Difference between revisions of "Namora, Fernando - Livros Proibidos"

From Wikipédia de Autores Algarvios
Jump to: navigation, search
Line 1: Line 1:
 
[[File:FernandoNamora-Fotog.jpg|201px]] [[File:Domingolivro.jpg|161px]] [[File:CensuraDomingoatarde.png|198px]]
 
[[File:FernandoNamora-Fotog.jpg|201px]] [[File:Domingolivro.jpg|161px]] [[File:CensuraDomingoatarde.png|198px]]
*Fernando Namora (1919 – 1989)
+
*Fernando Namora (1919 – 1989)<br />
 
+
Médico, escritor e poeta. Em 1981, foi proposto para o Prémio Nobel da Literatura, pela Academia das Ciências de Lisboa. Médico-escritor de grande sucesso, autor de livros adaptados à televisão como Retalhos da Vida de Um Médico.Fernando Namora lutou contra a Censura ao longo de todo o período do Estado Novo, ficando para a história, à luz dos seus processos na PIDE, a sua participação nos principais protestos levados a cabo pelos intelectuais portugueses.
Médico, escritor e poeta. Em 1981, foi proposto para o Prémio Nobel da Literatura, pela Academia das Ciências de Lisboa. Médico-escritor de grande sucesso, autor de livros adaptados à televisão como Retalhos da Vida de Um Médico.Fernando Namora lutou contra a Censura ao longo de todo o período do Estado Novo, ficando para a história, à luz dos seus processos na PIDE, a sua participação nos principais protestos levados a cabo pelos intelectuais portugueses.
 
  
 
*Livro proibido - '''Domingo à Tarde'''<br />
 
*Livro proibido - '''Domingo à Tarde'''<br />
O livro de Fernando Namora, '''''Domingo à Tarde''''', revela a importância da relação médico-doente não só para o bem-estar do doente, mas também para a evolução e aperfeiçoamento profissional do médico.<br />
+
O livro de Fernando Namora, '''''Domingo à Tarde''''', revela a importância da relação médico-doente não só para o bem-estar do doente, mas também para a evolução e aperfeiçoamento profissional do médico.
 
 
*Excerto 1<br />
 
Nesse tempo, ou já muito antes, era considerado um tipo insociável. Fumava desalmadamente, macerando o cigarro de um canto para o outro da boca, num jeito nervoso nada fácil de imitar, roendo a todo o momento qualquer danação íntima que se traduzia nos modos como fazia crer às pessoas que a presença delas me era insuportável. Tudo me servia para exagerar a brusquidão, talvez porque toda a gente reparasse nela e a censurasse, e a minha rebeldia contra fosse lá o que fosse manifestava-se, provocante, tanto mais quanto os outros a receavam. Era eu a açulá-los ao espectáculo, a colocar-me no centro desta arena improvisada que é a vida. Mas o gozo era meu. Nos outros não admitia, pois é o riso o que particularmente me ofende nos medíocres. Poderiam, enfim, julgar-me um snobe ou um torturado – e nem eu, ao certo, o saberia também. De manhã, a olhar-me no espelho (e eu gostava de me avaliar ao espelho, sobretudo desde que o cabelo fugira lá para trás, deixando desimpedida uma fronte bosselada, onde as veias pareciam vermes assanhados e túrgidos), essa imagem, enjoada, apenas me devolvia um cepticismo agressivo. O mesmo enjoo irritado daqueles meus doentes quando, na fase já desiludida, nos apreciavam como funâmbulos sem talento que insistem numa ridícula e odiosa pantomina.<br />
 
 
 
*Excerto 2<br />
 
Penso ainda, muitas vezes, e apesar de tudo o que se passou, no significado dessas minhas ondas de fastio, arrogância e aspereza. Aspereza gratuita – que se poderia resumir, com mais rigor, nesta palavra que hoje, após os acontecimentos que me fizeram revelar muitas coisas dos outros e de mim próprio, deveria envergonhar-me: exibicionismo. Recusava, por exemplo, as batas de modelo único que distribuíam aos médicos do hospital e que se tiravam do cabide, a olho, consoante a estatura de cada um, como recusava submeter-me aos horários convencionais que disciplinavam os serviços das diferentes consultas. Todo eu me sacudia num risinho secreto, mal aflorado no desdém que me afilava o queixo, se me constava que o chefe da clínica, um sujeito de contumélias tresandando a alfazema e frases adocicadas, soltava guinchos de porquinho-da-índia ao dizerem-lhe que eu me negara espectaculosamente a observar uma dama da alta-roda que se julgara no direito de passar adiante da gente humilde das consultas – um rebanho paciente que se reunia como reses aturdidas à porta pela certeza de que o melado chefe da clínica seria incapaz de repetir os guinchos na minha presença, embora nessa noite ele fosse ter pesadelos com o terror de que a dama badalasse entre a sua tribo que, naquele serviço, se vexavam as pessoas respeitáveis.<br />Tais excentricidades, ou como lhes queiram chamar, porque eram temidas,  tornavam-se uma comodíssima justificação para todos os caprichos que me davam na gana e permitiam-me ser tão independente, azedo e solitário, quanto as vagas de neurastenia o exigiam. A neurastenia e, por fim, a petulância. Agora, que me deu na cabeça contar-vos umas coisas de que não posso orgulhar-me, é bem preferível usar as palavras necessárias. Petulância, pois. De uma vez deixara bem amolgado um tipo qualquer que se arriscara a anavalhar-me a reputação pelas costas, e como toda a gente comentou, com farta imaginação, a sova de cavalo-marinho que lhe dera, a minha fama de selvagem capaz de todos os dislates solidificou-se, solidificando-me, ao mesmo tempo, o prestígio. Porque o fiz? Fi-lo, hoje estou certo disso, não por desagravo, mas por fatuidade.<br />
 
  
*Excerto 3<br />
+
*'''Excerto 1'''<br />
  Um dia e outro dia. Semanas longas e pesadas como numa tarde de domingo. A chuvinha, silenciosa e furtiva, não tinha parança. Era, nas ruas, um espelho trémulo e, cá dentro, um charco de fastio onde os ossos se atolavam. O tempo incidia medularmente na minha disposição. Apenas o tempo?<br />Lembrava-me, nesses dias, estranhamente, de uma frase que lera havia muito: “Fechei a alma num porão.” Em que livro? A que propósito? Fechei a alma num porão. Era uma frase vazia, perdida, uma folha à procura da árvore donde se despegou, mas respondia-me a um estado de espírito igualmente solto das suas raízes.<br />A minha misantropia podia avaliar-se por isto: o Romualdo – sem um interlocutor válido – e ele efectivamente elegera-me seu ouvinte privativo -, acumulara já tantas reservas de congeminações que o seu rosto parecia um tomate empolado. À beira da apoplexia. Mas preferia rebentar a arriscar-se ao meu lúgubre mau humor.<br />
+
  Nesse tempo, ou já muito antes, era considerado um tipo insociável. Fumava desalmadamente, macerando o cigarro de um canto para o outro da boca, num jeito nervoso nada fácil de imitar, roendo a todo o momento qualquer danação íntima que se traduzia nos modos como fazia crer às pessoas que a presença delas me era insuportável. Tudo me servia para exagerar a brusquidão, talvez porque toda a gente reparasse nela e a censurasse, e a minha rebeldia contra fosse lá o que fosse manifestava-se, provocante, tanto mais quanto os outros a receavam. Era eu a açulá-los ao espectáculo, a colocar-me no centro desta arena improvisada que é a vida. Mas o gozo era meu. Nos outros não admitia, pois é o riso o que particularmente me ofende nos medíocres. Poderiam, enfim, julgar-me um snobe ou um torturado – e nem eu, ao certo, o saberia também. De manhã, a olhar-me no espelho (e eu gostava de me avaliar ao espelho, sobretudo desde que o cabelo fugira lá para trás, deixando desimpedida uma fronte bosselada, onde as veias pareciam vermes assanhados e túrgidos), essa imagem, enjoada, apenas me devolvia um cepticismo agressivo. O mesmo enjoo irritado daqueles meus doentes quando, na fase já desiludida, nos apreciavam como funâmbulos sem talento que insistem numa ridícula e odiosa pantomina.
  
*Excerto 4<br />
+
*'''Excerto 2'''<br />
  Até que eu soube, por acaso (os doentes organizam-se numa espécie de seita, em que não faltam os delatores), que a rapariga de blusão carmesim fazia loucuras pela cidade. Era muito vista nos dancings e nos salões de jogo. Não era a primeira a quem isso acontecia. A maioria confundia prazer com desvarios. As pessoas tinham dentro de si, secretamente, uma atracção pela imundície. Se dessem dois dias de tréguas a um condenado, como iria ele aproveitá-los? Rectificando egoísmos, perfídias, cobardias, completando o capítulo inacabado de qualquer coisa perdurável? Não: mergulhando no lodo, atulhando as narinas com o fedor das podridões. Todos os mortos-vivos da minha clínica, assim que os freios se soltavam, corriam para um único e ardente objectivo: o de experimentarem o que, até aí, as convenções lhes tinham vedado, calcando a pés juntos, como possessos, milenárias inibições. Talvez porque o desespero se atordoasse mais depressa com o vício? Era preciso que os sarros lhes refluíssem às bocas, que a náusea de si próprios os cobrisse de uma epiderme surda, definitiva e impenetrável, amortecendo-lhes a terrível lucidez de chegar ao fim. Deter o tempo. Anestesiar o cérebro e os sentidos.<br />De uma vez um homem tranquilo pedira-me que lhe demarcasse, com a precisão possível, os seus últimos oito dias de existência. E na sua voz domesticada em anos de obediência ao chefe de repartição, ao orçamento, às fórmulas, (…) dizia-me que queria morrer sentindo a plenitude de quem participou das sensações saboreadas nos sonhos que ficam secretos. Um estômago esfomeado que só antevê uma brutal e suicida indigestão. (…)<br />- Porquê oito dias?<br />As mãos do homem, envergonhadas, suspenderam a sua linguagem<br />- O dinheiro não me chega para mais.<br />
+
  Penso ainda, muitas vezes, e apesar de tudo o que se passou, no significado dessas minhas ondas de fastio, arrogância e aspereza. Aspereza gratuita – que se poderia resumir, com mais rigor, nesta palavra que hoje, após os acontecimentos que me fizeram revelar muitas coisas dos outros e de mim próprio, deveria envergonhar-me: exibicionismo. Recusava, por exemplo, as batas de modelo único que distribuíam aos médicos do hospital e que se tiravam do cabide, a olho, consoante a estatura de cada um, como recusava submeter-me aos horários convencionais que disciplinavam os serviços das diferentes consultas. Todo eu me sacudia num risinho secreto, mal aflorado no desdém que me afilava o queixo, se me constava que o chefe da clínica, um sujeito de contumélias tresandando a alfazema e frases adocicadas, soltava guinchos de porquinho-da-índia ao dizerem-lhe que eu me negara espectaculosamente a observar uma dama da alta-roda que se julgara no direito de passar adiante da gente humilde das consultas – um rebanho paciente que se reunia como reses aturdidas à porta pela certeza de que o melado chefe da clínica seria incapaz de repetir os guinchos na minha presença, embora nessa noite ele fosse ter pesadelos com o terror de que a dama badalasse entre a sua tribo que, naquele serviço, se vexavam as pessoas respeitáveis.<br />Tais excentricidades, ou como lhes queiram chamar, porque eram temidas,  tornavam-se uma comodíssima justificação para todos os caprichos que me davam na gana e permitiam-me ser tão independente, azedo e solitário, quanto as vagas de neurastenia o exigiam. A neurastenia e, por fim, a petulância. Agora, que me deu na cabeça contar-vos umas coisas de que não posso orgulhar-me, é bem preferível usar as palavras necessárias. Petulância, pois. De uma vez deixara bem amolgado um tipo qualquer que se arriscara a anavalhar-me a reputação pelas costas, e como toda a gente comentou, com farta imaginação, a sova de cavalo-marinho que lhe dera, a minha fama de selvagem capaz de todos os dislates solidificou-se, solidificando-me, ao mesmo tempo, o prestígio. Porque o fiz? Fi-lo, hoje estou certo disso, não por desagravo, mas por fatuidade.
  
*Excerto 5<br />
+
*'''Excerto 3'''<br />
  Sentara-me ao lado de Clarisse. Avaliava-lhe as forças. Não podia vê-la naquele maldito quarto de hotel, docilmente à espera da morte, que viria como uma astuta rameira a filar um colegial desarmado. Que continuasse de preferência, a consumir-se numa chama viva. Que ardesse de pé.<br />- Precisamos de ir os dois a qualquer sítio – disse-lhe. – Hoje há um concerto.<br />- Vamos, se te apetece. Mas sinto-me arrasada.<br />Não insisti. Não havia nada para dizer. Arrasa-te, Clarisse. Acaba depressa. Seria possível que eu o desejasse? Ficámos à procura de qualquer palavra inútil, enquanto eu ia e vinha da janela, a desbastar um turvo nervosismo, cada um na expectativa de se libertar da presença do outro. Na melancolia pesada que havia de permeio poderia eclodir uma tempestade. Daí a pouco, foi ela a referir-se de novo ao concerto. Pediu-me que esperasse lá fora. Estive não sei quanto tempo junto do elevador. O homem que o servia, com a face opaca e retalhada, lembrou-me uma velha relíquia. Sem carne, sem veias. Apenas a pele seca colada aos ossos. Quando Clarisse apareceu no elevador, esforçando-se por não cambalear, trazia o vestido que lhe vira no dancing. O seu corpo flutuava dentro do crepe vaporoso. Tal como naquela noite remota mas instantânea. E também como nessa noite, parecia-me irreal. Os seus gestos tacteavam as paredes e o pavimento. O meu cavalo de circo ia morrer. Exibia-se num último espectáculo.<br />Pelo caminho, voltou a falar-me das flores. De um modo incoerente. Não, não era de todo incoerente: a mim é que, de ouvidos arranhados pela teatralidade desagradável que ela pusera nas palavras, custou perceber-lhe, desde logo, o objectivo. Ela queria dizer-me, num simbolismo de mau gosto, que nem as circunstâncias defendiam, que não desejava que lhe vendassem os olhos no momento da execução.<br />
+
  Um dia e outro dia. Semanas longas e pesadas como numa tarde de domingo. A chuvinha, silenciosa e furtiva, não tinha parança. Era, nas ruas, um espelho trémulo e, cá dentro, um charco de fastio onde os ossos se atolavam. O tempo incidia medularmente na minha disposição. Apenas o tempo?<br />Lembrava-me, nesses dias, estranhamente, de uma frase que lera havia muito: “Fechei a alma num porão.” Em que livro? A que propósito? Fechei a alma num porão. Era uma frase vazia, perdida, uma folha à procura da árvore donde se despegou, mas respondia-me a um estado de espírito igualmente solto das suas raízes.<br />A minha misantropia podia avaliar-se por isto: o Romualdo – sem um interlocutor válido – e ele efectivamente elegera-me seu ouvinte privativo -, acumulara já tantas reservas de congeminações que o seu rosto parecia um tomate empolado. À beira da apoplexia. Mas preferia rebentar a arriscar-se ao meu lúgubre mau humor.
  
 +
*'''Excerto 4'''<br />
 +
Até que eu soube, por acaso (os doentes organizam-se numa espécie de seita, em que não faltam os delatores), que a rapariga de blusão carmesim fazia loucuras pela cidade. Era muito vista nos dancings e nos salões de jogo. Não era a primeira a quem isso acontecia. A maioria confundia prazer com desvarios. As pessoas tinham dentro de si, secretamente, uma atracção pela imundície. Se dessem dois dias de tréguas a um condenado, como iria ele aproveitá-los? Rectificando egoísmos, perfídias, cobardias, completando o capítulo inacabado de qualquer coisa perdurável? Não: mergulhando no lodo, atulhando as narinas com o fedor das podridões. Todos os mortos-vivos da minha clínica, assim que os freios se soltavam, corriam para um único e ardente objectivo: o de experimentarem o que, até aí, as convenções lhes tinham vedado, calcando a pés juntos, como possessos, milenárias inibições. Talvez porque o desespero se atordoasse mais depressa com o vício? Era preciso que os sarros lhes refluíssem às bocas, que a náusea de si próprios os cobrisse de uma epiderme surda, definitiva e impenetrável, amortecendo-lhes a terrível lucidez de chegar ao fim. Deter o tempo. Anestesiar o cérebro e os sentidos.<br />De uma vez um homem tranquilo pedira-me que lhe demarcasse, com a precisão possível, os seus últimos oito dias de existência. E na sua voz domesticada em anos de obediência ao chefe de repartição, ao orçamento, às fórmulas, (…) dizia-me que queria morrer sentindo a plenitude de quem participou das sensações saboreadas nos sonhos que ficam secretos. Um estômago esfomeado que só antevê uma brutal e suicida indigestão. (…)<br />- Porquê oito dias?<br />As mãos do homem, envergonhadas, suspenderam a sua linguagem<br />- O dinheiro não me chega para mais.
  
 +
*'''Excerto 5'''<br />
 +
Sentara-me ao lado de Clarisse. Avaliava-lhe as forças. Não podia vê-la naquele maldito quarto de hotel, docilmente à espera da morte, que viria como uma astuta rameira a filar um colegial desarmado. Que continuasse de preferência, a consumir-se numa chama viva. Que ardesse de pé.<br />- Precisamos de ir os dois a qualquer sítio – disse-lhe. – Hoje há um concerto.<br />- Vamos, se te apetece. Mas sinto-me arrasada.<br />Não insisti. Não havia nada para dizer. Arrasa-te, Clarisse. Acaba depressa. Seria possível que eu o desejasse? Ficámos à procura de qualquer palavra inútil, enquanto eu ia e vinha da janela, a desbastar um turvo nervosismo, cada um na expectativa de se libertar da presença do outro. Na melancolia pesada que havia de permeio poderia eclodir uma tempestade. Daí a pouco, foi ela a referir-se de novo ao concerto. Pediu-me que esperasse lá fora. Estive não sei quanto tempo junto do elevador. O homem que o servia, com a face opaca e retalhada, lembrou-me uma velha relíquia. Sem carne, sem veias. Apenas a pele seca colada aos ossos. Quando Clarisse apareceu no elevador, esforçando-se por não cambalear, trazia o vestido que lhe vira no dancing. O seu corpo flutuava dentro do crepe vaporoso. Tal como naquela noite remota mas instantânea. E também como nessa noite, parecia-me irreal. Os seus gestos tacteavam as paredes e o pavimento. O meu cavalo de circo ia morrer. Exibia-se num último espectáculo.<br />Pelo caminho, voltou a falar-me das flores. De um modo incoerente. Não, não era de todo incoerente: a mim é que, de ouvidos arranhados pela teatralidade desagradável que ela pusera nas palavras, custou perceber-lhe, desde logo, o objectivo. Ela queria dizer-me, num simbolismo de mau gosto, que nem as circunstâncias defendiam, que não desejava que lhe vendassem os olhos no momento da execução.
  
 
*Livro proibido '''A Noite e a Madrugada, Fernando Namora'''<br />
 
*Livro proibido '''A Noite e a Madrugada, Fernando Namora'''<br />
  
*Excerto 6<br />
+
*'''Excerto 6'''<br />
 
  Os contrabandistas estavam na serra havia dois dias. A Guarda afastava-se por longas horas, fazia negaças, para voltar de improviso, empurrando-se para um círculo estreito logo que os homens se movimentavam. Os guardas revolviam todos os covis das ravinas e dos matagais, e aquela insistência apenas se compreendia pela certeza que teriam de encontrar contrabando em qualquer parte. Os contrabandistas sentiam o gume da traição sobre eles, conquanto nenhum falasse nisso abertamente. Estavam exaustos de expectativa; embora racionassem as merendas, sem prévio acordo, acabariam por ser obrigados a qualquer decisão extrema, antes de a última côdea de pão se esgotar. As pequenas irritações acumuladas eriçavam-se naquelas intermináveis horas de dúvida e ressentimento. Camarão isolara-se a alguma distância da carga, com o queixo cavalgando nos joelhos, a navalha sobressaindo do bolso da jaqueta. Clemente e António Parra trocavam frases dúbias e mordazes. Calhica foi a última a mostrar desespero: deixara de dormir a pensar no filho.<br />De súbito, um dos homens levantara o punho à altura das faces rubicundas de Clemente, pois este tinha tomado à sua conta a reserva de aguardente. Mas alguém disse que ele era o único a não falar em comida. António Parra resolveu dividir o resto do pão em migas. Amparado em dois ramos de azinho, desceu a vertente até à ribeira. Alguém devia chegar à mina, explicando a demora aos espanhóis, mas havia o perigo de um homem, mesmo possante, se afogar nas águas, desde que não fosse ajudado. Na ribeira, no sítio em que uma nascente rebentara debaixo das lajes, encontrou a tigela de cortiça; com uns cotos mais secos ferveu um pouco de água para as migas. Gostava de estar só para acertar com os seus pensamentos. Mas não havia saída para uma viagem tão aziaga como aquela: para trás ou para a frente, topariam a Guarda. Só o brio, a perseverança, os ardis, valeriam ainda de alguma coisa.
 
  Os contrabandistas estavam na serra havia dois dias. A Guarda afastava-se por longas horas, fazia negaças, para voltar de improviso, empurrando-se para um círculo estreito logo que os homens se movimentavam. Os guardas revolviam todos os covis das ravinas e dos matagais, e aquela insistência apenas se compreendia pela certeza que teriam de encontrar contrabando em qualquer parte. Os contrabandistas sentiam o gume da traição sobre eles, conquanto nenhum falasse nisso abertamente. Estavam exaustos de expectativa; embora racionassem as merendas, sem prévio acordo, acabariam por ser obrigados a qualquer decisão extrema, antes de a última côdea de pão se esgotar. As pequenas irritações acumuladas eriçavam-se naquelas intermináveis horas de dúvida e ressentimento. Camarão isolara-se a alguma distância da carga, com o queixo cavalgando nos joelhos, a navalha sobressaindo do bolso da jaqueta. Clemente e António Parra trocavam frases dúbias e mordazes. Calhica foi a última a mostrar desespero: deixara de dormir a pensar no filho.<br />De súbito, um dos homens levantara o punho à altura das faces rubicundas de Clemente, pois este tinha tomado à sua conta a reserva de aguardente. Mas alguém disse que ele era o único a não falar em comida. António Parra resolveu dividir o resto do pão em migas. Amparado em dois ramos de azinho, desceu a vertente até à ribeira. Alguém devia chegar à mina, explicando a demora aos espanhóis, mas havia o perigo de um homem, mesmo possante, se afogar nas águas, desde que não fosse ajudado. Na ribeira, no sítio em que uma nascente rebentara debaixo das lajes, encontrou a tigela de cortiça; com uns cotos mais secos ferveu um pouco de água para as migas. Gostava de estar só para acertar com os seus pensamentos. Mas não havia saída para uma viagem tão aziaga como aquela: para trás ou para a frente, topariam a Guarda. Só o brio, a perseverança, os ardis, valeriam ainda de alguma coisa.
  
*Excerto 7 <br />
+
*'''Excerto 7''' <br />
 
  Pencas encarou o morto com ferocidade. Não ia agora acobardar-se perante  esse velho traste que toda a vida lhe recusara um pedaço de pão. Desapertou os cordões com agilidade, mas o calfe parecia colado à gordura da pele; os pés, rígidos, não se dobravam aos puxões. Pencas, porém, acabou por dominar tudo isso, a bem ou a mal, com uma decisão vingativa e obstinada. Pela primeira vez conseguiu amansar esse velho maldito! Depois cobriu os pés com o lençol, deixando a descoberto o peito do morto. Fez um embrulho das botas e escondeu-as entre os arbustos da entrada da porta.<br />Na altura em que as vizinhas voltaram desiludidas da cozinha, Pencas encolheu-se no canto mais humilde da casa, transido de nervosismo. Estaria até ao fim para guardar os pés nus do morto. Quando encostaram o esquife à cama, foi ele a suspender as pernas do cadáver, cingindo o lençol às roupas. O corpo caiu sobre as tábuas, deixando um joanete a descoberto. Pencas cobriu-o rapidamente com o seu próprio casaco e todo esse recato pareceu muito bem às mulheres.<br />
 
  Pencas encarou o morto com ferocidade. Não ia agora acobardar-se perante  esse velho traste que toda a vida lhe recusara um pedaço de pão. Desapertou os cordões com agilidade, mas o calfe parecia colado à gordura da pele; os pés, rígidos, não se dobravam aos puxões. Pencas, porém, acabou por dominar tudo isso, a bem ou a mal, com uma decisão vingativa e obstinada. Pela primeira vez conseguiu amansar esse velho maldito! Depois cobriu os pés com o lençol, deixando a descoberto o peito do morto. Fez um embrulho das botas e escondeu-as entre os arbustos da entrada da porta.<br />Na altura em que as vizinhas voltaram desiludidas da cozinha, Pencas encolheu-se no canto mais humilde da casa, transido de nervosismo. Estaria até ao fim para guardar os pés nus do morto. Quando encostaram o esquife à cama, foi ele a suspender as pernas do cadáver, cingindo o lençol às roupas. O corpo caiu sobre as tábuas, deixando um joanete a descoberto. Pencas cobriu-o rapidamente com o seu próprio casaco e todo esse recato pareceu muito bem às mulheres.<br />
 
O cortejo demorou a despegar-se das lágrimas do Pomar. Lá seguiu, enfim, perseguido por rezas e bandos de moscas, esbraseado pelo sol violáceo da campina.
 
O cortejo demorou a despegar-se das lágrimas do Pomar. Lá seguiu, enfim, perseguido por rezas e bandos de moscas, esbraseado pelo sol violáceo da campina.
  
<br />
 
 
<br />
 
<br />
 
[[File:Logo25abril50anosleiturascensuradas.png|797px|center]]<br />
 
[[File:Logo25abril50anosleiturascensuradas.png|797px|center]]<br />

Revision as of 12:03, 18 April 2024

FernandoNamora-Fotog.jpg Domingolivro.jpg CensuraDomingoatarde.png

  • Fernando Namora (1919 – 1989)

Médico, escritor e poeta. Em 1981, foi proposto para o Prémio Nobel da Literatura, pela Academia das Ciências de Lisboa. Médico-escritor de grande sucesso, autor de livros adaptados à televisão como Retalhos da Vida de Um Médico.Fernando Namora lutou contra a Censura ao longo de todo o período do Estado Novo, ficando para a história, à luz dos seus processos na PIDE, a sua participação nos principais protestos levados a cabo pelos intelectuais portugueses.

  • Livro proibido - Domingo à Tarde

O livro de Fernando Namora, Domingo à Tarde, revela a importância da relação médico-doente não só para o bem-estar do doente, mas também para a evolução e aperfeiçoamento profissional do médico.

  • Excerto 1
Nesse tempo, ou já muito antes, era considerado um tipo insociável. Fumava desalmadamente, macerando o cigarro de um canto para o outro da boca, num jeito nervoso nada fácil de imitar, roendo a todo o momento qualquer danação íntima que se traduzia nos modos como fazia crer às pessoas que a presença delas me era insuportável. Tudo me servia para exagerar a brusquidão, talvez porque toda a gente reparasse nela e a censurasse, e a minha rebeldia contra fosse lá o que fosse manifestava-se, provocante, tanto mais quanto os outros a receavam. Era eu a açulá-los ao espectáculo, a colocar-me no centro desta arena improvisada que é a vida. Mas o gozo era meu. Nos outros não admitia, pois é o riso o que particularmente me ofende nos medíocres. Poderiam, enfim, julgar-me um snobe ou um torturado – e nem eu, ao certo, o saberia também. De manhã, a olhar-me no espelho (e eu gostava de me avaliar ao espelho, sobretudo desde que o cabelo fugira lá para trás, deixando desimpedida uma fronte bosselada, onde as veias pareciam vermes assanhados e túrgidos), essa imagem, enjoada, apenas me devolvia um cepticismo agressivo. O mesmo enjoo irritado daqueles meus doentes quando, na fase já desiludida, nos apreciavam como funâmbulos sem talento que insistem numa ridícula e odiosa pantomina.
  • Excerto 2
Penso ainda, muitas vezes, e apesar de tudo o que se passou, no significado dessas minhas ondas de fastio, arrogância e aspereza. Aspereza gratuita – que se poderia resumir, com mais rigor, nesta palavra que hoje, após os acontecimentos que me fizeram revelar muitas coisas dos outros e de mim próprio, deveria envergonhar-me: exibicionismo. Recusava, por exemplo, as batas de modelo único que distribuíam aos médicos do hospital e que se tiravam do cabide, a olho, consoante a estatura de cada um, como recusava submeter-me aos horários convencionais que disciplinavam os serviços das diferentes consultas. Todo eu me sacudia num risinho secreto, mal aflorado no desdém que me afilava o queixo, se me constava que o chefe da clínica, um sujeito de contumélias tresandando a alfazema e frases adocicadas, soltava guinchos de porquinho-da-índia ao dizerem-lhe que eu me negara espectaculosamente a observar uma dama da alta-roda que se julgara no direito de passar adiante da gente humilde das consultas – um rebanho paciente que se reunia como reses aturdidas à porta pela certeza de que o melado chefe da clínica seria incapaz de repetir os guinchos na minha presença, embora nessa noite ele fosse ter pesadelos com o terror de que a dama badalasse entre a sua tribo que, naquele serviço, se vexavam as pessoas respeitáveis.
Tais excentricidades, ou como lhes queiram chamar, porque eram temidas, tornavam-se uma comodíssima justificação para todos os caprichos que me davam na gana e permitiam-me ser tão independente, azedo e solitário, quanto as vagas de neurastenia o exigiam. A neurastenia e, por fim, a petulância. Agora, que me deu na cabeça contar-vos umas coisas de que não posso orgulhar-me, é bem preferível usar as palavras necessárias. Petulância, pois. De uma vez deixara bem amolgado um tipo qualquer que se arriscara a anavalhar-me a reputação pelas costas, e como toda a gente comentou, com farta imaginação, a sova de cavalo-marinho que lhe dera, a minha fama de selvagem capaz de todos os dislates solidificou-se, solidificando-me, ao mesmo tempo, o prestígio. Porque o fiz? Fi-lo, hoje estou certo disso, não por desagravo, mas por fatuidade.
  • Excerto 3
Um dia e outro dia. Semanas longas e pesadas como numa tarde de domingo. A chuvinha, silenciosa e furtiva, não tinha parança. Era, nas ruas, um espelho trémulo e, cá dentro, um charco de fastio onde os ossos se atolavam. O tempo incidia medularmente na minha disposição. Apenas o tempo?
Lembrava-me, nesses dias, estranhamente, de uma frase que lera havia muito: “Fechei a alma num porão.” Em que livro? A que propósito? Fechei a alma num porão. Era uma frase vazia, perdida, uma folha à procura da árvore donde se despegou, mas respondia-me a um estado de espírito igualmente solto das suas raízes.
A minha misantropia podia avaliar-se por isto: o Romualdo – sem um interlocutor válido – e ele efectivamente elegera-me seu ouvinte privativo -, acumulara já tantas reservas de congeminações que o seu rosto parecia um tomate empolado. À beira da apoplexia. Mas preferia rebentar a arriscar-se ao meu lúgubre mau humor.
  • Excerto 4
Até que eu soube, por acaso (os doentes organizam-se numa espécie de seita, em que não faltam os delatores), que a rapariga de blusão carmesim fazia loucuras pela cidade. Era muito vista nos dancings e nos salões de jogo. Não era a primeira a quem isso acontecia. A maioria confundia prazer com desvarios. As pessoas tinham dentro de si, secretamente, uma atracção pela imundície. Se dessem dois dias de tréguas a um condenado, como iria ele aproveitá-los? Rectificando egoísmos, perfídias, cobardias, completando o capítulo inacabado de qualquer coisa perdurável? Não: mergulhando no lodo, atulhando as narinas com o fedor das podridões. Todos os mortos-vivos da minha clínica, assim que os freios se soltavam, corriam para um único e ardente objectivo: o de experimentarem o que, até aí, as convenções lhes tinham vedado, calcando a pés juntos, como possessos, milenárias inibições. Talvez porque o desespero se atordoasse mais depressa com o vício? Era preciso que os sarros lhes refluíssem às bocas, que a náusea de si próprios os cobrisse de uma epiderme surda, definitiva e impenetrável, amortecendo-lhes a terrível lucidez de chegar ao fim. Deter o tempo. Anestesiar o cérebro e os sentidos.
De uma vez um homem tranquilo pedira-me que lhe demarcasse, com a precisão possível, os seus últimos oito dias de existência. E na sua voz domesticada em anos de obediência ao chefe de repartição, ao orçamento, às fórmulas, (…) dizia-me que queria morrer sentindo a plenitude de quem participou das sensações saboreadas nos sonhos que ficam secretos. Um estômago esfomeado que só antevê uma brutal e suicida indigestão. (…)
- Porquê oito dias?
As mãos do homem, envergonhadas, suspenderam a sua linguagem
- O dinheiro não me chega para mais.
  • Excerto 5
Sentara-me ao lado de Clarisse. Avaliava-lhe as forças. Não podia vê-la naquele maldito quarto de hotel, docilmente à espera da morte, que viria como uma astuta rameira a filar um colegial desarmado. Que continuasse de preferência, a consumir-se numa chama viva. Que ardesse de pé.
- Precisamos de ir os dois a qualquer sítio – disse-lhe. – Hoje há um concerto.
- Vamos, se te apetece. Mas sinto-me arrasada.
Não insisti. Não havia nada para dizer. Arrasa-te, Clarisse. Acaba depressa. Seria possível que eu o desejasse? Ficámos à procura de qualquer palavra inútil, enquanto eu ia e vinha da janela, a desbastar um turvo nervosismo, cada um na expectativa de se libertar da presença do outro. Na melancolia pesada que havia de permeio poderia eclodir uma tempestade. Daí a pouco, foi ela a referir-se de novo ao concerto. Pediu-me que esperasse lá fora. Estive não sei quanto tempo junto do elevador. O homem que o servia, com a face opaca e retalhada, lembrou-me uma velha relíquia. Sem carne, sem veias. Apenas a pele seca colada aos ossos. Quando Clarisse apareceu no elevador, esforçando-se por não cambalear, trazia o vestido que lhe vira no dancing. O seu corpo flutuava dentro do crepe vaporoso. Tal como naquela noite remota mas instantânea. E também como nessa noite, parecia-me irreal. Os seus gestos tacteavam as paredes e o pavimento. O meu cavalo de circo ia morrer. Exibia-se num último espectáculo.
Pelo caminho, voltou a falar-me das flores. De um modo incoerente. Não, não era de todo incoerente: a mim é que, de ouvidos arranhados pela teatralidade desagradável que ela pusera nas palavras, custou perceber-lhe, desde logo, o objectivo. Ela queria dizer-me, num simbolismo de mau gosto, que nem as circunstâncias defendiam, que não desejava que lhe vendassem os olhos no momento da execução.
  • Livro proibido A Noite e a Madrugada, Fernando Namora
  • Excerto 6
Os contrabandistas estavam na serra havia dois dias. A Guarda afastava-se por longas horas, fazia negaças, para voltar de improviso, empurrando-se para um círculo estreito logo que os homens se movimentavam. Os guardas revolviam todos os covis das ravinas e dos matagais, e aquela insistência apenas se compreendia pela certeza que teriam de encontrar contrabando em qualquer parte. Os contrabandistas sentiam o gume da traição sobre eles, conquanto nenhum falasse nisso abertamente. Estavam exaustos de expectativa; embora racionassem as merendas, sem prévio acordo, acabariam por ser obrigados a qualquer decisão extrema, antes de a última côdea de pão se esgotar. As pequenas irritações acumuladas eriçavam-se naquelas intermináveis horas de dúvida e ressentimento. Camarão isolara-se a alguma distância da carga, com o queixo cavalgando nos joelhos, a navalha sobressaindo do bolso da jaqueta. Clemente e António Parra trocavam frases dúbias e mordazes. Calhica foi a última a mostrar desespero: deixara de dormir a pensar no filho.
De súbito, um dos homens levantara o punho à altura das faces rubicundas de Clemente, pois este tinha tomado à sua conta a reserva de aguardente. Mas alguém disse que ele era o único a não falar em comida. António Parra resolveu dividir o resto do pão em migas. Amparado em dois ramos de azinho, desceu a vertente até à ribeira. Alguém devia chegar à mina, explicando a demora aos espanhóis, mas havia o perigo de um homem, mesmo possante, se afogar nas águas, desde que não fosse ajudado. Na ribeira, no sítio em que uma nascente rebentara debaixo das lajes, encontrou a tigela de cortiça; com uns cotos mais secos ferveu um pouco de água para as migas. Gostava de estar só para acertar com os seus pensamentos. Mas não havia saída para uma viagem tão aziaga como aquela: para trás ou para a frente, topariam a Guarda. Só o brio, a perseverança, os ardis, valeriam ainda de alguma coisa.
  • Excerto 7
Pencas encarou o morto com ferocidade. Não ia agora acobardar-se perante  esse velho traste que toda a vida lhe recusara um pedaço de pão. Desapertou os cordões com agilidade, mas o calfe parecia colado à gordura da pele; os pés, rígidos, não se dobravam aos puxões. Pencas, porém, acabou por dominar tudo isso, a bem ou a mal, com uma decisão vingativa e obstinada. Pela primeira vez conseguiu amansar esse velho maldito! Depois cobriu os pés com o lençol, deixando a descoberto o peito do morto. Fez um embrulho das botas e escondeu-as entre os arbustos da entrada da porta.
Na altura em que as vizinhas voltaram desiludidas da cozinha, Pencas encolheu-se no canto mais humilde da casa, transido de nervosismo. Estaria até ao fim para guardar os pés nus do morto. Quando encostaram o esquife à cama, foi ele a suspender as pernas do cadáver, cingindo o lençol às roupas. O corpo caiu sobre as tábuas, deixando um joanete a descoberto. Pencas cobriu-o rapidamente com o seu próprio casaco e todo esse recato pareceu muito bem às mulheres.

O cortejo demorou a despegar-se das lágrimas do Pomar. Lá seguiu, enfim, perseguido por rezas e bandos de moscas, esbraseado pelo sol violáceo da campina.


Logo25abril50anosleiturascensuradas.png

Wiki-nao-censurada-lapisazul.png

Voltar à Página Inicial da wiki 25 de Abril - 50 anos - Leituras em Liberdade