Oliveira, Carlos de - Livro Proibido

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Leitura – Alcateia, Carlos de Oliveira

- Fui a casa de Lourenção matá-lo. Pereira estremeceu, o velho ergueu os olhos devagar: - Quem dera! Leandro emborcou o copo, passou as costas da mão ela bôca e tornou a afirmar, apontando o cacete ensanguentado: - Matei-o! A voz de Leandro foi firme, os seus olhos estavam cobertos de uma névoa de lágrimas. Os outros olharam, o velho cuspiu, dizendo: - Não merece a pena chorar. Pereira ajuntou: - Lourenção andava a pedi-las. Aposto que não tem um padre nosso por alma! O taberneiro foi-se aproximando pra ouvir e o velho pediu: - Mais três, Ventura. A taberna encheu-se de silêncio. Lá fora, o sol de primavera batia na estrada e nas valetas cobertas de relva. Nos campos, o povo lavorava as terras do Covão. Pela porta aberta chegou o mugido de um boi arrastando a carroça carregada de estrume; a cadela Leoa entrou, abanando o rabo, e foi enroscar-se entre as pernas do velho. - Se choro, é com raiva de não poder matá-lo outra vez – disse Leandro. Ventura chegou e poisou os copos na mesa de pinho. A cadela ganiu, o velho passou-lhe a mão de manso pelo focinho. - É do que choro. E Leandro levantou-se bruscamente e saiu, sem mais uma palavra. Pereira quis saber: - Porque seria? O velho continuou a correr os dedos no pelo da cadela e disse por fim: - O homem esteve aqui. Preguntasse-lho. Acabou de beber, afastou o banco para um canto e tronou a sentar-se. Ficou em silêncio, com a Leoa amodorrada aos pés. Lourenção morto! Ali estava no que dava uma vida daquelas: Lourenção, o senhor das terras, dos poisios e da gente do Covão, morto a cacete como um cachorro danado! O velho lembrava-se ainda dêle, farrusco e roído de fome, sem um palmo de chão para cair morto. Os anos que lá iam, santo Deus! Nese tempo, Lourenção falava aos roncos e as sobrancelhas grossas descaiam-lhe a tapar os olhos; só de quando em quando um clarão fugidio aflorava àquelas pálpebras quási cerradas. O povo dizia: - Se topo Lourenção na meia noite de uma azinhaga, morro de susto. E concluía: - Mais tarde ou mais cedo, Lourenção ou mata ou rouba.

                                                                   Alcateia, Carlos de Oliveira










Um dia, Lourenção abalou sem deixar rasto. Foi marchando ao longo de velhos caminhos, pedindo, rachando lenha nos povoados, adormecendo no sótão dos currais e no feno das eiras. Atravessou cordas e cordas de gente, a cumprir aquele destino de cigano, sem a palmada de um amigo nas cotas, sem um sorriso, solitário e bravio. O seu coração secava-se de vez entre descampados e gente estranha. Noites a fio foi companheiro das estrelas e do luar que baixava do céu a ouvir a fome à porta das aldeias. Levava os olhos vermelhos da poeira dos caminhos e guiava os passos pelo fumo dos casais e pelo uivar dos cães. Até que, certo dia, viu do alto de uma fraga terras de Espanha à sua frente; e ali ficou, por não poder passar. Conheceu homens de fala arrevesada e ouviu da sua bôca histórias maravilhosas de sêdas e oiro. Eram caras curtidas pelo sol e pela neve, olhos rápidos e frios de falcão. As vozes serenas e breves, os gestos secos, as terras adustas e geladas, tudo aquilo acordou no peito de Lourenção uma vaga saudade dos seus sítios, mas calcou-a, como quem esmaga a última flor de uma vereda comida de estio. Demais, os ouvidos iam-se habituando à cantilena da montanha onde o vento, lambendo os cerros, parecia falar de guardas fiscais, de perigos, mas sobretudo de pesetas e de oiro; até as rochas cobertas de neve pareciam vestidas de sêda branca trazida das aldeias raianas de Castela. Lourenção percebeu que a sua vida tinha tomado outro rumo. Era ali o “Brasil”, as patacas cavavam-se atravessando aquêle rio e marinhando aquelas serras. Ofereceu-se a um chefe de bando, Perez, e partiu a primeira noite, pouco senhor de si, quási sem forças pra se aguentar nos caminhos de cabras. Esperava a todo o momento ouvir “um quem vem lá” e ver o clarão súbito de um tiro abrir as trevas num laivo de sangue. Mas nada. Passaram naturalmente, como por estradas abertas e em dia claro. Desde essa noite foi ganhando confiança. É certo que tivera mais tarde momentos negros. Mas o calo daquele arrombar de fronteiras tinha endurecido já. Anos depois, Perez foi apanhado a tiro numa crista de Tortosa e despenhou-se de cem metros sobre as últimas escarpa do rio. Ficou desfeito, como se um pêso medonho lhe tivesse rolado por cima. Tornava-se preciso um homem de pulso na direcção do bando. E logo Lourenção se firmou serenamente e disse: - Aqui ninguém mete prego nem estopa. Tomo eu conta disto. Tinha aprendido a conhecer os homens e estava disposto a escavacar o primeiro que lhe negasse aquêle direito. Foi quando Salvaterra, o cigano, se ergueu e negou. Mas Lourenção tinha escrito que escavacava, puxou atrás o braço grosso como um cêpo e descarregou o golpe. Salvaterra vergou-se mas aguentou, e o seu tiro passou a raspar os cabelos de Lourenção. Ali estava Salvaterra perdido! Se tivesse acertado… mas não. Já o outro lhe estava em cima e a mão do braço torcido se abria pra deixar cair o revólver. Lourenção afastou-o para longe, com um pé, e recuou. Mediu num relance a altura da cabeça do cigano e o murro bateu surdamente na fronte do Salvaterra, que rolou como um pêso morto. Lourenção estava eleito, mas quis ter a certeza e preguntou numa voz fria e calma: - Há mais alguém? Não havia, os outros quedaram no mesmo sítio, sem uma fala. Depois, foram anos perigosos mas fartos, foi a fortuna de Lourenção. E quando abandonou pra sempre aquela vida, descendo as serras a caminho de casa, trazia os bolsos cheios e uma alma dura como as fragas que deixava. Chegou, emprestou dinheiro, aceitou hipotecas e, por metade do valor, tornou-se senhor de pinhais, de terras semeadas e de poisios. Tinha começado o seu reinado no Covão. O povo olhava pasmado, preguntando a si próprio se era aquêle o Lourenço doutros tempos, olhava e media a sombra do lôbo caindo no chão de toda a gente, alargando os domínios, saltando impiedosamente sobre os bens alheios. Começou o temor àquele homem, à ganância sem perdão dos seus olhos caídos na courela de quem pedia espera de pagamento: - Fico com a terra. E temos dito. Por uma daquelas, fôra a desgraça de Manuel sancho. Ouviu e ferrou-se em casa, veio a ordem do arresto e disse tristemente: - Daqui só saio morto. E só morto saíu. Sentia-se velho para abandonar aquelas paredes de toda a vida, viu-se sem família, solitário, desgraçado e quando soube que no dia seguinte a guarda viria tirá-lo à força, esperou as horas mortas, amarrou uma corda na viga da cosinha e enforcou-se. Foi todo um mês que a voz do povo bateu à porta de Lourenção: - Desgraçador, maldito!

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Lourenção morrera sem ter deixado herdeiros. O Estado viria tomar conta das suas terras, as coitadas, os plantios, o vinho, passavam às mãos dêsse senhor desconhecido e poderoso. A lei era lei, doesse a quem doesse, dizia o tribunal de Corgos. O povo sentia-se lesado na esperança de reaver aquêle chão; e a revolta começava a crescer dentro de cada peito. Foi quando uma idéia maravilhosa atravessou a cabeça de Vicente Souto. E um dia, chamou o Pereira de lado e contou: - Pois é, nunca abri pio, queria lá passar por parente dêsse maldito! Mas a verdade é esta, embora me custe: sou filho de Lourenção! Pereira abriu a bôca, espantado: - Pode lá ser, rapaz! Vicente continuou: - Vocemecê sabe, a minha mãe… Pereira sabia, toda gente tinha na memória a mocidade de Leocádia Souto. Passou a mão pela cara, começou a pensar. - Uma destas! O rapaz mentiria? Por um lado não era honra pra ninguém ser filho de Lourenção, por outro lado, havia as terras. Leocádia era mulher de todo o mundo, sabia-se lá! Mas podia ter guardado a semente daquela rês. As ideias começaram a baralhar-se e desistiu. - Tens a certeza? - Tenho. Um sorriso aflorou aos lábios do Pereira. Bateu a mão no ombro do moço e disse: - Abençoada noite aquela, Vicente! Mal a tua mãe sabia que rebola e não rebola estava o Brasil a cair-lhe em casa. Grande noite! - Daqui não se sai: nasci de Lourenção e nasci mesmo! A velha acenou que sim e deixou escapar o riso: - Está bem. Mas fica sabendo: com êsse, nunca! Soltou uma gargalhada larga, abanou a cabeça: - Comeste o Pereira, é o que é. E bem comido. - Deixe correr, estamos aqui, estamos em casa de Lourenção.

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- Quem é você? Não esperou por resposta e continuou, apreensivo: - Sim, tenho que ir pra casa. Daqui ao Perboi são três léguas bem puxadas. Levo comigo o dinheiro do negócio e não posso arriscar-me de noite por esse caminho de gândaras. Levou um dedo esticado ao nariz como a pedir segredo, mas de repente exaltou-se de novo e descarregou o punho na mesa: - Quero lá saber que me roubem. Dá-lo a uns ou a outros, tanto faz. Vou mas é beber outra copada. João Santeiro levantou-se e o homem aconselhou: - Fique aqui na boa vinhaça, camarada, deixe lá a pressa. - Ná, tenho que ir indo. Mas o homem da pele enrugada mal escutou, chamava já o taberneiro em voz alta, reclamava mais vinho. João Santeiro aproveitou a ocasião e saiu. Cá fora, a feira continuava, o sol ia ainda alto, a zoada das conversas era como uma voz única, ondeando à flor da multidão, agreste, quási metálica, na crueza da luz e do ar. João Santeiro meteu pela ruela que saía do largo, rente à esquina da taberna; minutos depois, passava as últimas casas de Corgos e embrenhava-se no caminho areento que, através dos pinhais, levava a direito para S. Caetano. Andando, continuava a pensar no homem de pele enrugada e preguntava a si próprio o que havia de fazer. Tinha percebido a desgraça da outro, as dívidas, o desfazer-se de tudo pra pagá-las, levava ainda nos ouvidos a sua voz frouxa e sem esperança. João Santeiro hesitava em mandar saltar os seus homens ao caminho dum desgraçado assim! (…) - Aí estão eles! Quando tentou atravessar a estrada e sumir-se do outro lado, era tarde: deu consigo cercado. Não se tratava já da escuridão contorcendo-se, estava rodeado de gente verdadeira. Ouviu uma voz: - O dinheiro e quieto! Correu a vista pelos assaltantes, sem conseguir distinguir-lhe as feições. Sentiu uma raiva repentina enevoar-lhe os olhos e atirou-se, cambaleando, para a frente. Os seus punhos apanharam a cabeça dum inimigo, rolou com êle por terra e o outro praguejou: - Cachorro! Foi quando Troncho se baixou um pouco e descarregou o punho fechado na cabeça do homem. Venâncio poude desenvencilhar-se e levantou-se. O outro ficara atordoado, ia perdendo rapidamente o entendimento. Sentiu ainda um vómito crescer dolorosamente do fundo de si e o vinho, azêdo e quente, começar a gorgolejar-lhe pela bôca sobre o pó da estrada. Depois, os olhos fecharam-se-lhe contra vontade e desmaiou. Leandro deixou-se ficar um momento olhando o homem derrubado, enquanto os outros se afastavam no pinhal. Chamaram-no de longe. Atravessou a estrada e juntou-se aos companheiros. Venâncio mostrou a carteira: - Pesada, carago! Leandro pensava noutra coisa: - Lá deixámos aquele desgraçado estendido! - Sou assim, disse Troncho, tenho um murro que vale bem a cornada dum boi! E sorriu. Capula seguia na frente, em silêncio. Quando entraram em campo aberto, Venâncio abriu a carteira ao luar, remexeu-a e insistiu: - Desta feita o velho andou com olho. Troncho juntou: - Trabalho bonito, sem sarilhos, sem nada! Coisa dum sôco bem mandado.

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