Difference between revisions of "Figueiredo, Carmen - Livros Proibidos"

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*'''Carmen de Figueiredo'''
 
Carmelinda Miolet de Figueiredo, mais conhecida pelo nome literário de Carmen de Figueiredo (1914- 2006) foi uma profícua escritora e jornalista portuguesa, mas também uma das autoras mais censuradas pelo regime ditatorial do Estado Novo, sendo igualmente abafada pela crítica literária da altura[1].
 
Carmen de Figueiredo escreveu ao todo 15 romances, 3 livros de contos e 1 novela, e publicou mais de mais de 12 mil contos na imprensa portuguesa, tais como o Diário de Notícias, com o qual colaborou durante 27 anos, o Diário Ilustrado, A Capital, e o Correio do Minho. Fundou a Mosaicos-Revista, em 1982, publicação onde foi ainda diretora e editora e onde publicou artigos com o seu nome literário, mas também sob pseudónimos.
 
  
"O romance '''Famintos''' foi acusado, pelo Presidente da Comissão de Censura do Porto, de conter “acidentes trágicos, revelando caracteres mórbidos, aberrações sexuais e outras taras. Com pretensão a obra realista, relata casos amorais e até amores incestuosos, com descrição de imoralidades doentias”. in publico.pt<br />
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*'''Carmen de Figueiredo'''(1914- 2006)<br />
A PIDE censurou a obra “Famintos”, de Carmen de Figueiredo, considerando que esta se “refere a uma vida familiar romanceada, com descrição de acidentes trágicos, revelando caracteres mórbidos, aberrações sexuais e outras taras”.
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Carmelinda Miolet de Figueiredo, mais conhecida pelo nome literário de '''Carmen de Figueiredo'''  foi uma profícua escritora e jornalista portuguesa, mas também uma das autoras mais censuradas pelo regime ditatorial do Estado Novo, que se opunha aos direitos da mulher e à sua emancipação social e sexual. Foi igualmente abafada pela crítica literária da altura.<br />Carmen de Figueiredo escreveu ao todo 15 romances, 3 livros de contos e 1 novela, e publicou mais de mais de 12 mil contos na imprensa portuguesa, tais como o Diário de Notícias, com o qual colaborou durante 27 anos, o Diário Ilustrado, A Capital, e o Correio do Minho. Fundou a Mosaicos-Revista, em 1982, publicação onde foi ainda diretora e editora e onde publicou artigos com o seu nome literário, mas também sob pseudónimos.
'''Famintos''', Carmen de Figueiredo<br />
 
* Excerto 1<br />
 
  
Só os passos de Luís iam acordando o silêncio-amolecido dos caminhos solitários.  Os ignorados modeladores da gleba, esses dormiam já seu sono pesado e bruto.  Engulidos os magros caldos, raro era o que procurava a rua. Só os ralaços, empedernidos em aguardente, cosidos os rostos, donde escorre a cor roxa que não engana, pelas bebedeiras consecutivas, que transformam o homem em farrapo alucinado, apodrecido o sangue e nervos descontrolados – elementos principais da degenerescência da loucura e do crime, pobres e miseráveis elementos, carregados para mais de perigosas taras ancestrais, que infelizmente continuam a enodoar as sociedades, - só esses, rodilhões espúrios que negam a família, atascadas as almas vis em álcool peçonhento, após a ceia saíam, encafuando-se nas tabernas, donde mais tarde, pela hora-morta rolavam aos tropeções, vomitando injúrias desconexas. Ali na vila, eram poucos; quase se apontavam a dedo, merecendo o justo desdém dos vizinhos, magoados com o triste espectáculo da sua devassidão.<br />Bem disposto, liberto do pesado fardo de inquietação que alombara à ida para a Bela-Vista, António meteu agora à estrada nova, pouco se importando com o quilómetro que teria de palmilhar a mais. E, só quando chegou à linha férrea, lhe veio à ideia o recado que sua mãe tanto lhe recomendara para dar ao Linhares, homensinho de mil ofícios, que em toda a vila e arredores era considerado e estimado, pelos muitos favores que prestava. Transações de dinheiro, vendas de prédios, cura de maleitas ruins, enfim, de tudo se encarregava o Linhares, que de tudo aprendera em bem puxados dez anos, perdido entre uma tribú diabólica de índios ferozes, lá no sul do Brasil para onde o levara um tio vagabundo, ao que ele alanzoava, vaidosamente empertigado, mas sem palpável certificado de verdade.<br />- Já não é hoje! E daí, talvez minha mãe pretendesse apenas distrair-me, mandando-me ao Linhares…. Pobre mãe… Bem duro é o caminho agreste e crú do seu penoso calvário… Rodrigo bem podia amenizar-lhe o viver, mas quê? – onde estava o juízo do irmão? Sempre com tonterias, atrás de saias, manchando com impuras dedadas de amor-livre a sua negra batina. Não compreendia aquilo! Cristina não era da mesma opinião, mas aquela irmã, tinha também idéias bem extravagantes…<br />Enfronhado neste emaranhado e confuso solilóquio, ia andando, cabeça baixa, sem pressas. À medida que avançava, os membros tornavam-se-lhe pesados; dir-se-ia que uma quebreira súbita os tomava. A mãe, o irmão, a irmã… Era isso; todos os seres que amava estavam marcados pelo Destino, tatuados a fogo invisível e sinistro…<br />Agora, já não imperava o silêncio de há pouco, que para os lados dos Bujos se estendia. À Cruz-Branca, caminho que trilhava, vagaroso, chegavam em onda apagada, ecos difusos, sonoridades dispersas de vozes vibrantes que a Hora adiantada avolumava, ferindo-lhe os ouvidos, fustigando-lhe os nervos.<br />Os últimos trabalhadores das fábricas, que tinham seu turno de serão, os derradeiros empregados dos correios, que regressavam ao lar, perdidos na babel esverdinhada das bastas silveiras do Corvo, Meãs, Pereira, e outros lugarejos, onde as rendas das míseras e desconfortáveis habitações eram mais acessíveis a seus ganhos pelintras, palmilhavam as congostas, falando alto dos seus dramas de famintos incompreendidos, dizendo à noite a revolta que lhes desiquilibrava os nervos tensos pela labuta árdua e constante, trabalhados de desespero, quando chegados aos tugúrios os filhos lhes pediam o pão que não podiam dar-lhes. E essas vidas ignoradas de famintos, assim se arrastavam sob a noite duma vida inteira de trabalhos, dúvidas e exaustações.<br />Só os bem empregados se fixavam nesse coração azougado de pequeno burgo, atafulhado de gente ávida, tracejadas a almas pelos fios dourados de secretas e altíssimas miragens. Lá, era o ventre onde se geravam anceios grandiosos e mesquinhas intrigas, numa amálgama fantástica de ódios, perseguições e vinganças aos que subiam na escala dos valores sociais; na frente subservientes e mesureiros, bajulavam a torto e a direito, para apunhalar tôrpemente pelas costas. Nesse ventre miserável, pálida miniatura dos grandes citadinos, não faltava a alfurja como máscara de trágicas mandíbulas, camuflada numa farmácia modesta, de fachada corroída pela lepra do tempo, e em cujos escaninhos escorria e alastrava o líquido corrosivo dos mais perigosos venenos. Toda a gentinha o sabia, e todos dela se aproximavam, no ante-goso sádico da complexa volúpia do fruto-proibido.<br />
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*Livro proibido '''Famintos'''<br />
                                                                               
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"O romance '''Famintos''' foi acusado, pelo Presidente da Comissão de Censura do Porto, de conter “acidentes trágicos, revelando caracteres mórbidos, aberrações sexuais e outras taras. Com pretensão a obra realista, relata casos amorais e até amores incestuosos, com descrição de imoralidades doentias”. in publico.pt<br />
* Excerto 2<br />
 
  
  Porque tudo aquilo era inédito, já mais do que uma boca ressabiante de bílis se tinha aberto, censurando tamanha prodigalidade e excentricidades tão loucas. – Ele são passadeiras a perder de vista, ele é ceia lauta para todos os ganhões que apareçam, ele são descantes e bailaricos… - Hum! Aquilo cheira-me a democracia! – sentenciava, entre duas palitadelas de dentes, o porco-sujo do boticário, um tratante de alto lá com ele, que até falsificava os remédios, não se importando que o doente estoirasse o canastro, fizesse falta ou não. Atestasse ele a burrinha, o resto eram lérias. No fim de contas, um assassino à solta, nas costas de quem se batia amigavelmente, não fosse o maroto, por raiva de desesperado, fazer esticar o pernil, de repente, a um qualquer destravado menos cortês. O povoléu odiava-o, mas tragava-o, remordendo para si que se aquele se fosse, podia vir outro pior.<br />O que é certo, porém, é que só as almas torvas e mesquinhas censuravam tão festivo aparato, que por seus traçados de beleza fugia ao vulgar lambarão, distanciando-se com galhardia de velhas e empoeiradas tradições. O “venha a mim”, “como eu não comes tu” eram estribilhos que faziam rir António Luís. A própria sogra, sempre agarrada, sovina como poucas, e a quem, misteriosamente, fora posta a alcunha de Fome Negra (alcunha só repetida à boca pequena…).<br />(…)<br />Precisamente na véspera, chegaram cartas de África. Rodrigo, que durante os primeiros meses se mantivera num obstinado e doloroso silêncio, amarfanhando com tão insólito procedimento a alma angustiada de sua mãe, vinha agora de escrever amiudadas vezes. Nas suas longas cartas de proscrito, estava seu viver na selva, entre os negros, quase animais bravios, que, apesar de tudo quanto se tem dito continuam a vegetar num nível de inferioridade espantosa. O seu estado psíquico é bestialidade e atraso; completa ausência de educação pelo gosto e pela cor. Rodrigo descrevera mesmo a chegada e distribuição de pesados carregamentos, contendo fardos de panos garridos, amachucantes pela violência das ramagens. Para os negros continuava, portanto, a fazer-se na metrópole panos especiais. As grandes fábricas tinham destinados às Áfricas, dum incaracterístico desenho, padrões e cores que faziam doer a vista ao europeu sensível, mas que deslumbrava o pobre ser, que por um pedaço desse pano berrante daria um ano de exaustivo trabalho.<br />
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*Excerto 1<br />
                                                                         
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Só os passos de Luís iam acordando o silêncio-amolecido dos caminhos solitários. Os ignorados modeladores da gleba, esses dormiam seu sono pesado e bruto. Engolidos os magros caldos, raro era o que procurava a rua. Só os ralaços, empedernidos em aguardente, cozidos os rostos, donde escorre a cor roxa que não engana, pelas bebedeiras consecutivas, que transformam o homem em farrapo alucinado, apodrecido o sangue e nervos descontrolados – elementos principais da degenerescência da loucura e do crime, pobres e miseráveis elementos, carregados para mais de perigosas taras ancestrais, que infelizmente continuam a enodoar as sociedades, - só esses, rodilhões espúrios que negam a família, atascadas as almas vis em álcool peçonhento, após a ceia saíam, encafuando-se nas tabernas, donde mais tarde, pela hora-morta rolavam aos tropeções, vomitando injúrias desconexas. Ali na vila, eram poucos; quase se apontavam a dedo, merecendo o justo desdém dos vizinhos, magoados com o triste espectáculo da sua devassidão.<br />
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*Excerto 2<br />
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Bem disposto, liberto do pesado fardo de inquietação que alombara à ida para a Bela-Vista, António meteu agora à estrada nova, pouco se importando com o quilómetro que teria de palmilhar a mais. E, só quando chegou à linha férrea, lhe veio à ideia o recado que sua mãe tanto lhe recomendara para dar ao Linhares, homenzinho de mil ofícios, que em toda a vila e arredores era considerado e estimado, pelos muitos favores que prestava. Transações de dinheiro, vendas de prédios, cura de maleitas ruins, enfim, de tudo se encarregava o Linhares, que de tudo aprendera em bem puxados dez anos, perdido entre uma tribo diabólica de índios ferozes, lá no sul do Brasil para onde o levara um tio vagabundo, ao que ele alanzoava, vaidosamente empertigado, mas sem palpável certificado de verdade.<br />- Já não é hoje! E daí, talvez minha mãe pretendesse apenas distrair-me, mandando-me ao Linhares…. Pobre mãe… Bem duro é o caminho agreste e cru do seu penoso calvário… Rodrigo bem podia amenizar-lhe o viver, mas quê? – onde estava o juízo do irmão? Sempre com tonterias, atrás de saias, manchando com impuras dedadas de amor-livre a sua negra batina. Não compreendia aquilo! Cristina não era da mesma opinião, mas aquela irmã, tinha também ideias bem extravagantes…<br />Enfronhado neste emaranhado e confuso solilóquio, ia andando, cabeça baixa, sem pressas. À medida que avançava, os membros tornavam-se-lhe pesados; dir-se-ia que uma quebreira súbita os tomava. A mãe, o irmão, a irmã… Era isso; todos os seres que amava estavam marcados pelo Destino, tatuados a fogo invisível e sinistro…
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CarmenDeFigueiredo.png CarmenFigueiredolivro.png Famintos.png Manuscrito-carmendefigueiredo.jpg

  • Carmen de Figueiredo(1914- 2006)
Carmelinda Miolet de Figueiredo, mais conhecida pelo nome literário de Carmen de Figueiredo  foi uma profícua escritora e jornalista portuguesa, mas também uma das autoras mais censuradas pelo regime ditatorial do Estado Novo, que se opunha aos direitos da mulher e à sua emancipação social e sexual. Foi igualmente abafada pela crítica literária da altura.
Carmen de Figueiredo escreveu ao todo 15 romances, 3 livros de contos e 1 novela, e publicou mais de mais de 12 mil contos na imprensa portuguesa, tais como o Diário de Notícias, com o qual colaborou durante 27 anos, o Diário Ilustrado, A Capital, e o Correio do Minho. Fundou a Mosaicos-Revista, em 1982, publicação onde foi ainda diretora e editora e onde publicou artigos com o seu nome literário, mas também sob pseudónimos.
  • Livro proibido Famintos
"O romance Famintos foi acusado, pelo Presidente da Comissão de Censura do Porto, de conter “acidentes trágicos, revelando caracteres mórbidos, aberrações sexuais e outras taras. Com pretensão a obra realista, relata casos amorais e até amores incestuosos, com descrição de imoralidades doentias”. in publico.pt
  • Excerto 1
Só os passos de Luís iam acordando o silêncio-amolecido dos caminhos solitários.  Os ignorados modeladores da gleba, esses dormiam já seu sono pesado e bruto.  Engolidos os magros caldos, raro era o que procurava a rua. Só os ralaços, empedernidos em aguardente, cozidos os rostos, donde escorre a cor roxa que não engana, pelas bebedeiras consecutivas, que transformam o homem em farrapo alucinado, apodrecido o sangue e nervos descontrolados – elementos principais da degenerescência da loucura e do crime, pobres e miseráveis elementos, carregados para mais de perigosas taras ancestrais, que infelizmente continuam a enodoar as sociedades, - só esses, rodilhões espúrios que negam a família, atascadas as almas vis em álcool peçonhento, após a ceia saíam, encafuando-se nas tabernas, donde mais tarde, pela hora-morta rolavam aos tropeções, vomitando injúrias desconexas. Ali na vila, eram poucos; quase se apontavam a dedo, merecendo o justo desdém dos vizinhos, magoados com o triste espectáculo da sua devassidão.
  • Excerto 2
Bem disposto, liberto do pesado fardo de inquietação que alombara à ida para a Bela-Vista, António meteu agora à estrada nova, pouco se importando com o quilómetro que teria de palmilhar a mais. E, só quando chegou à linha férrea, lhe veio à ideia o recado que sua mãe tanto lhe recomendara para dar ao Linhares, homenzinho de mil ofícios, que em toda a vila e arredores era considerado e estimado, pelos muitos favores que prestava. Transações de dinheiro, vendas de prédios, cura de maleitas ruins, enfim, de tudo se encarregava o Linhares, que de tudo aprendera em bem puxados dez anos, perdido entre uma tribo diabólica de índios ferozes, lá no sul do Brasil para onde o levara um tio vagabundo, ao que ele alanzoava, vaidosamente empertigado, mas sem palpável certificado de verdade.
- Já não é hoje! E daí, talvez minha mãe pretendesse apenas distrair-me, mandando-me ao Linhares…. Pobre mãe… Bem duro é o caminho agreste e cru do seu penoso calvário… Rodrigo bem podia amenizar-lhe o viver, mas quê? – onde estava o juízo do irmão? Sempre com tonterias, atrás de saias, manchando com impuras dedadas de amor-livre a sua negra batina. Não compreendia aquilo! Cristina não era da mesma opinião, mas aquela irmã, tinha também ideias bem extravagantes…
Enfronhado neste emaranhado e confuso solilóquio, ia andando, cabeça baixa, sem pressas. À medida que avançava, os membros tornavam-se-lhe pesados; dir-se-ia que uma quebreira súbita os tomava. A mãe, o irmão, a irmã… Era isso; todos os seres que amava estavam marcados pelo Destino, tatuados a fogo invisível e sinistro…


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