russo. A sessão terminou com uma saudação dirigida aos bolcheviques encarcerados, na qual o congresso os convencia de que deviam alegrar-se porque a hora da libertação se aproximava. Simultaneamente, a Primeira Conferência Russa dos Comitês de Fábrica pronunciou-se, resolutamente, pelos sovietes, fazendo esta declaração categórica: "Depois de derrubar o jugo do czarismo, a classe trabalhadora deve assegurar a vitória do regime democrático na esfera da atividade produtora, vitória essa que tem sua maior expressão no controle operário da produção, que se está constituindo, espontaneamente, em virtude da política criminosa das classes dominantes". O Sindicato dos Ferroviários exigiu que o ministro das Comunicações, Liverovski, pedisse demissão... Skobeliev, em nome do Tsik, insistia para que o nacaz fosse apresentado na Conferência Interaliada e protestou contra a partida de Terestchenko, como delegado do governo, para Paris. Terestchenko, por seu turno, pediu demissão. O General Verkhóvski, na impossibilidade de realizar seu plano de reorganização do Exército, só muito raramente comparecia às reuniões do gabinete.

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A Duma estava em efervescência. Os oficiais iam e vinham. O prefeito conferenciava com os chefes do Comitê de Salvação. Chegou, correndo, um conselheiro com a proclamação de Kerenski, que um avião, voando baixo, havia deixado cair às centenas na Avenida Niévski. Essa proclamação ameaçava com terrível vingança a todos os que se submetessem aos bolcheviques e ordenava aos soldados que depusessem as armas e se concentrassem no Campo de Marte. Disseram-nos que o primeiro-ministro já se havia apoderado de Tsárskoie-Tseló e se encontrava nas proximidades de Petrogrado, a cinco milhas apenas da capital. Devia entrar na cidade no dia seguinte, pela manhã, isto é, algumas horas mais tarde. As tropas soviéticas, que se mantinham em contacto com os cossacos, tinham-se passado para o lado do Governo Provisório. Tchernov estava, não se sabia onde, procurando organizar uma força "neutra", para se colocar entre os dois grupos e impedir a guerra civil. Dizia-se, também, que os regimentos da capital tinham resolvido retirar o apoio aos bolcheviques. O Smólni já estava abandonado... e a máquina governamental não funcionava mais. Os empregados do Banco do Estado negavam-se a trabalhar sob as ordens dos comissários do Smólni e a entregar-lhes qualquer importância em dinheiro. Todos os bancos particulares estavam de portas fechadas. Os funcionários dos ministérios declararam-se em greve. A Duma Municipal nomeara um comitê especial para percorrer as casas comerciais, recolhendo fundos para pagar os grevistas. Trótski, tendo-se apresentado no Comissariado dos Negócios Exteriores para mandar traduzir o decreto sobre a paz nas principais línguas estrangeiras, fora recebido com um pedido de demissão de seiscentos funcionários... Chliápnikov, comissário do Trabalho, ordenara que todos os empregados do seu comissariado voltassem aos seus postos dentro de vinte e quatro horas sob pena de perderem os seus lugares, o direito de aposentadoria, etc. Mas só os serventes obedeceram... Várias seções do Comitê de Abastecimento, para não se submeterem aos bolcheviques, já não estavam funcionando. Apesar das sedutoras promessas de aumento nos salários e de melhorias na situação, os empregados da Central Telefónica não transmitiam as comunicações do quartel-general soviético... O Partido Socialista Revolucionário votara a expulsão dos membros que tinham permanecido no Congresso dos Sovietes ou que participaram da insurreição.

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O AUTOR E SUA OBRA Combateu nas barricadas. A sua arma era o lápis, tal como a do ferreiro, lutando a seu lado, talvez fosse o martelo. Mesmo examinada do ponto de vista jornalístico, a atividade de John Reed foi admirável. Os acontecimentos de uma semana, que os seus colegas considerariam simples lutas episódicas entre os partidos russos, ou incidentes pouco importantes da guerra, foram para John Reed dias que abalaram o mundo. Qualquer outro repórter norte-americano, no seu lugar, teria enviado aos jornais pequenas informações lacónicas, sensacionalistas, sem base, sem explicações, mas cheias de lances dramáticos e horripilantes. John Reed, o jornalista, não se limitou apenas à descrição diária dos acontecimentos. Compreendeu a responsabilidade do seu testemunho perante a história, e, por isso, procurou documentar cada fase da luta, reproduzindo os discursos por inteiro, registando-lhe as decisões. Buscou saber por que motivos as tentativas de acordo fracassaram. Traçou, rapidamente, o perfil dos deputados nos congressos. Disse por quantos votos esta ou aquela proposta foi rejeitada, dando importância enorme a pequeninos pormenores que outros, por certo, julgariam supérfluos. John Reed compreendeu, nitidamente, que não bastava saber quem venceria nessas jornadas de outubro, pois estavam em jogo questões que iriam deixar vestígios profundos e indeléveis na vida da humanidade. Se esses dez dias nada tivessem resolvido, se não houvessem modificado a estrutura do mundo, a obra de Reed, com todas as minúcias objetivas, informações sobre as propostas em votação, sobre os locais onde se passaram os acontecimentos, com as descrições das personagens, etc, mesmo assim seria ainda de enorme interesse, porque nela palpita o entusiasmo apaixonado de um cronista que considera esses dez dias como um período histórico de importância eterna, imortal. Eis por que nenhum pormenor de sua obra é supérfluo e, antes, todos eles são complementos indispensáveis, sem os quais seria impossível reproduzir fielmente o movimento dos atores e o brilho dos combates. Graças justamente a tais minudências é que as suas informações adquirem valor inestimável e se tornam expressão magnífica do mais puro jornalismo clássico.

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