Gomes, Soeiro Pereira - Livros Proibidos

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Leitura - Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes

No último sábado, os moços do Telhal Grande receberam a féria com gritos de contentamento. As moedas não tapavam o fundo das algibeiras, mas os projectos transbordavam dos cérebros infantis. No dia seguinte abria a Feira; ia haver esperas de toiros e toiradas, circos e cavalinho. Por isso, a alegria dos rapazes punha em apuros o mestre à hora do pagamento. − Se não se calam, racho um! − vociferou ele, avançando para a porta da barraca. Fez-se silêncio. Os que estavam mais próximo recuaram, temerosos. Mas logo Gineto gritou de longe: − O melhor é matar-nos! − Para quê, pá? Só levava ossos, − comentou Sagui, indicando o corpo enfezado. − Ou calam-se, ou paro com isto! Calaram-se. Ficar sem féria seria perder a Feira. E a Feira era a verdadeira festa de despedida dos moços dos telhais. Cinco dias de pândega, entre um Verão de canseiras que findava e um Inverno de miséria que surgia. O pagamento prosseguiu.

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Quantas vezes, em horas de revolta surda, pensara pagar com juros todas as injúrias do capataz e abandonar depois o trabalho. Já assim fizera em todos os telhais. Com 7 anos, ia o pai levá-lo pelas orelhas até à eira. − Mestre: tome-me conta deste fidalgo. Mas, antes de o pai chegar ao portão, atravessava ele o caniço dos esteiros e, mesmo vestido, atirava-se ao rio. A corrente era forte, mas na outra margem havia pássaros, toiros bravos a pastar e valados desconhecidos. À noite, esperava-o a tareia do costume, em vez de ceia, e na manhã seguinte regressava ao telhal pelas orelhas. Morava no fim da vila, à beira dos esteiros. Da casa que o pai fizera, toda madeira e lata, viam-se os toiros pastar na outra margem e as rotas dos barcos. Havia tufos de junco nos esteiros e lixo abandonado. Mas Gineto sonhava conquistar todas as ruas. Quando pequeno, ainda convertera os esteiros em florestas e rebuscara no lixo brinquedos preciosos. Cedo, porém, se aborreceu daquele recanto monótono, só água e planície. A floresta dava-lhe pela cinta − era junco − e o lixo era lixo, apenas. Começaram então as fugas para a rua. A mãe bem lhe dizia ao fechar a porta: − Toma-me conta do pequeno! − Mas ele deixava o irmão a gatinhar na lama, e ia alvoroçar os garotos seus iguais. Ainda não era o Gineto ladrão. O nome veio-lhe depois com os assaltos aos pomares, florestas mais belas do que os esteiros. Mas já era mau e temido. Amigos tinha-os às vezes nos companheiros que precisavam da sua mão certeira para matar galinhas à solta ou colher frutos em pomares recatados. Fora disso, era mesmo um gineto escorraçado.

                                                                Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes






De manhã, quando os silvos das fábricas sobressaltavam todos os lares, Madalena ia encostar-se ao postigo, no beco do Mirante. Era um beco triste que assustava o sol. Subia em socalcos a encosta pedregosa, ladeada por paredes que vestiam luto e portas baixas que semelhavam buracos. Silencioso e sombrio, tinha ao alto, sobre rochas tisnadas, uma velha oliveira que manchava de cinzento o azul do céu. Naquele beco a vida estiolava. Madalena via passar, ao fundo, as antigas companheiras, que lhe acenavam de fugida e seguiam caminho a lamentá-la: − Tão magra que está! − Coitada. Aquela não deita fora o Inverno. E ela ficava a ouvir-lhes o sussurro das vozes e a recordar o tempo em que também era tecedeira. Depois, dava os bons-dias à velhota sua amiga, que, manca-não-manca, passava sempre atrasada. − tás melhor? − Obrigada, Ti Rosa. Prà semana talvez já vá consigo. Assim dizia há muito tempo, desde que o primeiro escarro lhe avermelhara o lenço. Mas os dias somavam meses − e as melhoras eram como o sol de Inverno. "Ainda se o seu Pedro voltasse...". Precisava mais dele do que de sol e remédios. Mas o antigo empregado de escritório fora levado para terra longínqua, que na imaginação de Madalena é inóspito deserto, onde se morre de sede e abandono. Perdera o emprego e perdera-se por amor daquela ideia insensata de fundar uma creche para os filhos das tecedeiras, que passavam horas e horas fechadas em casa, ou aos tombos na rua.

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Amava a vila, como ninguém. E, no entanto, a sua infância flutuou entre o beco e o Mirante. Depois é que conheceu as ruas que o levaram à escola. Os outros rapazinhos brincavam lá em baixo, brincavam. Mas ele não deixava o seu castelo de sonho, onde nada lhe faltava, como ao príncipe da história linda que sua mãe contava, à beira da enxerga... Agora, depois que deixara a escola, tudo mudou. O príncipe da história, que ele personificava, fora a enterrar naquele dia de começo das aulas, amortalhado na névoa que viera de longe, até à vila. E as pombas não saíram dos pombais, que eram moradias como a do Sr. Castro. E o sol não veio nesse dia, nem nos outros. Então, Gaitinhas decidiu descer às ruas. Lá em baixo, naquele grupo de rapazes que pareciam formigas, devia estar o maquineta, seu antigo companheiro. Talharia por o dele e dos outros o seu novo destino.

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O Gaitinhas avistou Gineto logo à entrada da Feira. Noutros tempos, não lhe teria falado. Mas agora, que deixara a escola, reconheceu-se seu igual em condição. − Gineto... (…) − O teu pai quer-te bater. Chegou agora. − Que tens tu c'o isso? − Nada. Vim avisar-te. A resposta confundiu Gineto, que perguntou, já com ar de amigo: − Quem to disse? − Ouvi eu, na estrada. Diz que fugiste coa féria, há dois dias, e que te rebenta com pancadas. − Não te rales, que o meu pai não me caça. − E propôs ao Gaitinhas uma volta no carrossel. − Mas eu não tenho dinheiro... − Pago eu. Pararam junto dos carrosséis, que eram dois. O maior, iluminado por lâmpadas multicores, tentava os olhos. Tinha cavalinhos com as patas no ar, fogosos como corcéis de carne e osso; galos de crista alta; bichos variados, sobre um tapete rolante que oscilava como os barcos no rio. O outro, perro e mal iluminado, só tinha cavalinhos. − Qual queres? − perguntou Gineto. Gaitinhas demorou a resposta. Olhou o carrossel velho, sem ninguém, e os cavalinhos tristes, parados. A voz rouca do dono parecia chamá-lo. − Vai andar... Vai andar... − Vamos neste − disse Gaitinhas. Gineto entregou os dez tostões que Sagui lhe emprestara para ele comprar mais um sorriso de Rosete. As luzes encheram-se de brilho; a campainha anunciou a corrida e chamou mais gente. (…) − Linda música − exclamou Gaitinhas. Talvez fosse a música do carrossel grande que abafava tudo. Mas de um ou de outro, era linda. Fazia-o esquecer a doença da mãe e os sapatos rotos. O cavalo galopava no espaço, através das estrelas, e ele levava um sorriso nos lábios e a carta de exame para mostrar ao pai...

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Mas não foi pelas estrelas que ele passou a noite em claro. É que, mal despontasse a aurora, iria mendigar pão-por-Deus. Pão que seria mão-cheia de nozes, pêras e castanhas... A ansiedade afugentara-lhe o sono, tornara mais duro o chão da cabana. A seu lado, o saquitel das dádivas atormentava-o, pois, sob o afago da mão, Sagui calculara-lhe o tamanho e achara-o pequeno. Com a camisa não contava, porque estava rota, e os bolsos eram pouco fundos... Através do tecto esburacado, as estrelas pareciam rir-se da sua afeição. Tentou dormir. Que duro, o chão! As estrelas riam, riam... e os companheiros também, porque se levantaram mais cedo e já iam a meio da vila... Mas foi sonho, apenas. Sagui chegou ao Mirante ainda primeiro do que o Gaitinhas, que morava a dois passos, mas receara as suspeitas da mãe. Depois é que apareceram os outros componentes do grupo. Sagui tremia de impaciência. − É tarde, pá. − Inda não tocaram as buzas −, observou Malesso com os olhos ramelosos. Como generais concebendo ofensiva, os rapazes combinaram, frente à vila, a dispersão do assalto. − E o Gineto? − lembrou um. − Não aparece... que se arranje. Às oito horas, partiram. Magrizelas, cobertas de trapos, outras crianças saíam aos pares das casas e formavam legião nas ruas. Na serenidade baça da manhã, as suas vozes langorosas tinham entonações de cântico sagrado. − Pão... por Deus. − Ao longe como um eco: − ... por Deus.

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− Tens fome? − perguntou o pai. Disse que sim e desceu ao beliche, donde tirou pão e carapaus fritos. Comeram. Gineto bebeu ainda um gole de vinho que o pai lhe ofereceu, e animou-se ao ouvi-lo dizer: − Tamos perto. Inda vamos ficar hoje a Lisboa. Chegaram lá de noite, à hora em que uma chusma de estrelas parecia a Gineto ter caído sobre a cidade iluminada. Adormeceu a pensar em maravilhas, no fundo do bote. E de manhã desejou desvendar o mistério das ruas esplendentes de sol, animadas de gente. Mulheres − e que lindas! Se elas o vissem tresmalhar um toiro... − Pai: a gente nã sai do bote? − tás parvo. Prendeu-se na ideia de que encontraria Rosete entre aquelas mulheres. O pai chamou-o à realidade: − Deixa-te de cantigas. Vamos a isto. Teve ganas de se atirar a ele, que nem sonhar deixava. Mas a descarga começou. A grua estendeu o braço articulado, enorme, e aliviou logo o barco em centenas de quilos. Também Gineto se sentiu aliviado, porque não tinha piadas de descarregadores a atazaná-lo, e o trabalho era mais brando. Mesmo assim, suou. E tanto, que o pai, sempre parco de afagos, lhe bateu nas costas, sorridente: − Se continuares assim, apanhas um fato prò mês que vem. Nem quis crer no que ouviu. − Um fato novo?!... − Sim, home. Como se o tivesse já vestido, pulou, assobiou, e até se esqueceu de Rosete. "Os companheiros, quando soubessem, morder-se-iam de inveja. Quem lhe dera regressar depressa! Ir num daqueles vapores de chaminés grossas como pinheiros e que roncavam mais do que as buzas das fábricas." Mas nem por voltar no bote moderou a alegria. Disse adeus aos camaradas do barco que cruzou viagem, rio abaixo; olhou com simpatia os montes escalvados, sem quintas promissoras; e, como o dorso do rio, sentiu nas costas o afago do sol. Quando saltou em terra, correu logo à Loja do Povo... Já lá não estava o fato azul que tanto namorara antes da Feira; mas escolheria outro − pensou. Depois, andou pelas ruas a dar a novidade. − Olá, Malesso! Sabes que vou ter farpela nova? Nem se lembrava da queda do rival, na lama do cais. Malesso não lhe deu fala. Os outros, indiferentes também, corriam atrás das bilhardas, ou davam piparotes nos berlindes. Para eles, Gineto já não era garoto da rua, companheiro de brincadeiras e telhais. Emancipara-se. Camarada num barco, pertencia agora à classe dos homens que entram na taberna e deitam pontas de cigarros para o chão. Pontas de cigarros que só eles, garotos, aproveitam. E o Gineto deixara-os sem aviso. Batera no Malesso, por escárnio, e fora-se. O recém-chegado agarrou na bilharda que lhe saltara aos pés e perguntou: − Posso jogar? − Não. − Ai, não? Olhem. − E atirou a bilharda para o telhado. Os outros insultaram-no com todos os palavrões sujos que aprenderam nas ruas mais sujas, e Gineto desafiou o grupo: − Um por um. − Podem vir... − Levantou o peito, fechou os dedos e esperou a pé firme os adversários. Mas somente o Sagui se adiantou, escudado no seu corpo de raquítico: − És um merda. Só o que tens é força. − E cara a cara desafiou-o: − Podes bater. Bate... Gineto quedou-se como estátua; depois, vencido, ameaçou Malesso: − Tu é que mas hás-de pagar. Andaste a fazer intrigas... Voltou costas ao grupo e seguiu rua além, abandonado e triste. Fora ali com intuitos de amigo − e perdera os amigos. E viera ele, todo o caminho do rio, ansioso por contar a novidade! Ia ter um fato novo; mas não seria invejado como Malesso e outros, nas alturas da Feira. À esquina da rua, parou, indeciso. Contra vontade, trocara as ruas de que era senhor, pelo mar que a ninguém pertencia. E agora via-se sozinho, rei destronado, à procura de um destino. "E se entrasse na taberna? O pai tinha-lhe dado dez tostões... Talvez até vendesse os dois canivetes que restaram da Feira." Entrou.

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Sim, lembrava-se agora. Andara fugido de casa e do telhal, tivera fome, e roubara melões de um barco. Depois, perseguido no cais e no rio, fizera o Cabo de Mar tomar um banho forçado. − Ladrão... Sem vergonha... − O Cabo de Mar não lhe via as faces esbraseadas. Insultava e batia. Foi então que Gineto deu fé dos canivetes. Com a mão direita livre tacteou a lâmina e, de repente, num sacão, cravou-a no braço que o prendia. Escorraçado e perseguido como um gineto − Gineto de nome e condição. Garoto da rua, que se perdera das ruas e não chegara a ser homem, porque fugira dos homens. Antes viver como Sagui, sem eira nem beira. Dormir num palheiro de tecto aberto às estrelas e pedir pão-por-Deus. Ser bom e jovial. Não, não podia ser bom. O Sagui perdera os pais, mas ganhara amigos, enquanto ele era órfão no mundo. Acantoado e mais triste, vê em cada esquina uma emboscada e em cada vulto um inimigo. Por isso, foge. Sobe a ladeira do Mirante e pára uns momentos a recordar o encontro que teve ali com o Gaitinhas, naquela tarde em que este se confessara seu amigo. Amigo falso como os outros, que acreditaram nas intrigas do Malesso. Não tem amigos quem anda em descampado... E, afinal, não quisera ser fera. Contra vontade, jogara a bilharda para o telhado e abrira o canivete na taberna. Porque o desprezaram, quando ele, alegre e sossegado como nunca, ia ter um fato novo? Porquê? Não, não podia ser bom. Na noite sem lua, ninguém vinha alumiar as trevas do Gineto. E ele ia-se embrenhando na noite pressaga de pensamentos maus. À sua volta, as sombras das árvores pareciam gigantes e bichos alados. Latiu um cão ao longe. E o som repercutiu-se pelas quebradas, deu voz aos bichos e aos gigantes. Gineto abriu os olhos para a noite e arrepiou-se.

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As cheias cobriram de água os olhos dos camponeses. Perdidas as margens, o rio fez-se mar − mar de aflições. Mas ali do Mirante, sobranceiro à casa do Gaitinhas, a gente que veio da cidade, em automóveis, não via angústias, nem olhos rasos de água. Assentou binóculos sobre a lezíria, e as lentes aproximaram telhados de casas submersas, telheiros desmantelados, copas esguias de choupos como dedos de náufrago. Ao longe, dentro da capela bloqueada, a Senhora de Alcamé decerto bradava aos Céus. − Que formidável espectáculo! − E não querias tu vir... − As águas ainda subirão mais? − perguntou alguém. Um homem daqueles sítios disse que sim. − O cabeço d'água é só depois de amanhã... Via-se a torre cimeira da capela. E o sino calado, impotente... − Gostava de cá voltar, quando o rio estivesse mais cheio − confessou uma senhora que ouvira a resposta do homem. O marido discordou. − Não vale a pena. Isto é sempre a mesma coisa... Um bando de patos bravos alvoroçou olhares, formou nuvem que se alongava e sumia na neblina da manhã. No valado, que fora limite de margem e agora era carreiro sem destino, um renque de oliveiras emergia das águas, apenas, as copas glaucas. − Olhem − disse uma voz juvenil −, aquelas oliveiras dão a impressão de que flutuam. E uma casita, além, meio afundada... Isto é triste, não é? − Conforme... − retorquiu-lhe um rapaz magro, elegante. − Como disse Amiel, a paisagem é um estado de alma. − Você, também, vê tudo com olhos de poeta. − E porque não? Falta-nos agora o azul do rio: mas, repare, temos ainda o azul do céu. E, quando a Primavera chegar, a alegria voltará aos campos cultivados. Depois, virando-se para os companheiros, perguntou: − A propósito: vocês leram o artigo do Silveira? A explicação de que as cheias enriquecem as terras pareceu-me inteligente. Pena é que ele tenha um estilo tão fraco... O caudal barrento do rio arrastava fardos de palha, animais e lágrimas. E o homem daqueles sítios, alheio às conversas, nada mais via do que luto à sua frente. O klaxon de um automóvel repercutiu-se sobre a vila. Gente partia, outra chegava. Agora era um senhor gordo, com máquina fotográfica a tiracolo, quem apreciava o panorama. − Afinal, onde está a maravilha? − É grandioso, há-de concordar. − Ora, meu amigo. Isto é um lago, comparado com as inundações que eu vi na América. Aí, sim. Povoações arrasadas, campos totalmente devastados, centenas de mortos...

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De novo a tosse lhe arrancou restos de vida. Gaitinhas caiu-lhe ao lado, cabeça escondida na roupa a soluçar. "Estás um homem..." Ouvira isto num dia de Outono, a chorar também de desespero por não voltar para a escola. As botas perderam-se, sem conserto, já nem sabia onde; depois pedira esmola; roubara fruta na quinta do Arturinho. "Estás um homem... Já podes ajudar a tua mãe." Mas não ajudou, nem se fez homem, porque estava ali a chorar − e o Gineto dizia que um homem não chora, nem que rebente. Gastara o dinheiro em prendas para a Doida − e a mãe, ali ao seu lado, a morrer... Chorou mais, embora os dedos da mãe, sobre os cabelos dele, fossem gesto de bênção e perdão. Mas, de tão leve, até este afago se deliu na sua dor estreme. Quando levantou a fronte, a mãe estava imóvel, de olhos cerrados, como que a dormir. Afastou-se nos bicos dos pés. Pareceu-lhe que os olhos em frente, na parede encardida, desolados também, talvez do pai, o seguiam por toda a casa, a pedir-lhe contas do dinheiro mal gasto... Mudou de ideias e de lugar. Pôs-se a rever os desenhos que fizera na caliça do quarto. O maior, que semelhava um cavalo, descobrira-o ele quando estivera doente com sarampo. Um cavalo como aquele que ficara no campo, bloqueado pelas cheias... De relance, fixou-se noutro desenho. Mas o pensamento voltou-lhe para o campo, onde a rã da Quinta Alta coaxava, agoirenta, e os companheiros da rua revolviam corpos, à procura do Malesso. Cadáveres com faces de cera e lábios roxos como... Conteve um grito de pavor. Teria a mãe morrido? O corpo ficou-lhe em tremuras e soluços brandos. "E a Ti Rosa sem voltar!" Quando a buzina tocou na fábrica, foi como se a mãe se tivesse curado, de repente. Rosa Coxa entrou devagarinho. − Então? − Parece que dorme... A velha aproximou-se; tacteou com a mão a testa gelada de Madalena; e caiu em pranto fundo, como se tivesse morrido uma filha.

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No telhal, respira-se um ar de abandono que confrange, como em certas casas desabitadas, que conservam dos últimos moradores um objecto inútil, uma cadeira partida, no meio das alas nuas. O camartelo da Fábrica Grande apenas deixou, entre ruínas, as paredes esventradas do forno. Erguem-se, erectas, no meio da eira juncada de cacos, a lembrar tempos de prosperidade e fadigas de sempre. Os cardos vão conquistando aquele terreno que pés de crianças pisaram, e uma rã já se assenhoreou da poça sombria que a chuva formou no fundo da ladeira, onde a boca do forno parece goela de monstro. Zé Vicente só voltou ali uma vez, para retirar máquinas e pertences, e pagar ao pessoal, depois daquela noite em que o fogo converteu em cinzas as medas de lenha e os derradeiros anseios do rendeiro. E ninguém soube como fora aquilo. O forno estava apagado, e o mestre, antes de se deitar, dera volta ao telhal, como de costume, e não vira ninguém. Todavia, pouco depois, as labaredas iluminavam mais do que o luar. Vieram os bombeiros e a malta, em alvoroço; mas de nada serviu tirar água da charca. Então Zé Vicente chorou como criança. E os moços do telhal, crianças também, enterneceram-se. Somente o maquineta se manteve impassível, com um sorriso estranho mal refreado nos lábios grossos. − Nã tens pena? − perguntou-lhe Gaitinhas. Encolheu os ombros e murmurou por entre dentes: − É a maneira de a gente entrar mais depressa prà Fábrica Grande... Mas a previsão do Maquineta falhou. Ele e os outros bem andaram a rondar o telhal e os portões da fábrica, mais de uma semana, que ninguém os chamou. E, nos outros telhais, nem mesmo os valadores tiveram entrada, apesar das tremuras de voz com que a suplicaram.

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