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*'''SOEIRO PEREIRA GOMES''' (1909 - 1949)<br />
 
*'''SOEIRO PEREIRA GOMES''' (1909 - 1949)<br />
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Notável figura da Resistência antifascista, militante e escritor, foi pela sua obra Esteiros que marcou sucessivas gerações de crianças e adultos, especialmente durante a Ditadura fascista. Publicada em 1941, considerada a sua obra-prima, é ilustrada, na primeira edição, por Álvaro Cunhal e dedicada «aos filhos dos homens que nunca foram meninos». Soeiro Pereira Gomes trocou o enorme talento literário pela dedicação à luta, indo morrer na clandestinidade, já membro do comité central do Partido Comunista.
  
Notável figura da Resistência antifascista, militante e escritor, foi pela sua obra Esteiros que marcou sucessivas gerações de crianças e adultos, especialmente durante a Ditadura fascista. Publicada em 1941, considerada a sua obra-prima, é ilustrada, na primeira edição, por Álvaro Cunhal e dedicada «aos filhos dos homens que nunca foram meninos». Soeiro Pereira Gomes trocou o enorme talento literário pela dedicação à luta, indo morrer na clandestinidade, já membro do comité central do Partido Comunista.
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*'''Livro Proibido''' '''Esteiros'''<br />
 
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*'''Excerto 1'''
* Livro Proibido '''Esteiros'''<br />
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  No último sábado, os moços do Telhal Grande receberam a féria com gritos de contentamento. As moedas não tapavam o fundo das algibeiras, mas os projectos transbordavam dos cérebros infantis. No dia seguinte abria a Feira; ia haver esperas de toiros e toiradas, circos e cavalinho.<br />Por isso, a alegria dos rapazes punha em apuros o mestre à hora do pagamento.<br />− Se não se calam, racho um! − vociferou ele, avançando para a porta da barraca.<br />Fez-se silêncio. Os que estavam mais próximo recuaram, temerosos. Mas logo Gineto gritou de longe: − O melhor é matar-nos!<br />− Para quê, pá? Só levava ossos, − comentou Sagui, indicando o corpo enfezado.− Ou calam-se, ou paro com isto!<br />Calaram-se. Ficar sem féria seria perder a Feira. E a Feira era a verdadeira festa de despedida dos moços dos telhais. Cinco dias de pândega, entre um Verão de canseiras que findava e um Inverno de miséria que surgia.<br />O pagamento prosseguiu.
*Excerto 1
 
  No último sábado, os moços do Telhal Grande receberam a féria com gritos de contentamento. As moedas não tapavam o fundo das algibeiras, mas os projectos transbordavam dos cérebros infantis. No dia seguinte abria a Feira; ia haver esperas de toiros e toiradas, circos e cavalinho.<br />Por isso, a alegria dos rapazes punha em apuros o mestre à hora do pagamento.<br />− Se não se calam, racho um! − vociferou ele, avançando para a porta da barraca.<br />Fez-se silêncio. Os que estavam mais próximo recuaram, temerosos. Mas logo Gineto gritou de longe: − O melhor é matar-nos!<br />− Para quê, pá? Só levava ossos, − comentou Sagui, indicando o corpo enfezado.− Ou calam-se, ou paro com isto!<br />Calaram-se. Ficar sem féria seria perder a Feira. E a Feira era a verdadeira festa de despedida dos moços dos telhais. Cinco dias de pândega, entre um Verão de canseiras que findava e um Inverno de miséria que surgia.<br />O pagamento prosseguiu.<br />
 
 
 
*Excerto 2<br />
 
  
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*'''Excerto 2'''
 
  Quantas vezes, em horas de revolta surda, pensara pagar com juros todas as injúrias do capataz e abandonar depois o trabalho.<br />Já assim fizera em todos os telhais. Com 7 anos, ia o pai levá-lo pelas orelhas até à eira.<br />− Mestre: tome-me conta deste fidalgo.<br />Mas, antes de o pai chegar ao portão, atravessava ele o caniço dos esteiros e, mesmo vestido, atirava-se ao rio. A corrente era forte, mas na outra margem havia pássaros, toiros bravos a pastar e valados desconhecidos. À noite, esperava-o a tareia do costume, em vez de ceia, e na manhã seguinte regressava ao telhal pelas orelhas.<br />Morava no fim da vila, à beira dos esteiros. Da casa que o pai fizera, toda madeira e lata, viam-se os toiros pastar na outra margem e as rotas dos barcos. Havia tufos de junco nos esteiros e lixo abandonado. Mas Gineto sonhava conquistar todas as ruas. Quando pequeno, ainda convertera os esteiros em florestas e rebuscara no lixo brinquedos preciosos. Cedo, porém, se aborreceu daquele recanto monótono, só água e planície. A floresta dava-lhe pela cinta − era junco − e o lixo era lixo, apenas.<br />Começaram então as fugas para a rua. A mãe bem lhe dizia ao fechar a porta: − Toma-me conta do pequeno! − Mas ele deixava o irmão a gatinhar na lama, e ia alvoroçar os garotos seus iguais. Ainda não era o Gineto ladrão. O nome veio-lhe depois com os assaltos aos pomares, florestas mais belas do que os esteiros. Mas já era mau e temido. Amigos tinha-os às vezes nos companheiros que precisavam da sua mão certeira para matar galinhas à solta ou colher frutos em pomares recatados. Fora disso, era mesmo um gineto escorraçado.
 
  Quantas vezes, em horas de revolta surda, pensara pagar com juros todas as injúrias do capataz e abandonar depois o trabalho.<br />Já assim fizera em todos os telhais. Com 7 anos, ia o pai levá-lo pelas orelhas até à eira.<br />− Mestre: tome-me conta deste fidalgo.<br />Mas, antes de o pai chegar ao portão, atravessava ele o caniço dos esteiros e, mesmo vestido, atirava-se ao rio. A corrente era forte, mas na outra margem havia pássaros, toiros bravos a pastar e valados desconhecidos. À noite, esperava-o a tareia do costume, em vez de ceia, e na manhã seguinte regressava ao telhal pelas orelhas.<br />Morava no fim da vila, à beira dos esteiros. Da casa que o pai fizera, toda madeira e lata, viam-se os toiros pastar na outra margem e as rotas dos barcos. Havia tufos de junco nos esteiros e lixo abandonado. Mas Gineto sonhava conquistar todas as ruas. Quando pequeno, ainda convertera os esteiros em florestas e rebuscara no lixo brinquedos preciosos. Cedo, porém, se aborreceu daquele recanto monótono, só água e planície. A floresta dava-lhe pela cinta − era junco − e o lixo era lixo, apenas.<br />Começaram então as fugas para a rua. A mãe bem lhe dizia ao fechar a porta: − Toma-me conta do pequeno! − Mas ele deixava o irmão a gatinhar na lama, e ia alvoroçar os garotos seus iguais. Ainda não era o Gineto ladrão. O nome veio-lhe depois com os assaltos aos pomares, florestas mais belas do que os esteiros. Mas já era mau e temido. Amigos tinha-os às vezes nos companheiros que precisavam da sua mão certeira para matar galinhas à solta ou colher frutos em pomares recatados. Fora disso, era mesmo um gineto escorraçado.
 
                                                            
 
                                                            
*Excerto 3<br />
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*'''Excerto 3'''
 
 
 
  De manhã, quando os silvos das fábricas sobressaltavam todos os lares, Madalena ia encostar-se ao postigo, no beco do Mirante.<br />Era um beco triste que assustava o sol. Subia em socalcos a encosta pedregosa, ladeada por paredes que vestiam luto e portas baixas que semelhavam buracos. Silencioso e sombrio, tinha ao alto, sobre rochas tisnadas, uma velha oliveira que manchava de cinzento o azul do céu.<br />Naquele beco a vida estiolava.<br />Madalena via passar, ao fundo, as antigas companheiras, que lhe acenavam de fugida e seguiam caminho a lamentá-la:<br />− Tão magra que está!<br />− Coitada. Aquela não deita fora o Inverno.<br />E ela ficava a ouvir-lhes o sussurro das vozes e a recordar o tempo em que também era tecedeira. Depois, dava os bons-dias à velhota sua amiga, que, manca-não-manca, passava sempre atrasada.<br />− tás melhor?<br />− Obrigada, Ti Rosa. Prà semana talvez já vá consigo.<br />
 
  De manhã, quando os silvos das fábricas sobressaltavam todos os lares, Madalena ia encostar-se ao postigo, no beco do Mirante.<br />Era um beco triste que assustava o sol. Subia em socalcos a encosta pedregosa, ladeada por paredes que vestiam luto e portas baixas que semelhavam buracos. Silencioso e sombrio, tinha ao alto, sobre rochas tisnadas, uma velha oliveira que manchava de cinzento o azul do céu.<br />Naquele beco a vida estiolava.<br />Madalena via passar, ao fundo, as antigas companheiras, que lhe acenavam de fugida e seguiam caminho a lamentá-la:<br />− Tão magra que está!<br />− Coitada. Aquela não deita fora o Inverno.<br />E ela ficava a ouvir-lhes o sussurro das vozes e a recordar o tempo em que também era tecedeira. Depois, dava os bons-dias à velhota sua amiga, que, manca-não-manca, passava sempre atrasada.<br />− tás melhor?<br />− Obrigada, Ti Rosa. Prà semana talvez já vá consigo.<br />
 
                                                            
 
                                                            
*Excerto 4
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*'''Excerto 4'''
 
 
 
  Amava a vila, como ninguém. E, no entanto, a sua infância flutuou entre o beco e o Mirante. Depois é que conheceu as ruas que o levaram à escola. Os outros rapazinhos brincavam lá em baixo, brincavam. Mas ele não deixava o seu castelo de sonho, onde nada lhe faltava, como ao príncipe da história linda que sua mãe contava, à beira da enxerga...<br />Agora, depois que deixara a escola, tudo mudou. O príncipe da história, que ele personificava, fora a enterrar naquele dia de começo das aulas, amortalhado na névoa que viera de longe, até à vila. E as pombas não saíram dos pombais, que eram moradias como a do Sr. Castro. E o sol não veio nesse dia, nem nos outros.<br />Então, Gaitinhas decidiu descer às ruas. Lá em baixo, naquele grupo de rapazes que pareciam formigas, devia estar o maquineta, seu antigo companheiro. Talharia por o dele e dos outros o seu novo destino.<br />
 
  Amava a vila, como ninguém. E, no entanto, a sua infância flutuou entre o beco e o Mirante. Depois é que conheceu as ruas que o levaram à escola. Os outros rapazinhos brincavam lá em baixo, brincavam. Mas ele não deixava o seu castelo de sonho, onde nada lhe faltava, como ao príncipe da história linda que sua mãe contava, à beira da enxerga...<br />Agora, depois que deixara a escola, tudo mudou. O príncipe da história, que ele personificava, fora a enterrar naquele dia de começo das aulas, amortalhado na névoa que viera de longe, até à vila. E as pombas não saíram dos pombais, que eram moradias como a do Sr. Castro. E o sol não veio nesse dia, nem nos outros.<br />Então, Gaitinhas decidiu descer às ruas. Lá em baixo, naquele grupo de rapazes que pareciam formigas, devia estar o maquineta, seu antigo companheiro. Talharia por o dele e dos outros o seu novo destino.<br />
 
                                                                                  
 
                                                                                  
*Excerto 5
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*'''Excerto 5'''
 
 
 
  O Gaitinhas avistou Gineto logo à entrada da Feira. Noutros tempos, não lhe teria falado. Mas agora, que deixara a escola, reconheceu-se seu igual em condição.<br />− Gineto... (…)<br />− O teu pai quer-te bater. Chegou agora.<br />− Que tens tu c'o isso?<br />− Nada. Vim avisar-te.<br />A resposta confundiu Gineto, que perguntou, já com ar de amigo: − Quem to disse?<br />− Ouvi eu, na estrada. Diz que fugiste coa féria, há dois dias, e que te rebenta com pancadas.<br />− Não te rales, que o meu pai não me caça. − E propôs ao Gaitinhas uma volta no carrossel.<br />− Mas eu não tenho dinheiro...<br />− Pago eu.<br />Pararam junto dos carrosséis, que eram dois. O maior, iluminado por lâmpadas multicores, tentava os olhos. Tinha cavalinhos com as patas no ar, fogosos como corcéis de carne e osso; galos de crista alta; bichos variados, sobre um tapete rolante que oscilava como os barcos no rio. O outro, perro e mal iluminado, só tinha cavalinhos.<br />− Qual queres? − perguntou Gineto.<br />Gaitinhas demorou a resposta. Olhou o carrossel velho, sem ninguém, e os cavalinhos tristes, parados. A voz rouca do dono parecia chamá-lo. − Vai andar... Vai andar...<br />− Vamos neste − disse Gaitinhas.<br />Gineto entregou os dez tostões que Sagui lhe emprestara para ele comprar mais um sorriso de Rosete. As luzes encheram-se de brilho; a campainha anunciou a corrida e chamou mais gente. (…)<br />− Linda música − exclamou Gaitinhas. Talvez fosse a música do carrossel grande que abafava tudo. Mas de um ou de outro, era linda. Fazia-o esquecer a doença da mãe e os sapatos rotos. O cavalo galopava no espaço, através das estrelas, e ele levava um sorriso nos lábios e a carta de exame para mostrar ao pai...
 
  O Gaitinhas avistou Gineto logo à entrada da Feira. Noutros tempos, não lhe teria falado. Mas agora, que deixara a escola, reconheceu-se seu igual em condição.<br />− Gineto... (…)<br />− O teu pai quer-te bater. Chegou agora.<br />− Que tens tu c'o isso?<br />− Nada. Vim avisar-te.<br />A resposta confundiu Gineto, que perguntou, já com ar de amigo: − Quem to disse?<br />− Ouvi eu, na estrada. Diz que fugiste coa féria, há dois dias, e que te rebenta com pancadas.<br />− Não te rales, que o meu pai não me caça. − E propôs ao Gaitinhas uma volta no carrossel.<br />− Mas eu não tenho dinheiro...<br />− Pago eu.<br />Pararam junto dos carrosséis, que eram dois. O maior, iluminado por lâmpadas multicores, tentava os olhos. Tinha cavalinhos com as patas no ar, fogosos como corcéis de carne e osso; galos de crista alta; bichos variados, sobre um tapete rolante que oscilava como os barcos no rio. O outro, perro e mal iluminado, só tinha cavalinhos.<br />− Qual queres? − perguntou Gineto.<br />Gaitinhas demorou a resposta. Olhou o carrossel velho, sem ninguém, e os cavalinhos tristes, parados. A voz rouca do dono parecia chamá-lo. − Vai andar... Vai andar...<br />− Vamos neste − disse Gaitinhas.<br />Gineto entregou os dez tostões que Sagui lhe emprestara para ele comprar mais um sorriso de Rosete. As luzes encheram-se de brilho; a campainha anunciou a corrida e chamou mais gente. (…)<br />− Linda música − exclamou Gaitinhas. Talvez fosse a música do carrossel grande que abafava tudo. Mas de um ou de outro, era linda. Fazia-o esquecer a doença da mãe e os sapatos rotos. O cavalo galopava no espaço, através das estrelas, e ele levava um sorriso nos lábios e a carta de exame para mostrar ao pai...
 
 
                                                                                  
 
                                                                                  
'''Para saber mais'''
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'''Para saber mais'''<br />
  
 
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Revision as of 12:56, 18 April 2024

Soeiro.jpg Esteiros-2.jpg EsteirosCensura.jpg

  • SOEIRO PEREIRA GOMES (1909 - 1949)

Notável figura da Resistência antifascista, militante e escritor, foi pela sua obra Esteiros que marcou sucessivas gerações de crianças e adultos, especialmente durante a Ditadura fascista. Publicada em 1941, considerada a sua obra-prima, é ilustrada, na primeira edição, por Álvaro Cunhal e dedicada «aos filhos dos homens que nunca foram meninos». Soeiro Pereira Gomes trocou o enorme talento literário pela dedicação à luta, indo morrer na clandestinidade, já membro do comité central do Partido Comunista.

  • Livro Proibido Esteiros
  • Excerto 1
No último sábado, os moços do Telhal Grande receberam a féria com gritos de contentamento. As moedas não tapavam o fundo das algibeiras, mas os projectos transbordavam dos cérebros infantis. No dia seguinte abria a Feira; ia haver esperas de toiros e toiradas, circos e cavalinho.
Por isso, a alegria dos rapazes punha em apuros o mestre à hora do pagamento.
− Se não se calam, racho um! − vociferou ele, avançando para a porta da barraca.
Fez-se silêncio. Os que estavam mais próximo recuaram, temerosos. Mas logo Gineto gritou de longe: − O melhor é matar-nos!
− Para quê, pá? Só levava ossos, − comentou Sagui, indicando o corpo enfezado.− Ou calam-se, ou paro com isto!
Calaram-se. Ficar sem féria seria perder a Feira. E a Feira era a verdadeira festa de despedida dos moços dos telhais. Cinco dias de pândega, entre um Verão de canseiras que findava e um Inverno de miséria que surgia.
O pagamento prosseguiu.
  • Excerto 2
Quantas vezes, em horas de revolta surda, pensara pagar com juros todas as injúrias do capataz e abandonar depois o trabalho.
Já assim fizera em todos os telhais. Com 7 anos, ia o pai levá-lo pelas orelhas até à eira.
− Mestre: tome-me conta deste fidalgo.
Mas, antes de o pai chegar ao portão, atravessava ele o caniço dos esteiros e, mesmo vestido, atirava-se ao rio. A corrente era forte, mas na outra margem havia pássaros, toiros bravos a pastar e valados desconhecidos. À noite, esperava-o a tareia do costume, em vez de ceia, e na manhã seguinte regressava ao telhal pelas orelhas.
Morava no fim da vila, à beira dos esteiros. Da casa que o pai fizera, toda madeira e lata, viam-se os toiros pastar na outra margem e as rotas dos barcos. Havia tufos de junco nos esteiros e lixo abandonado. Mas Gineto sonhava conquistar todas as ruas. Quando pequeno, ainda convertera os esteiros em florestas e rebuscara no lixo brinquedos preciosos. Cedo, porém, se aborreceu daquele recanto monótono, só água e planície. A floresta dava-lhe pela cinta − era junco − e o lixo era lixo, apenas.
Começaram então as fugas para a rua. A mãe bem lhe dizia ao fechar a porta: − Toma-me conta do pequeno! − Mas ele deixava o irmão a gatinhar na lama, e ia alvoroçar os garotos seus iguais. Ainda não era o Gineto ladrão. O nome veio-lhe depois com os assaltos aos pomares, florestas mais belas do que os esteiros. Mas já era mau e temido. Amigos tinha-os às vezes nos companheiros que precisavam da sua mão certeira para matar galinhas à solta ou colher frutos em pomares recatados. Fora disso, era mesmo um gineto escorraçado.
  • Excerto 3
De manhã, quando os silvos das fábricas sobressaltavam todos os lares, Madalena ia encostar-se ao postigo, no beco do Mirante.
Era um beco triste que assustava o sol. Subia em socalcos a encosta pedregosa, ladeada por paredes que vestiam luto e portas baixas que semelhavam buracos. Silencioso e sombrio, tinha ao alto, sobre rochas tisnadas, uma velha oliveira que manchava de cinzento o azul do céu.
Naquele beco a vida estiolava.
Madalena via passar, ao fundo, as antigas companheiras, que lhe acenavam de fugida e seguiam caminho a lamentá-la:
− Tão magra que está!
− Coitada. Aquela não deita fora o Inverno.
E ela ficava a ouvir-lhes o sussurro das vozes e a recordar o tempo em que também era tecedeira. Depois, dava os bons-dias à velhota sua amiga, que, manca-não-manca, passava sempre atrasada.
− tás melhor?
− Obrigada, Ti Rosa. Prà semana talvez já vá consigo.
  • Excerto 4
Amava a vila, como ninguém. E, no entanto, a sua infância flutuou entre o beco e o Mirante. Depois é que conheceu as ruas que o levaram à escola. Os outros rapazinhos brincavam lá em baixo, brincavam. Mas ele não deixava o seu castelo de sonho, onde nada lhe faltava, como ao príncipe da história linda que sua mãe contava, à beira da enxerga...
Agora, depois que deixara a escola, tudo mudou. O príncipe da história, que ele personificava, fora a enterrar naquele dia de começo das aulas, amortalhado na névoa que viera de longe, até à vila. E as pombas não saíram dos pombais, que eram moradias como a do Sr. Castro. E o sol não veio nesse dia, nem nos outros.
Então, Gaitinhas decidiu descer às ruas. Lá em baixo, naquele grupo de rapazes que pareciam formigas, devia estar o maquineta, seu antigo companheiro. Talharia por o dele e dos outros o seu novo destino.
  • Excerto 5
O Gaitinhas avistou Gineto logo à entrada da Feira. Noutros tempos, não lhe teria falado. Mas agora, que deixara a escola, reconheceu-se seu igual em condição.
− Gineto... (…)
− O teu pai quer-te bater. Chegou agora.
− Que tens tu c'o isso?
− Nada. Vim avisar-te.
A resposta confundiu Gineto, que perguntou, já com ar de amigo: − Quem to disse?
− Ouvi eu, na estrada. Diz que fugiste coa féria, há dois dias, e que te rebenta com pancadas.
− Não te rales, que o meu pai não me caça. − E propôs ao Gaitinhas uma volta no carrossel.
− Mas eu não tenho dinheiro...
− Pago eu.
Pararam junto dos carrosséis, que eram dois. O maior, iluminado por lâmpadas multicores, tentava os olhos. Tinha cavalinhos com as patas no ar, fogosos como corcéis de carne e osso; galos de crista alta; bichos variados, sobre um tapete rolante que oscilava como os barcos no rio. O outro, perro e mal iluminado, só tinha cavalinhos.
− Qual queres? − perguntou Gineto.
Gaitinhas demorou a resposta. Olhou o carrossel velho, sem ninguém, e os cavalinhos tristes, parados. A voz rouca do dono parecia chamá-lo. − Vai andar... Vai andar...
− Vamos neste − disse Gaitinhas.
Gineto entregou os dez tostões que Sagui lhe emprestara para ele comprar mais um sorriso de Rosete. As luzes encheram-se de brilho; a campainha anunciou a corrida e chamou mais gente. (…)
− Linda música − exclamou Gaitinhas. Talvez fosse a música do carrossel grande que abafava tudo. Mas de um ou de outro, era linda. Fazia-o esquecer a doença da mãe e os sapatos rotos. O cavalo galopava no espaço, através das estrelas, e ele levava um sorriso nos lábios e a carta de exame para mostrar ao pai...

Para saber mais

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