Difference between revisions of "Oliveira, Carlos de - Livro Proibido"

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Leitura – Alcateia, Carlos de Oliveira
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- Fui a casa de Lourenção matá-lo.
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*'''Carlos de Oliveira''' (1921 - 1981)<br />
Pereira estremeceu, o velho ergueu os olhos devagar:
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Escritor e poeta português nascido no Brasil. Em 1953 publica '''Uma Abelha na Chuva''', que em 1971 também foi filme com o realizador Fernando Lopes. Colaborou nas revistas Altitude, Seara Nova e Vértice, tendo sido diretor desta última. Antifascista militante na Resistência contra a Ditadura do Estado Novo.
- Quem dera!
 
Leandro emborcou o copo, passou as costas da mão ela bôca e tornou a afirmar, apontando o cacete ensanguentado:
 
- Matei-o!
 
A voz de Leandro foi firme, os seus olhos estavam cobertos de uma névoa de lágrimas. Os outros olharam, o velho cuspiu, dizendo:
 
- Não merece a pena chorar.
 
Pereira ajuntou:
 
- Lourenção andava a pedi-las. Aposto que não tem um padre nosso por alma!
 
O taberneiro foi-se aproximando pra ouvir e o velho pediu:
 
- Mais três, Ventura.
 
A taberna encheu-se de silêncio. Lá fora, o sol de primavera batia na estrada e nas valetas cobertas de relva. Nos campos, o povo lavorava as terras do Covão. Pela porta aberta chegou o mugido de um boi arrastando a carroça carregada de estrume; a cadela Leoa entrou, abanando o rabo, e foi enroscar-se entre as pernas do velho.
 
- Se choro, é com raiva de não poder matá-lo outra vez – disse Leandro.
 
Ventura chegou e poisou os copos na mesa de pinho. A cadela ganiu, o velho passou-lhe a mão de manso pelo focinho.
 
- É do que choro.
 
E Leandro levantou-se bruscamente e saiu, sem mais uma palavra. Pereira quis saber:
 
- Porque seria?
 
O velho continuou a correr os dedos no pelo da cadela e disse por fim:
 
- O homem esteve aqui. Preguntasse-lho.
 
Acabou de beber, afastou o banco para um canto e tronou a sentar-se. Ficou em silêncio, com a Leoa amodorrada aos pés. Lourenção morto! Ali estava no que dava uma vida daquelas: Lourenção, o senhor das terras, dos poisios e da gente do Covão, morto a cacete como um cachorro danado! O velho lembrava-se ainda dêle, farrusco e roído de fome, sem um palmo de chão para cair morto. Os anos que lá iam, santo Deus! Nese tempo, Lourenção falava aos roncos e as sobrancelhas grossas descaiam-lhe a tapar os olhos; só de quando em quando um clarão fugidio aflorava àquelas pálpebras quási cerradas.
 
O povo dizia:
 
- Se topo Lourenção na meia noite de uma azinhaga, morro de susto.
 
E concluía:
 
- Mais tarde ou mais cedo, Lourenção ou mata ou rouba.
 
                                                                    Alcateia, Carlos de Oliveira
 
  
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*'''Livro proibido - Alcateia'''<br />
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Editado em 1944, o romance '''Alcateia''' foi alvo de censura e apreendido. Os anos 1945 e seguintes serão, para Carlos de Oliveira, bem profícuos quanto à integração e afirmação no grupo que veicula e [auspera] por um “novo humanismo”, com a participação nas revistas Seara Nova e Vértice.
  
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*'''Excerto 1'''<br />
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- Fui a casa de Lourenção matá-lo.<br />Pereira estremeceu, o velho ergueu os olhos devagar:<br />- Quem dera!<br />Leandro emborcou o copo, passou as costas da mão ela boca e tornou a afirmar, apontando o cacete ensanguentado:<br />- Matei-o!<br />A voz de Leandro foi firme, os seus olhos estavam cobertos de uma névoa de lágrimas. Os outros olharam, o velho cuspiu, dizendo:<br />- Não merece a pena chorar.<br />Pereira ajuntou:<br />- Lourenção andava a pedi-las. Aposto que não tem um padre nosso por alma!<br />O taberneiro foi-se aproximando pra ouvir e o velho pediu:<br />- Mais três, Ventura.<br />A taberna encheu-se de silêncio. Lá fora, o sol de primavera batia na estrada e nas valetas cobertas de relva. Nos campos, o povo lavorava as terras do Covão. Pela porta aberta chegou o mugido de um boi arrastando a carroça carregada de estrume; a cadela Leoa entrou, abanando o rabo, e foi enroscar-se entre as pernas do velho.<br />
  
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*'''Excerto 2'''<br />
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- Se choro, é com raiva de não poder matá-lo outra vez – disse Leandro.<br />Ventura chegou e poisou os copos na mesa de pinho. A cadela ganiu, o velho passou-lhe a mão de manso pelo focinho.<br />- É do que choro.<br />E Leandro levantou-se bruscamente e saiu, sem mais uma palavra. Pereira quis saber:<br />- Porque seria?<br />O velho continuou a correr os dedos no pelo da cadela e disse por fim:<br />- O homem esteve aqui. Preguntasse-lho.<br />Acabou de beber, afastou o banco para um canto e tornou a sentar-se. Ficou em silêncio, com a Leoa amodorrada aos pés. Lourenção morto! Ali estava no que dava uma vida daquelas: Lourenção, o senhor das terras, dos poisios e da gente do Covão, morto a cacete como um cachorro danado! O velho lembrava-se ainda dele, farrusco e roído de fome, sem um palmo de chão para cair morto. Os anos que lá iam, santo Deus! Nesse tempo, Lourenção falava aos roncos e as sobrancelhas grossas descaiam-lhe a tapar os olhos; só de quando em quando um clarão fugidio aflorava àquelas pálpebras quási cerradas.<br />O povo dizia:<br />- Se topo Lourenção na meia noite de uma azinhaga, morro de susto.<br />E concluía:<br />- Mais tarde ou mais cedo, Lourenção ou mata ou rouba.
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*'''Excerto 3''' <br />
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Um dia, Lourenção abalou sem deixar rasto. Foi marchando ao longo de velhos caminhos, pedindo, rachando lenha nos povoados, adormecendo no sótão dos currais e no feno das eiras. Atravessou cordas e cordas de gente, a cumprir aquele destino de cigano, sem a palmada de um amigo nas cotas, sem um sorriso, solitário e bravio. O seu coração secava-se de vez entre descampados e gente estranha. Noites a fio foi companheiro das estrelas e do luar que baixava do céu a ouvir a fome à porta das aldeias. Levava os olhos vermelhos da poeira dos caminhos e guiava os passos pelo fumo dos casais e pelo uivar dos cães.<br />Até que, certo dia, viu do alto de uma fraga terras de Espanha à sua frente; e ali ficou, por não poder passar. Conheceu homens de fala arrevesada e ouviu da sua bôca histórias maravilhosas de sêdas e oiro. Eram caras curtidas pelo sol e pela neve, olhos rápidos e frios de falcão. As vozes serenas e breves, os gestos secos, as terras adustas e geladas, tudo aquilo acordou no peito de Lourenção uma vaga saudade dos seus sítios, mas calcou-a, como quem esmaga a última flor de uma vereda comida de estio. Demais, os ouvidos iam-se habituando à cantilena da montanha onde o vento, lambendo os cerros, parecia falar de guardas fiscais, de perigos, mas sobretudo de pesetas e de oiro; até as rochas cobertas de neve pareciam vestidas de sêda branca trazida das aldeias raianas de Castela.
  
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*'''Excerto 4'''<br />
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Lourenção percebeu que a sua vida tinha tomado outro rumo. Era ali o “Brasil”, as patacas cavavam-se atravessando aquele rio e marinhando aquelas serras. Ofereceu-se a um chefe de bando, Perez, e partiu a primeira noite, pouco senhor de si, quási sem forças pra se aguentar nos caminhos de cabras. Esperava a todo o momento ouvir “um quem vem lá” e ver o clarão súbito de um tiro abrir as trevas num laivo de sangue. Mas nada. Passaram naturalmente, como por estradas abertas e em dia claro. Desde essa noite foi ganhando confiança. É certo que tivera mais tarde momentos negros. Mas o calo daquele arrombar de fronteiras tinha endurecido já.<br />Anos depois, Perez foi apanhado a tiro numa crista de Tortosa e despenhou-se de cem metros sobre as últimas escarpa do rio. Ficou desfeito, como se um peso medonho lhe tivesse rolado por cima.<br />Tornava-se preciso um homem de pulso na direcção do bando. E logo Lourenção se firmou serenamente e disse:<br />- Aqui ninguém mete prego nem estopa. Tomo eu conta disto.
  
  
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*'''Excerto 5'''<br />
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Tinha aprendido a conhecer os homens e estava disposto a escavacar o primeiro que lhe negasse aquele direito. Foi quando Salvaterra, o cigano, se ergueu e negou. Mas Lourenção tinha escrito que escavacava, puxou atrás o braço grosso como um cepo e descarregou o golpe. Salvaterra vergou-se mas aguentou, e o seu tiro passou a raspar os cabelos de Lourenção. Ali estava Salvaterra perdido! Se tivesse acertado… mas não. Já o outro lhe estava em cima e a mão do braço torcido se abria pra deixar cair o revólver. Lourenção afastou-o para longe, com um pé, e recuou. Mediu num relance a altura da cabeça do cigano e o murro bateu surdamente na fronte do Salvaterra, que rolou como um peso morto.<br />Lourenção estava eleito, mas quis ter a certeza e perguntou numa voz fria e calma:<br />- Há mais alguém?<br />Não havia, os outros quedaram no mesmo sítio, sem uma fala.
  
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*'''Excerto 6''' <br />
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Depois, foram anos perigosos mas fartos, foi a fortuna de Lourenção. E quando abandonou pra sempre aquela vida, descendo as serras a caminho de casa, trazia os bolsos cheios e uma alma dura como as fragas que deixava.<br />Chegou, emprestou dinheiro, aceitou hipotecas e, por metade do valor, tornou-se senhor de pinhais, de terras semeadas e de poisios. Tinha começado o seu reinado no Covão. O povo olhava pasmado, perguntando a si próprio se era aquele o Lourenço doutros tempos, olhava e media a sombra do lobo caindo no chão de toda a gente, alargando os domínios, saltando impiedosamente sobre os bens alheios. Começou o temor àquele homem, à ganância sem perdão dos seus olhos caídos na courela de quem pedia espera de pagamento:<br />- Fico com a terra. E temos dito.<br />Por uma daquelas, fora a desgraça de Manuel Sancho. Ouviu e ferrou-se em casa, veio a ordem do arresto e disse tristemente:<br />- Daqui só saio morto.<br />E só morto saíu. Sentia-se velho para abandonar aquelas paredes de toda a vida, viu-se sem família, solitário, desgraçado e quando soube que no dia seguinte a guarda viria tirá-lo à força, esperou as horas mortas, amarrou uma corda na viga da cozinha e enforcou-se. Foi todo um mês que a voz do povo bateu à porta de Lourenção:<br />- Desgraçador, maldito!
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*'''Excerto 7'''<br />
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Lourenção morrera sem ter deixado herdeiros. O Estado viria tomar conta das suas terras, as coitadas, os plantios, o vinho, passavam às mãos desse senhor desconhecido e poderoso. A lei era lei, doesse a quem doesse, dizia o tribunal de Corgos. O povo sentia-se lesado na esperança de reaver aquele chão; e a revolta começava a crescer dentro de cada peito. Foi quando uma ideia maravilhosa atravessou a cabeça de Vicente Souto. E um dia, chamou o Pereira de lado e contou:<br />- Pois é, nunca abri pio, queria lá passar por parente desse maldito! Mas a verdade é esta, embora me custe: sou filho de Lourenção!<br />Pereira abriu a boca, espantado:<br />- Pode lá ser, rapaz!<br />Vicente continuou:<br />- Vossemecê sabe, a minha mãe…
  
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*'''Excerto 8'''<br />
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Pereira sabia, toda gente tinha na memória a mocidade de Leocádia Souto. Passou a mão pela cara, começou a pensar.<br />- Uma destas!<br />O rapaz mentiria? Por um lado não era honra pra ninguém ser filho de Lourenção, por outro lado, havia as terras. Leocádia era mulher de todo o mundo, sabia-se lá! Mas podia ter guardado a semente daquela rês. As ideias começaram a baralhar-se e desistiu.<br />- Tens a certeza?<br />- Tenho.<br />Um sorriso aflorou aos lábios do Pereira. Bateu a mão no ombro do moço e disse:<br />- Abençoada noite aquela, Vicente! Mal a tua mãe sabia que rebola e não rebola estava o Brasil a cair-lhe em casa. Grande noite!<br />- Daqui não se sai: nasci de Lourenção e nasci mesmo!<br />A velha acenou que sim e deixou escapar o riso:<br />- Está bem. Mas fica sabendo: com esse, nunca!<br />Soltou uma gargalhada larga, abanou a cabeça:<br />- Comeste o Pereira, é o que é. E bem comido.<br />- Deixe correr, estamos aqui, estamos em casa de Lourenção.
  
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*'''Excerto 9'''<br />                                                                               
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- Quem é você?<br />Não esperou por resposta e continuou, apreensivo:<br />- Sim, tenho que ir pra casa. Daqui ao Perboi são três léguas bem puxadas. Levo comigo o dinheiro do negócio e não posso arriscar-me de noite por esse caminho de gândaras.<br />Levou um dedo esticado ao nariz como a pedir segredo, mas de repente exaltou-se de novo e descarregou o punho na mesa:<br />- Quero lá saber que me roubem. Dá-lo a uns ou a outros, tanto faz. Vou mas é beber outra copada.<br />João Santeiro levantou-se e o homem aconselhou:<br />- Fique aqui na boa vinhaça, camarada, deixe lá a pressa.<br />- Ná, tenho que ir indo.<br />Mas o homem da pele enrugada mal escutou, chamava já o taberneiro em voz alta, reclamava mais vinho. João Santeiro aproveitou a ocasião e saiu. Cá fora, a feira continuava, o sol ia ainda alto, a zoada das conversas era como uma voz única, ondeando à flor da multidão, agreste, quasi metálica, na crueza da luz e do ar. João Santeiro meteu pela ruela que saía do largo, rente à esquina da taberna; minutos depois, passava as últimas casas de Corgos e embrenhava-se no caminho areento que, através dos pinhais, levava a direito para S. Caetano. Andando, continuava a pensar no homem de pele enrugada e perguntava a si próprio o que havia de fazer. Tinha percebido a desgraça da outro, as dívidas, o desfazer-se de tudo pra pagá-las, levava ainda nos ouvidos a sua voz frouxa e sem esperança. João Santeiro hesitava em mandar saltar os seus homens ao caminho dum desgraçado assim!
  
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*'''Excerto 10''' <br />
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- Aí estão eles!<br />Quando tentou atravessar a estrada e sumir-se do outro lado, era tarde: deu consigo cercado. Não se tratava já da escuridão contorcendo-se, estava rodeado de gente verdadeira. Ouviu uma voz:<br />- O dinheiro e quieto!<br />Correu a vista pelos assaltantes, sem conseguir distinguir-lhe as feições. Sentiu uma raiva repentina enevoar-lhe os olhos e atirou-se, cambaleando, para a frente. Os seus punhos apanharam a cabeça dum inimigo, rolou com êle por terra e o outro praguejou:<br />- Cachorro!<br />Foi quando Troncho se baixou um pouco e descarregou o punho fechado na cabeça do homem. Venâncio pode desenvencilhar-se e levantou-se. O outro ficara atordoado, ia perdendo rapidamente o entendimento. Sentiu ainda um vómito crescer dolorosamente do fundo de si e o vinho, azedo e quente, começar a gorgolejar-lhe pela boca sobre o pó da estrada. Depois, os olhos fecharam-se-lhe contra vontade e desmaiou.<br />Leandro deixou-se ficar um momento olhando o homem derrubado, enquanto os outros se afastavam no pinhal. Chamaram-no de longe. Atravessou a estrada e juntou-se aos companheiros. Venâncio mostrou a carteira:<br />- Pesada, carago!<br />Leandro pensava noutra coisa:<br />- Lá deixámos aquele desgraçado estendido!<br />- Sou assim, disse Troncho, tenho um murro que vale bem a cornada dum boi!<br />E sorriu. Capula seguia na frente, em silêncio. Quando entraram em campo aberto, Venâncio abriu a carteira ao luar, remexeu-a e insistiu:<br />- Desta feita o velho andou com olho.<br />Troncho juntou:<br />Trabalho bonito, sem sarilhos, sem nada! Coisa dum soco bem mandado.
  
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*Para além de excertos do livro censurado transcrevemos também três poemas dos muitos que foram republicados no livro "Obras de Carlos de Oliveira" e que se encontram disponibilizados no site https://viciodapoesia.com/tag/carlos-de-oliveira/<br />
  
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*'''Poema 1''' - '''Infância'''<br />
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Sonhos<br />
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enormes como cedros<br />
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que é preciso<br />
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trazer de longe<br />
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aos ombros<br />
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para achar<br />
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no inverno da memória<br />
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esse rumor<br />
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de lume:<br />
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o teu perfume,<br />
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lenha<br />
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da melancolia.<br />
  
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*'''Poema 2''' - '''Bolor'''<br />
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A pobreza que somos,<br />
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o bolor<br />
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nas paredes<br />
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deste quarto deserto,<br />
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o orvalho da amargura<br />
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na flor<br />
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de cada sonho<br />
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e o leito desmanchado<br />
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o peito aberto<br />
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a que chamaste<br />
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Amor<br />
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*'''Poema 3''' -'''Sono'''<br />
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Dormir<br />
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mas o sonho<br />
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repassa<br />
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duma insistente dor<br />
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a lembrança<br />
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da vida<br />
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água outra vez bebida<br />
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na pobreza da noite:<br />
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e assim perdido<br />
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o sono<br />
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o olvido<br />
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bates, coração, repetes<br />
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sem querer<br />
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o dia.<br />
  
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[[File:Logo25abril50anosleiturascensuradas.png|797px|center]]<br />
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[[File:Wiki-nao-censurada-lapisazul.png|797px|center]]
  
 
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[[Category:25 de Abril]][[Category:Romances Censurados]][[Category:Teatro Censurado]][[Category:Autores Portugueses Censurados]]
 
 
 
 
Um dia, Lourenção abalou sem deixar rasto. Foi marchando ao longo de velhos caminhos, pedindo, rachando lenha nos povoados, adormecendo no sótão dos currais e no feno das eiras. Atravessou cordas e cordas de gente, a cumprir aquele destino de cigano, sem a palmada de um amigo nas cotas, sem um sorriso, solitário e bravio. O seu coração secava-se de vez entre descampados e gente estranha. Noites a fio foi companheiro das estrelas e do luar que baixava do céu a ouvir a fome à porta das aldeias. Levava os olhos vermelhos da poeira dos caminhos e guiava os passos pelo fumo dos casais e pelo uivar dos cães.
 
Até que, certo dia, viu do alto de uma fraga terras de Espanha à sua frente; e ali ficou, por não poder passar. Conheceu homens de fala arrevesada e ouviu da sua bôca histórias maravilhosas de sêdas e oiro. Eram caras curtidas pelo sol e pela neve, olhos rápidos e frios de falcão. As vozes serenas e breves, os gestos secos, as terras adustas e geladas, tudo aquilo acordou no peito de Lourenção uma vaga saudade dos seus sítios, mas calcou-a, como quem esmaga a última flor de uma vereda comida de estio. Demais, os ouvidos iam-se habituando à cantilena da montanha onde o vento, lambendo os cerros, parecia falar de guardas fiscais, de perigos, mas sobretudo de pesetas e de oiro; até as rochas cobertas de neve pareciam vestidas de sêda branca trazida das aldeias raianas de Castela. Lourenção percebeu que a sua vida tinha tomado outro rumo. Era ali o “Brasil”, as patacas cavavam-se atravessando aquêle rio e marinhando aquelas serras. Ofereceu-se a um chefe de bando, Perez, e partiu a primeira noite, pouco senhor de si, quási sem forças pra se aguentar nos caminhos de cabras. Esperava a todo o momento ouvir “um quem vem lá” e ver o clarão súbito de um tiro abrir as trevas num laivo de sangue. Mas nada. Passaram naturalmente, como por estradas abertas e em dia claro. Desde essa noite foi ganhando confiança. É certo que tivera mais tarde momentos negros. Mas o calo daquele arrombar de fronteiras tinha endurecido já.
 
Anos depois, Perez foi apanhado a tiro numa crista de Tortosa e despenhou-se de cem metros sobre as últimas escarpa do rio. Ficou desfeito, como se um pêso medonho lhe tivesse rolado por cima.
 
Tornava-se preciso um homem de pulso na direcção do bando. E logo Lourenção se firmou serenamente e disse:
 
- Aqui ninguém mete prego nem estopa. Tomo eu conta disto.
 
Tinha aprendido a conhecer os homens e estava disposto a escavacar o primeiro que lhe negasse aquêle direito. Foi quando Salvaterra, o cigano, se ergueu e negou. Mas Lourenção tinha escrito que escavacava, puxou atrás o braço grosso como um cêpo e descarregou o golpe. Salvaterra vergou-se mas aguentou, e o seu tiro passou a raspar os cabelos de Lourenção. Ali estava Salvaterra perdido! Se tivesse acertado… mas não. Já o outro lhe estava em cima e a mão do braço torcido se abria pra deixar cair o revólver. Lourenção afastou-o para longe, com um pé, e recuou. Mediu num relance a altura da cabeça do cigano e o murro bateu surdamente na fronte do Salvaterra, que rolou como um pêso morto.
 
Lourenção estava eleito, mas quis ter a certeza e preguntou numa voz fria e calma:
 
- Há mais alguém?
 
Não havia, os outros quedaram no mesmo sítio, sem uma fala.
 
Depois, foram anos perigosos mas fartos, foi a fortuna de Lourenção. E quando abandonou pra sempre aquela vida, descendo as serras a caminho de casa, trazia os bolsos cheios e uma alma dura como as fragas que deixava.
 
Chegou, emprestou dinheiro, aceitou hipotecas e, por metade do valor, tornou-se senhor de pinhais, de terras semeadas e de poisios. Tinha começado o seu reinado no Covão. O povo olhava pasmado, preguntando a si próprio se era aquêle o Lourenço doutros tempos, olhava e media a sombra do lôbo caindo no chão de toda a gente, alargando os domínios, saltando impiedosamente sobre os bens alheios. Começou o temor àquele homem, à ganância sem perdão dos seus olhos caídos na courela de quem pedia espera de pagamento:
 
- Fico com a terra. E temos dito.
 
Por uma daquelas, fôra a desgraça de Manuel sancho. Ouviu e ferrou-se em casa, veio a ordem do arresto e disse tristemente:
 
- Daqui só saio morto.
 
E só morto saíu. Sentia-se velho para abandonar aquelas paredes de toda a vida, viu-se sem família, solitário, desgraçado e quando soube que no dia seguinte a guarda viria tirá-lo à força, esperou as horas mortas, amarrou uma corda na viga da cosinha e enforcou-se. Foi todo um mês que a voz do povo bateu à porta de Lourenção:
 
- Desgraçador, maldito!
 
                                                                                  Alcateia, Carlos de Oliveira
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Lourenção morrera sem ter deixado herdeiros. O Estado viria tomar conta das suas terras, as coitadas, os plantios, o vinho, passavam às mãos dêsse senhor desconhecido e poderoso. A lei era lei, doesse a quem doesse, dizia o tribunal de Corgos. O povo sentia-se lesado na esperança de reaver aquêle chão; e a revolta começava a crescer dentro de cada peito. Foi quando uma idéia maravilhosa atravessou a cabeça de Vicente Souto. E um dia, chamou o Pereira de lado e contou:
 
- Pois é, nunca abri pio, queria lá passar por parente dêsse maldito! Mas a verdade é esta, embora me custe: sou filho de Lourenção!
 
Pereira abriu a bôca, espantado:
 
- Pode lá ser, rapaz!
 
Vicente continuou:
 
- Vocemecê sabe, a minha mãe…
 
Pereira sabia, toda gente tinha na memória a mocidade de Leocádia Souto. Passou a mão pela cara, começou a pensar.
 
- Uma destas!
 
O rapaz mentiria? Por um lado não era honra pra ninguém ser filho de Lourenção, por outro lado, havia as terras. Leocádia era mulher de todo o mundo, sabia-se lá! Mas podia ter guardado a semente daquela rês. As ideias começaram a baralhar-se e desistiu.
 
- Tens a certeza?
 
- Tenho.
 
Um sorriso aflorou aos lábios do Pereira. Bateu a mão no ombro do moço e disse:
 
- Abençoada noite aquela, Vicente! Mal a tua mãe sabia que rebola e não rebola estava o Brasil a cair-lhe em casa. Grande noite!
 
- Daqui não se sai: nasci de Lourenção e nasci mesmo!
 
A velha acenou que sim e deixou escapar o riso:
 
- Está bem. Mas fica sabendo: com êsse, nunca!
 
Soltou uma gargalhada larga, abanou a cabeça:
 
- Comeste o Pereira, é o que é. E bem comido.
 
- Deixe correr, estamos aqui, estamos em casa de Lourenção.
 
 
 
                                                                                  Alcateia, Carlos de Oliveira
 
 
 
 
 
- Quem é você?
 
Não esperou por resposta e continuou, apreensivo:
 
- Sim, tenho que ir pra casa. Daqui ao Perboi são três léguas bem puxadas. Levo comigo o dinheiro do negócio e não posso arriscar-me de noite por esse caminho de gândaras.
 
Levou um dedo esticado ao nariz como a pedir segredo, mas de repente exaltou-se de novo e descarregou o punho na mesa:
 
- Quero lá saber que me roubem. Dá-lo a uns ou a outros, tanto faz. Vou mas é beber outra copada.
 
João Santeiro levantou-se e o homem aconselhou:
 
- Fique aqui na boa vinhaça, camarada, deixe lá a pressa.
 
- Ná, tenho que ir indo.
 
Mas o homem da pele enrugada mal escutou, chamava já o taberneiro em voz alta, reclamava mais vinho. João Santeiro aproveitou a ocasião e saiu. Cá fora, a feira continuava, o sol ia ainda alto, a zoada das conversas era como uma voz única, ondeando à flor da multidão, agreste, quási metálica, na crueza da luz e do ar. João Santeiro meteu pela ruela que saía do largo, rente à esquina da taberna; minutos depois, passava as últimas casas de Corgos e embrenhava-se no caminho areento que, através dos pinhais, levava a direito para S. Caetano. Andando, continuava a pensar no homem de pele enrugada e preguntava a si próprio o que havia de fazer. Tinha percebido a desgraça da outro, as dívidas, o desfazer-se de tudo pra pagá-las, levava ainda nos ouvidos a sua voz frouxa e sem esperança. João Santeiro hesitava em mandar saltar os seus homens ao caminho dum desgraçado assim!
 
(…)
 
- Aí estão eles!
 
Quando tentou atravessar a estrada e sumir-se do outro lado, era tarde: deu consigo cercado. Não se tratava já da escuridão contorcendo-se, estava rodeado de gente verdadeira. Ouviu uma voz:
 
- O dinheiro e quieto!
 
Correu a vista pelos assaltantes, sem conseguir distinguir-lhe as feições. Sentiu uma raiva repentina enevoar-lhe os olhos e atirou-se, cambaleando, para a frente. Os seus punhos apanharam a cabeça dum inimigo, rolou com êle por terra e o outro praguejou:
 
- Cachorro!
 
Foi quando Troncho se baixou um pouco e descarregou o punho fechado na cabeça do homem. Venâncio poude desenvencilhar-se e levantou-se. O outro ficara atordoado, ia perdendo rapidamente o entendimento. Sentiu ainda um vómito crescer dolorosamente do fundo de si e o vinho, azêdo e quente, começar a gorgolejar-lhe pela bôca sobre o pó da estrada. Depois, os olhos fecharam-se-lhe contra vontade e desmaiou.
 
Leandro deixou-se ficar um momento olhando o homem derrubado, enquanto os outros se afastavam no pinhal. Chamaram-no de longe. Atravessou a estrada e juntou-se aos companheiros. Venâncio mostrou a carteira:
 
- Pesada, carago!
 
Leandro pensava noutra coisa:
 
- Lá deixámos aquele desgraçado estendido!
 
- Sou assim, disse Troncho, tenho um murro que vale bem a cornada dum boi!
 
E sorriu. Capula seguia na frente, em silêncio. Quando entraram em campo aberto, Venâncio abriu a carteira ao luar, remexeu-a e insistiu:
 
- Desta feita o velho andou com olho.
 
Troncho juntou:
 
- Trabalho bonito, sem sarilhos, sem nada! Coisa dum sôco bem mandado.
 
                                                                                  Alcateia, Carlos de Oliveira
 

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  • Carlos de Oliveira (1921 - 1981)

Escritor e poeta português nascido no Brasil. Em 1953 publica Uma Abelha na Chuva, que em 1971 também foi filme com o realizador Fernando Lopes. Colaborou nas revistas Altitude, Seara Nova e Vértice, tendo sido diretor desta última. Antifascista militante na Resistência contra a Ditadura do Estado Novo.

  • Livro proibido - Alcateia

Editado em 1944, o romance Alcateia foi alvo de censura e apreendido. Os anos 1945 e seguintes serão, para Carlos de Oliveira, bem profícuos quanto à integração e afirmação no grupo que veicula e [auspera] por um “novo humanismo”, com a participação nas revistas Seara Nova e Vértice.

  • Excerto 1
- Fui a casa de Lourenção matá-lo.
Pereira estremeceu, o velho ergueu os olhos devagar:
- Quem dera!
Leandro emborcou o copo, passou as costas da mão ela boca e tornou a afirmar, apontando o cacete ensanguentado:
- Matei-o!
A voz de Leandro foi firme, os seus olhos estavam cobertos de uma névoa de lágrimas. Os outros olharam, o velho cuspiu, dizendo:
- Não merece a pena chorar.
Pereira ajuntou:
- Lourenção andava a pedi-las. Aposto que não tem um padre nosso por alma!
O taberneiro foi-se aproximando pra ouvir e o velho pediu:
- Mais três, Ventura.
A taberna encheu-se de silêncio. Lá fora, o sol de primavera batia na estrada e nas valetas cobertas de relva. Nos campos, o povo lavorava as terras do Covão. Pela porta aberta chegou o mugido de um boi arrastando a carroça carregada de estrume; a cadela Leoa entrou, abanando o rabo, e foi enroscar-se entre as pernas do velho.
  • Excerto 2
- Se choro, é com raiva de não poder matá-lo outra vez – disse Leandro.
Ventura chegou e poisou os copos na mesa de pinho. A cadela ganiu, o velho passou-lhe a mão de manso pelo focinho.
- É do que choro.
E Leandro levantou-se bruscamente e saiu, sem mais uma palavra. Pereira quis saber:
- Porque seria?
O velho continuou a correr os dedos no pelo da cadela e disse por fim:
- O homem esteve aqui. Preguntasse-lho.
Acabou de beber, afastou o banco para um canto e tornou a sentar-se. Ficou em silêncio, com a Leoa amodorrada aos pés. Lourenção morto! Ali estava no que dava uma vida daquelas: Lourenção, o senhor das terras, dos poisios e da gente do Covão, morto a cacete como um cachorro danado! O velho lembrava-se ainda dele, farrusco e roído de fome, sem um palmo de chão para cair morto. Os anos que lá iam, santo Deus! Nesse tempo, Lourenção falava aos roncos e as sobrancelhas grossas descaiam-lhe a tapar os olhos; só de quando em quando um clarão fugidio aflorava àquelas pálpebras quási cerradas.
O povo dizia:
- Se topo Lourenção na meia noite de uma azinhaga, morro de susto.
E concluía:
- Mais tarde ou mais cedo, Lourenção ou mata ou rouba.
  • Excerto 3
Um dia, Lourenção abalou sem deixar rasto. Foi marchando ao longo de velhos caminhos, pedindo, rachando lenha nos povoados, adormecendo no sótão dos currais e no feno das eiras. Atravessou cordas e cordas de gente, a cumprir aquele destino de cigano, sem a palmada de um amigo nas cotas, sem um sorriso, solitário e bravio. O seu coração secava-se de vez entre descampados e gente estranha. Noites a fio foi companheiro das estrelas e do luar que baixava do céu a ouvir a fome à porta das aldeias. Levava os olhos vermelhos da poeira dos caminhos e guiava os passos pelo fumo dos casais e pelo uivar dos cães.
Até que, certo dia, viu do alto de uma fraga terras de Espanha à sua frente; e ali ficou, por não poder passar. Conheceu homens de fala arrevesada e ouviu da sua bôca histórias maravilhosas de sêdas e oiro. Eram caras curtidas pelo sol e pela neve, olhos rápidos e frios de falcão. As vozes serenas e breves, os gestos secos, as terras adustas e geladas, tudo aquilo acordou no peito de Lourenção uma vaga saudade dos seus sítios, mas calcou-a, como quem esmaga a última flor de uma vereda comida de estio. Demais, os ouvidos iam-se habituando à cantilena da montanha onde o vento, lambendo os cerros, parecia falar de guardas fiscais, de perigos, mas sobretudo de pesetas e de oiro; até as rochas cobertas de neve pareciam vestidas de sêda branca trazida das aldeias raianas de Castela.
  • Excerto 4
Lourenção percebeu que a sua vida tinha tomado outro rumo. Era ali o “Brasil”, as patacas cavavam-se atravessando aquele rio e marinhando aquelas serras. Ofereceu-se a um chefe de bando, Perez, e partiu a primeira noite, pouco senhor de si, quási sem forças pra se aguentar nos caminhos de cabras. Esperava a todo o momento ouvir “um quem vem lá” e ver o clarão súbito de um tiro abrir as trevas num laivo de sangue. Mas nada. Passaram naturalmente, como por estradas abertas e em dia claro. Desde essa noite foi ganhando confiança. É certo que tivera mais tarde momentos negros. Mas o calo daquele arrombar de fronteiras tinha endurecido já.
Anos depois, Perez foi apanhado a tiro numa crista de Tortosa e despenhou-se de cem metros sobre as últimas escarpa do rio. Ficou desfeito, como se um peso medonho lhe tivesse rolado por cima.
Tornava-se preciso um homem de pulso na direcção do bando. E logo Lourenção se firmou serenamente e disse:
- Aqui ninguém mete prego nem estopa. Tomo eu conta disto.


  • Excerto 5
Tinha aprendido a conhecer os homens e estava disposto a escavacar o primeiro que lhe negasse aquele direito. Foi quando Salvaterra, o cigano, se ergueu e negou. Mas Lourenção tinha escrito que escavacava, puxou atrás o braço grosso como um cepo e descarregou o golpe. Salvaterra vergou-se mas aguentou, e o seu tiro passou a raspar os cabelos de Lourenção. Ali estava Salvaterra perdido! Se tivesse acertado… mas não. Já o outro lhe estava em cima e a mão do braço torcido se abria pra deixar cair o revólver. Lourenção afastou-o para longe, com um pé, e recuou. Mediu num relance a altura da cabeça do cigano e o murro bateu surdamente na fronte do Salvaterra, que rolou como um peso morto.
Lourenção estava eleito, mas quis ter a certeza e perguntou numa voz fria e calma:
- Há mais alguém?
Não havia, os outros quedaram no mesmo sítio, sem uma fala.
  • Excerto 6
Depois, foram anos perigosos mas fartos, foi a fortuna de Lourenção. E quando abandonou pra sempre aquela vida, descendo as serras a caminho de casa, trazia os bolsos cheios e uma alma dura como as fragas que deixava.
Chegou, emprestou dinheiro, aceitou hipotecas e, por metade do valor, tornou-se senhor de pinhais, de terras semeadas e de poisios. Tinha começado o seu reinado no Covão. O povo olhava pasmado, perguntando a si próprio se era aquele o Lourenço doutros tempos, olhava e media a sombra do lobo caindo no chão de toda a gente, alargando os domínios, saltando impiedosamente sobre os bens alheios. Começou o temor àquele homem, à ganância sem perdão dos seus olhos caídos na courela de quem pedia espera de pagamento:
- Fico com a terra. E temos dito.
Por uma daquelas, fora a desgraça de Manuel Sancho. Ouviu e ferrou-se em casa, veio a ordem do arresto e disse tristemente:
- Daqui só saio morto.
E só morto saíu. Sentia-se velho para abandonar aquelas paredes de toda a vida, viu-se sem família, solitário, desgraçado e quando soube que no dia seguinte a guarda viria tirá-lo à força, esperou as horas mortas, amarrou uma corda na viga da cozinha e enforcou-se. Foi todo um mês que a voz do povo bateu à porta de Lourenção:
- Desgraçador, maldito!
  • Excerto 7
Lourenção morrera sem ter deixado herdeiros. O Estado viria tomar conta das suas terras, as coitadas, os plantios, o vinho, passavam às mãos desse senhor desconhecido e poderoso. A lei era lei, doesse a quem doesse, dizia o tribunal de Corgos. O povo sentia-se lesado na esperança de reaver aquele chão; e a revolta começava a crescer dentro de cada peito. Foi quando uma ideia maravilhosa atravessou a cabeça de Vicente Souto. E um dia, chamou o Pereira de lado e contou:
- Pois é, nunca abri pio, queria lá passar por parente desse maldito! Mas a verdade é esta, embora me custe: sou filho de Lourenção!
Pereira abriu a boca, espantado:
- Pode lá ser, rapaz!
Vicente continuou:
- Vossemecê sabe, a minha mãe…
  • Excerto 8
Pereira sabia, toda gente tinha na memória a mocidade de Leocádia Souto. Passou a mão pela cara, começou a pensar.
- Uma destas!
O rapaz mentiria? Por um lado não era honra pra ninguém ser filho de Lourenção, por outro lado, havia as terras. Leocádia era mulher de todo o mundo, sabia-se lá! Mas podia ter guardado a semente daquela rês. As ideias começaram a baralhar-se e desistiu.
- Tens a certeza?
- Tenho.
Um sorriso aflorou aos lábios do Pereira. Bateu a mão no ombro do moço e disse:
- Abençoada noite aquela, Vicente! Mal a tua mãe sabia que rebola e não rebola estava o Brasil a cair-lhe em casa. Grande noite!
- Daqui não se sai: nasci de Lourenção e nasci mesmo!
A velha acenou que sim e deixou escapar o riso:
- Está bem. Mas fica sabendo: com esse, nunca!
Soltou uma gargalhada larga, abanou a cabeça:
- Comeste o Pereira, é o que é. E bem comido.
- Deixe correr, estamos aqui, estamos em casa de Lourenção.
  • Excerto 9
- Quem é você?
Não esperou por resposta e continuou, apreensivo:
- Sim, tenho que ir pra casa. Daqui ao Perboi são três léguas bem puxadas. Levo comigo o dinheiro do negócio e não posso arriscar-me de noite por esse caminho de gândaras.
Levou um dedo esticado ao nariz como a pedir segredo, mas de repente exaltou-se de novo e descarregou o punho na mesa:
- Quero lá saber que me roubem. Dá-lo a uns ou a outros, tanto faz. Vou mas é beber outra copada.
João Santeiro levantou-se e o homem aconselhou:
- Fique aqui na boa vinhaça, camarada, deixe lá a pressa.
- Ná, tenho que ir indo.
Mas o homem da pele enrugada mal escutou, chamava já o taberneiro em voz alta, reclamava mais vinho. João Santeiro aproveitou a ocasião e saiu. Cá fora, a feira continuava, o sol ia ainda alto, a zoada das conversas era como uma voz única, ondeando à flor da multidão, agreste, quasi metálica, na crueza da luz e do ar. João Santeiro meteu pela ruela que saía do largo, rente à esquina da taberna; minutos depois, passava as últimas casas de Corgos e embrenhava-se no caminho areento que, através dos pinhais, levava a direito para S. Caetano. Andando, continuava a pensar no homem de pele enrugada e perguntava a si próprio o que havia de fazer. Tinha percebido a desgraça da outro, as dívidas, o desfazer-se de tudo pra pagá-las, levava ainda nos ouvidos a sua voz frouxa e sem esperança. João Santeiro hesitava em mandar saltar os seus homens ao caminho dum desgraçado assim!
  • Excerto 10
- Aí estão eles!
Quando tentou atravessar a estrada e sumir-se do outro lado, era tarde: deu consigo cercado. Não se tratava já da escuridão contorcendo-se, estava rodeado de gente verdadeira. Ouviu uma voz:
- O dinheiro e quieto!
Correu a vista pelos assaltantes, sem conseguir distinguir-lhe as feições. Sentiu uma raiva repentina enevoar-lhe os olhos e atirou-se, cambaleando, para a frente. Os seus punhos apanharam a cabeça dum inimigo, rolou com êle por terra e o outro praguejou:
- Cachorro!
Foi quando Troncho se baixou um pouco e descarregou o punho fechado na cabeça do homem. Venâncio pode desenvencilhar-se e levantou-se. O outro ficara atordoado, ia perdendo rapidamente o entendimento. Sentiu ainda um vómito crescer dolorosamente do fundo de si e o vinho, azedo e quente, começar a gorgolejar-lhe pela boca sobre o pó da estrada. Depois, os olhos fecharam-se-lhe contra vontade e desmaiou.
Leandro deixou-se ficar um momento olhando o homem derrubado, enquanto os outros se afastavam no pinhal. Chamaram-no de longe. Atravessou a estrada e juntou-se aos companheiros. Venâncio mostrou a carteira:
- Pesada, carago!
Leandro pensava noutra coisa:
- Lá deixámos aquele desgraçado estendido!
- Sou assim, disse Troncho, tenho um murro que vale bem a cornada dum boi!
E sorriu. Capula seguia na frente, em silêncio. Quando entraram em campo aberto, Venâncio abriu a carteira ao luar, remexeu-a e insistiu:
- Desta feita o velho andou com olho.
Troncho juntou:
Trabalho bonito, sem sarilhos, sem nada! Coisa dum soco bem mandado.
  • Poema 1 - Infância

Sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
esse rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.

  • Poema 2 - Bolor

A pobreza que somos,
o bolor
nas paredes
deste quarto deserto,
o orvalho da amargura
na flor
de cada sonho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
Amor

  • Poema 3 -Sono

Dormir
mas o sonho
repassa
duma insistente dor
a lembrança
da vida
água outra vez bebida
na pobreza da noite:
e assim perdido
o sono
o olvido
bates, coração, repetes
sem querer
o dia.

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