Difference between revisions of "Dias, Barata - Livros Proibidos"

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*'''Barata Dias''' (1901 - 1971)
 
*'''Barata Dias''' (1901 - 1971)
Escritor neorrealista e, simultaneamente, comerciante  em Lisboa. A Biblioteca Nacional de Portugal lista oito livros de ficção da sua autoria, contos, mas sobretudo romances, dos quais sete foram publicados na década de 1940. Há pouca informação disponível sobre este autor. Entre 1946 e 1947, publicou dois romances de teor neorrealista: '''Amanhã quando Romper o Dia''' (1946), com capa exemplar de António Domingues, e '''Alqueive'''
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Escritor neorrealista e, simultaneamente, comerciante  em Lisboa. A Biblioteca Nacional de Portugal lista oito livros de ficção da sua autoria, contos, mas sobretudo romances, dos quais sete foram publicados na década de 1940. Há pouca informação disponível sobre este autor. Entre 1946 e 1947, publicou dois romances de teor neorrealista: '''Amanhã quando Romper o Dia''' (1946), com capa exemplar de António Domingues, e '''Alqueive'''
  
 
*'''Amanhã Quando Romper o Dia'''<br />
 
*'''Amanhã Quando Romper o Dia'''<br />
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[https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/VidaMundialIlustrada/N261/N261_master/N261.PDF Notícia na Revista Vida Mundial (página 10, Maio de 1946) disponibilizada online pela Hemeroteca Digital de Lisboa]
 
[https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/VidaMundialIlustrada/N261/N261_master/N261.PDF Notícia na Revista Vida Mundial (página 10, Maio de 1946) disponibilizada online pela Hemeroteca Digital de Lisboa]
  
*Excerto 1
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*'''Excerto 1'''
 
  Desde os bancos da escola primária, que Luís Torres vinha sofrendo insinuações afrontosas dos seus condiscípulos; mas agora, que cursava advocacia, por consequência mais conhecedor dos direitos que, por natureza, pertencem ao homem, era ele próprio a penitenciar-se, dando-lhes razão. Enquanto criança, os companheiros irritavam-no, e ele, irado, agredia-os, consoante as suas forças; não admitia que censurassem o modo de vida honesto de seus pais. Um dia, porém, quando, durante as férias grandes, se lhe proporcionou observar, com olhos de futuro homem de leis, o viver miserável da gente da sua aldeia, caiu em si, e compreendeu então os provocadores.<br />Seu pai era proprietário de uma estância de madeiras, situada no centro de maior produção de mobílias, numa freguesia do distrito do Porto. Quase todos os fabricantes daqueles sítios se abasteciam ali, desde há muitos anos; disso lembra-se Luís, porque, quando era menino, os marceneiros clientes da estância ofereciam-lhe carrinhos e toda a espécie de brinquedos de madeira.<br />Em toda a parte do país, quem conhece um pouco a indústria mobiliária, classifica de escravos esses artistas marceneiros do Norte. Por isso os meninos da escola, à mais leve discussão com o seu condiscípulo, lhe atiravam em rosto, para o vexar, com a proveniência do dinheiro com que o pai lhe custeava os estudos. Evidentemente…isto desgostava-o; e, apesar da sua franzina compleição, o nervoso levava-o, por vezes, a defender-se a murro, o que, para mal dos seus pecados, agravava o ódio dos injuriadores. Ao saírem da escola, os atrevidos formavam grupos, e, por dá cá aquela palha, zás:<br />- Teu pai anda lá a explorar os escravos para tu estudares. Deves seguir a carreira de advogado, porque, um dia, virás a ser de grande utilidade, quando fores obrigado a defendê-los…<br />E outras coisas neste género.<br />Estas afrontas enraiveciam o pequeno Luís; e, para seu maior tormento, os companheiros alcunharam-no de “Príncipe da Madeira”.(Pág.7-8)
 
  Desde os bancos da escola primária, que Luís Torres vinha sofrendo insinuações afrontosas dos seus condiscípulos; mas agora, que cursava advocacia, por consequência mais conhecedor dos direitos que, por natureza, pertencem ao homem, era ele próprio a penitenciar-se, dando-lhes razão. Enquanto criança, os companheiros irritavam-no, e ele, irado, agredia-os, consoante as suas forças; não admitia que censurassem o modo de vida honesto de seus pais. Um dia, porém, quando, durante as férias grandes, se lhe proporcionou observar, com olhos de futuro homem de leis, o viver miserável da gente da sua aldeia, caiu em si, e compreendeu então os provocadores.<br />Seu pai era proprietário de uma estância de madeiras, situada no centro de maior produção de mobílias, numa freguesia do distrito do Porto. Quase todos os fabricantes daqueles sítios se abasteciam ali, desde há muitos anos; disso lembra-se Luís, porque, quando era menino, os marceneiros clientes da estância ofereciam-lhe carrinhos e toda a espécie de brinquedos de madeira.<br />Em toda a parte do país, quem conhece um pouco a indústria mobiliária, classifica de escravos esses artistas marceneiros do Norte. Por isso os meninos da escola, à mais leve discussão com o seu condiscípulo, lhe atiravam em rosto, para o vexar, com a proveniência do dinheiro com que o pai lhe custeava os estudos. Evidentemente…isto desgostava-o; e, apesar da sua franzina compleição, o nervoso levava-o, por vezes, a defender-se a murro, o que, para mal dos seus pecados, agravava o ódio dos injuriadores. Ao saírem da escola, os atrevidos formavam grupos, e, por dá cá aquela palha, zás:<br />- Teu pai anda lá a explorar os escravos para tu estudares. Deves seguir a carreira de advogado, porque, um dia, virás a ser de grande utilidade, quando fores obrigado a defendê-los…<br />E outras coisas neste género.<br />Estas afrontas enraiveciam o pequeno Luís; e, para seu maior tormento, os companheiros alcunharam-no de “Príncipe da Madeira”.(Pág.7-8)
  
*Excerto 2                                                         
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*'''Excerto 2'''                                                        
 
  Debaixo de uma parreira, trabalhavam pai, mãe e um filho. Quando viram o visitante, ficaram parados, cheios de medo. Julgavam que era o fiscal das contribuições. O marceneiro chefe, já entrado na idade, parecia um espectro. Corria-lhe a cada canto da boca um fio de sangue pálido, mas engrossado com o pó fino da serradura. Talvez nem desse por isso, o pobre homem! Ali ficou sem saber o que havia de fazer, a olhar para a mulher, que se conservava encostada ao torno de pedal, com cara de quem estivera a cometer um crime. O filho, rapazola franzino e com cara de esfomeado, afastou-se do banco, e foi para junto do pai. E Luís, espectador envergonhado, sem saber o que dizer, perguntou-lhes para quem era a mobília que tinham em mãos.<br />- É para o armazém. Nós aqui não vendemos nada. – Disse o homem ao mesmo tempo que limpava a boca com as costas da mão.<br />- Mas é para o porto ou para alguém daqui?<br />- Isso, para o Porto, já lá vai esse tempo!... Agora trabalhamos noutras condições…<br />- Melhores, ou piores? – perguntou Luís, como se estivesse a fazer um inquérito formal.<br />- Nós nem chegamos a saber. Só sabemos que perdemos tudo quanto tínhamos… Esta casa, apesar de não prestar para nada, já lá vai. A casa e tudo… E o que havemos de fazer? Não temos outro modo de vida…- e, decidido a deixar-se prender, fez a pergunta: - O senhor vem para nos fazer mal?
 
  Debaixo de uma parreira, trabalhavam pai, mãe e um filho. Quando viram o visitante, ficaram parados, cheios de medo. Julgavam que era o fiscal das contribuições. O marceneiro chefe, já entrado na idade, parecia um espectro. Corria-lhe a cada canto da boca um fio de sangue pálido, mas engrossado com o pó fino da serradura. Talvez nem desse por isso, o pobre homem! Ali ficou sem saber o que havia de fazer, a olhar para a mulher, que se conservava encostada ao torno de pedal, com cara de quem estivera a cometer um crime. O filho, rapazola franzino e com cara de esfomeado, afastou-se do banco, e foi para junto do pai. E Luís, espectador envergonhado, sem saber o que dizer, perguntou-lhes para quem era a mobília que tinham em mãos.<br />- É para o armazém. Nós aqui não vendemos nada. – Disse o homem ao mesmo tempo que limpava a boca com as costas da mão.<br />- Mas é para o porto ou para alguém daqui?<br />- Isso, para o Porto, já lá vai esse tempo!... Agora trabalhamos noutras condições…<br />- Melhores, ou piores? – perguntou Luís, como se estivesse a fazer um inquérito formal.<br />- Nós nem chegamos a saber. Só sabemos que perdemos tudo quanto tínhamos… Esta casa, apesar de não prestar para nada, já lá vai. A casa e tudo… E o que havemos de fazer? Não temos outro modo de vida…- e, decidido a deixar-se prender, fez a pergunta: - O senhor vem para nos fazer mal?
  
*Excerto 3<br />
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*'''Excerto 3'''
 
  Os três meninos ficaram ali ao pé, em volta do pai, que agora permanecia mais calmo; o mais novito encostou-lhe a cabeça às pernas. Os outros, de boca aberta, fixavam o estranho, a seu ver, menos perigoso. Sobre as calças do marceneiro, que eram de cotim dos militares, passeava um piolho grande. O menino do meio começou a mexer-lhe com um graveto, como se se tratasse de um animal muito familiar. Luís viu, mas não disse nada. Começou a estar incomodado. Mário percebeu nele qualquer hesitação, e disse aos filhos que fossem para a oficina ou para a rua. O mais novito, que continuava a olhar para o parasita, disse, para descargo da sua consciência:<br />- Não é meu…<br />E foi para a oficina. O menino do meio ficou envergonhado e defendeu-se também:<br />- Pois não; nem é teu nem meu, é do pai; os nossos são brancos – E foi correndo atrás do irmão.
 
  Os três meninos ficaram ali ao pé, em volta do pai, que agora permanecia mais calmo; o mais novito encostou-lhe a cabeça às pernas. Os outros, de boca aberta, fixavam o estranho, a seu ver, menos perigoso. Sobre as calças do marceneiro, que eram de cotim dos militares, passeava um piolho grande. O menino do meio começou a mexer-lhe com um graveto, como se se tratasse de um animal muito familiar. Luís viu, mas não disse nada. Começou a estar incomodado. Mário percebeu nele qualquer hesitação, e disse aos filhos que fossem para a oficina ou para a rua. O mais novito, que continuava a olhar para o parasita, disse, para descargo da sua consciência:<br />- Não é meu…<br />E foi para a oficina. O menino do meio ficou envergonhado e defendeu-se também:<br />- Pois não; nem é teu nem meu, é do pai; os nossos são brancos – E foi correndo atrás do irmão.
 
                                                          
 
                                                          
*Excerto 4<br />
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*'''Excerto 4'''
 
  Importa agora esclarecer qual o motivo de tão grande interesse que os armazenistas manifestavam, em não querer ver os marceneiros protegidos. Assaltara-os o receio de que os lojistas da cidade, especificamente os da praça de Lisboa, um dia se dirigissem ao local produtor, e entrassem em negociações com aquela grande casa, onde as mobílias se fabricavam em boas condições de preço e com abundância. Mas suas ameaças também lhes poderiam sair caras, porque, de facto, eles estavam agora na frente de um homem inteligente, que era Luís. Este, não fora explorador de escravos, como seu pai o fora. Tinha em suas mãos a alavanca com que poderia mover a classe dos marceneiros; a questão estava em não olhar aos prejuízos que viriam afetar os armazenistas da cidade. E ele bem sabia que os intermediários são, em toda a parte do mundo, os causadores da miséria que esmaga os trabalhadores; que, enquanto aqueles ostentam luxuosos automóveis, estes quase não ganham para o pão que os alimenta. Ele, Luís, havia lido obras e obras dos que tinham consumido suas forças a projetar sobre os homens a luz da Verdade.
 
  Importa agora esclarecer qual o motivo de tão grande interesse que os armazenistas manifestavam, em não querer ver os marceneiros protegidos. Assaltara-os o receio de que os lojistas da cidade, especificamente os da praça de Lisboa, um dia se dirigissem ao local produtor, e entrassem em negociações com aquela grande casa, onde as mobílias se fabricavam em boas condições de preço e com abundância. Mas suas ameaças também lhes poderiam sair caras, porque, de facto, eles estavam agora na frente de um homem inteligente, que era Luís. Este, não fora explorador de escravos, como seu pai o fora. Tinha em suas mãos a alavanca com que poderia mover a classe dos marceneiros; a questão estava em não olhar aos prejuízos que viriam afetar os armazenistas da cidade. E ele bem sabia que os intermediários são, em toda a parte do mundo, os causadores da miséria que esmaga os trabalhadores; que, enquanto aqueles ostentam luxuosos automóveis, estes quase não ganham para o pão que os alimenta. Ele, Luís, havia lido obras e obras dos que tinham consumido suas forças a projetar sobre os homens a luz da Verdade.
 
                                                              
 
                                                              
*Excerto 5<br />
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*'''Excerto 5'''
 
  E Luís aproveitou a ofensa aos marceneiros para contar o que o operário doente dissera.<br />- Sabe, senhor diretor? O homem, desde que tem raciocínio, mesmo sem cultura – é a própria natureza – reconhece um direito de que é credor. Ainda há dias, um desses brutinhos – como o senhor acaba de dizer – que se encontra muito doente, e a quem tenho mandado dar algum dinheiro, a título de empréstimo, quando o fui visitar, saiu-se com uma coisa que me deixou estupefacto. Com a máxima simplicidade, perguntou-me se o Estado, a quem pagavam uma contribuição para poderem trabalhar, não lhes dava nada quando eles se encontravam impossibilitados. Eu disse-lhe que não, está claro… Com efeito, fiquei a magicar na razão que ele julgava ter. Eu não quero fazer comentários a tal respeito. Minha condição mesocrática não me dá esse direito. Sei bem, um pouco melhor do que o marceneiro, que os Estados não se criaram para socorrer os seus súbditos… As suas funções têm sido outras. E, se conto isto, é para o senhor apreciar o instinto dos homens, que nem sequer sabem escrever o seu nome.
 
  E Luís aproveitou a ofensa aos marceneiros para contar o que o operário doente dissera.<br />- Sabe, senhor diretor? O homem, desde que tem raciocínio, mesmo sem cultura – é a própria natureza – reconhece um direito de que é credor. Ainda há dias, um desses brutinhos – como o senhor acaba de dizer – que se encontra muito doente, e a quem tenho mandado dar algum dinheiro, a título de empréstimo, quando o fui visitar, saiu-se com uma coisa que me deixou estupefacto. Com a máxima simplicidade, perguntou-me se o Estado, a quem pagavam uma contribuição para poderem trabalhar, não lhes dava nada quando eles se encontravam impossibilitados. Eu disse-lhe que não, está claro… Com efeito, fiquei a magicar na razão que ele julgava ter. Eu não quero fazer comentários a tal respeito. Minha condição mesocrática não me dá esse direito. Sei bem, um pouco melhor do que o marceneiro, que os Estados não se criaram para socorrer os seus súbditos… As suas funções têm sido outras. E, se conto isto, é para o senhor apreciar o instinto dos homens, que nem sequer sabem escrever o seu nome.
 
                                                      
 
                                                      
*Excerto 6<br />
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*'''Excerto 6'''
 
  - Então… Nós não devemos continuar nesta pelintrice, descalços e a trabalhar à mata cavalos. Ao menos, que um dia possamos comprar calçado. Quais são os marceneiros que têm sapatos ou botas? O Justo, o pai dele, e poucos mais. Esses, mesmo, é porque o compraram em bom tempo.<br />- Só agora – disse o Filipe – que o Clemente apareceu com estas coisas, é que todos falam. Até aqui…<br />- Está bem, homem. Os escravos, em África, também foram humildes até um dia. Depois, essa coisa do chicote teve um fim. É preciso ver que nós somos filhos de Deus, como os do Sul. Além disso, somos os culpados, como muito bem disse o Clemente, da miséria deles. São uns “gaijos” de coragem… ouvinte e cinco ou nada.<br />Se a agitadora iniciativa lhes tivesse aparecido noutros tempos, quando, na verdade, não tinham trabalho nem pão, eles se recusariam a deixar-se influenciar com tais ideias. Mas também nunca foram os famintos que defenderam os interesses da colectividade. Não é no último sopro da vida que o homem pode reconstruir uma obra em ruínas. É enquanto a sensibilidade está intacta, os músculos duros, e a inteligência o conduz à união. O mau é quando os dirigentes pretendem alvejar um fim, tão diferente daquele que apregoam como a noite do dia…
 
  - Então… Nós não devemos continuar nesta pelintrice, descalços e a trabalhar à mata cavalos. Ao menos, que um dia possamos comprar calçado. Quais são os marceneiros que têm sapatos ou botas? O Justo, o pai dele, e poucos mais. Esses, mesmo, é porque o compraram em bom tempo.<br />- Só agora – disse o Filipe – que o Clemente apareceu com estas coisas, é que todos falam. Até aqui…<br />- Está bem, homem. Os escravos, em África, também foram humildes até um dia. Depois, essa coisa do chicote teve um fim. É preciso ver que nós somos filhos de Deus, como os do Sul. Além disso, somos os culpados, como muito bem disse o Clemente, da miséria deles. São uns “gaijos” de coragem… ouvinte e cinco ou nada.<br />Se a agitadora iniciativa lhes tivesse aparecido noutros tempos, quando, na verdade, não tinham trabalho nem pão, eles se recusariam a deixar-se influenciar com tais ideias. Mas também nunca foram os famintos que defenderam os interesses da colectividade. Não é no último sopro da vida que o homem pode reconstruir uma obra em ruínas. É enquanto a sensibilidade está intacta, os músculos duros, e a inteligência o conduz à união. O mau é quando os dirigentes pretendem alvejar um fim, tão diferente daquele que apregoam como a noite do dia…
  

Latest revision as of 15:52, 18 April 2024

BarataDias.jpg AmanhãBarataDias.jpg Dias, Barata - Amanha quando romper o dia - censura.jpg

  • Barata Dias (1901 - 1971)

Escritor neorrealista e, simultaneamente, comerciante em Lisboa. A Biblioteca Nacional de Portugal lista oito livros de ficção da sua autoria, contos, mas sobretudo romances, dos quais sete foram publicados na década de 1940. Há pouca informação disponível sobre este autor. Entre 1946 e 1947, publicou dois romances de teor neorrealista: Amanhã quando Romper o Dia (1946), com capa exemplar de António Domingues, e Alqueive

  • Amanhã Quando Romper o Dia

Romance publicado em 1946, num tempo de plena actividade do movimento neorrealista. "Esta obra de Barata Dias terá despertado imediatamente o interesse da censura. De facto, as diligências de «proibição e apreensão do livro» (conforme se pode ler no «Processo n.º 79», depositado na Torre do Tombo) são desencadeadas logo em Janeiro de 1947, num ofício dirigido ao Director da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. A resposta a esta solicitação, datada de 4 de Fevereiro do mesmo ano, vem informar que terão sido apreendidos 26 exemplares da obra. Por outro lado, a leitura dos diversos autos de apreensão, redigidos ainda no final de Janeiro, esclarece-nos acerca da rapidez com que as ordens terão sido executadas, tendo delas resultado o desaparecimento das cópias do romance existentes em diversas casas comerciais de Lisboa."In: Jornal Público
Dias, Barata - Amanha quando romper o dia - censura-excerto.jpg BarataDiasjornalVidaMundial.jpg
Notícia na Revista Vida Mundial (página 10, Maio de 1946) disponibilizada online pela Hemeroteca Digital de Lisboa

  • Excerto 1
Desde os bancos da escola primária, que Luís Torres vinha sofrendo insinuações afrontosas dos seus condiscípulos; mas agora, que cursava advocacia, por consequência mais conhecedor dos direitos que, por natureza, pertencem ao homem, era ele próprio a penitenciar-se, dando-lhes razão. Enquanto criança, os companheiros irritavam-no, e ele, irado, agredia-os, consoante as suas forças; não admitia que censurassem o modo de vida honesto de seus pais. Um dia, porém, quando, durante as férias grandes, se lhe proporcionou observar, com olhos de futuro homem de leis, o viver miserável da gente da sua aldeia, caiu em si, e compreendeu então os provocadores.
Seu pai era proprietário de uma estância de madeiras, situada no centro de maior produção de mobílias, numa freguesia do distrito do Porto. Quase todos os fabricantes daqueles sítios se abasteciam ali, desde há muitos anos; disso lembra-se Luís, porque, quando era menino, os marceneiros clientes da estância ofereciam-lhe carrinhos e toda a espécie de brinquedos de madeira.
Em toda a parte do país, quem conhece um pouco a indústria mobiliária, classifica de escravos esses artistas marceneiros do Norte. Por isso os meninos da escola, à mais leve discussão com o seu condiscípulo, lhe atiravam em rosto, para o vexar, com a proveniência do dinheiro com que o pai lhe custeava os estudos. Evidentemente…isto desgostava-o; e, apesar da sua franzina compleição, o nervoso levava-o, por vezes, a defender-se a murro, o que, para mal dos seus pecados, agravava o ódio dos injuriadores. Ao saírem da escola, os atrevidos formavam grupos, e, por dá cá aquela palha, zás:
- Teu pai anda lá a explorar os escravos para tu estudares. Deves seguir a carreira de advogado, porque, um dia, virás a ser de grande utilidade, quando fores obrigado a defendê-los…
E outras coisas neste género.
Estas afrontas enraiveciam o pequeno Luís; e, para seu maior tormento, os companheiros alcunharam-no de “Príncipe da Madeira”.(Pág.7-8)
  • Excerto 2
Debaixo de uma parreira, trabalhavam pai, mãe e um filho. Quando viram o visitante, ficaram parados, cheios de medo. Julgavam que era o fiscal das contribuições. O marceneiro chefe, já entrado na idade, parecia um espectro. Corria-lhe a cada canto da boca um fio de sangue pálido, mas engrossado com o pó fino da serradura. Talvez nem desse por isso, o pobre homem! Ali ficou sem saber o que havia de fazer, a olhar para a mulher, que se conservava encostada ao torno de pedal, com cara de quem estivera a cometer um crime. O filho, rapazola franzino e com cara de esfomeado, afastou-se do banco, e foi para junto do pai. E Luís, espectador envergonhado, sem saber o que dizer, perguntou-lhes para quem era a mobília que tinham em mãos.
- É para o armazém. Nós aqui não vendemos nada. – Disse o homem ao mesmo tempo que limpava a boca com as costas da mão.
- Mas é para o porto ou para alguém daqui?
- Isso, para o Porto, já lá vai esse tempo!... Agora trabalhamos noutras condições…
- Melhores, ou piores? – perguntou Luís, como se estivesse a fazer um inquérito formal.
- Nós nem chegamos a saber. Só sabemos que perdemos tudo quanto tínhamos… Esta casa, apesar de não prestar para nada, já lá vai. A casa e tudo… E o que havemos de fazer? Não temos outro modo de vida…- e, decidido a deixar-se prender, fez a pergunta: - O senhor vem para nos fazer mal?
  • Excerto 3
Os três meninos ficaram ali ao pé, em volta do pai, que agora permanecia mais calmo; o mais novito encostou-lhe a cabeça às pernas. Os outros, de boca aberta, fixavam o estranho, a seu ver, menos perigoso. Sobre as calças do marceneiro, que eram de cotim dos militares, passeava um piolho grande. O menino do meio começou a mexer-lhe com um graveto, como se se tratasse de um animal muito familiar. Luís viu, mas não disse nada. Começou a estar incomodado. Mário percebeu nele qualquer hesitação, e disse aos filhos que fossem para a oficina ou para a rua. O mais novito, que continuava a olhar para o parasita, disse, para descargo da sua consciência:
- Não é meu…
E foi para a oficina. O menino do meio ficou envergonhado e defendeu-se também:
- Pois não; nem é teu nem meu, é do pai; os nossos são brancos – E foi correndo atrás do irmão.
  • Excerto 4
Importa agora esclarecer qual o motivo de tão grande interesse que os armazenistas manifestavam, em não querer ver os marceneiros protegidos. Assaltara-os o receio de que os lojistas da cidade, especificamente os da praça de Lisboa, um dia se dirigissem ao local produtor, e entrassem em negociações com aquela grande casa, onde as mobílias se fabricavam em boas condições de preço e com abundância. Mas suas ameaças também lhes poderiam sair caras, porque, de facto, eles estavam agora na frente de um homem inteligente, que era Luís. Este, não fora explorador de escravos, como seu pai o fora. Tinha em suas mãos a alavanca com que poderia mover a classe dos marceneiros; a questão estava em não olhar aos prejuízos que viriam afetar os armazenistas da cidade. E ele bem sabia que os intermediários são, em toda a parte do mundo, os causadores da miséria que esmaga os trabalhadores; que, enquanto aqueles ostentam luxuosos automóveis, estes quase não ganham para o pão que os alimenta. Ele, Luís, havia lido obras e obras dos que tinham consumido suas forças a projetar sobre os homens a luz da Verdade.
                                                           
  • Excerto 5
E Luís aproveitou a ofensa aos marceneiros para contar o que o operário doente dissera.
- Sabe, senhor diretor? O homem, desde que tem raciocínio, mesmo sem cultura – é a própria natureza – reconhece um direito de que é credor. Ainda há dias, um desses brutinhos – como o senhor acaba de dizer – que se encontra muito doente, e a quem tenho mandado dar algum dinheiro, a título de empréstimo, quando o fui visitar, saiu-se com uma coisa que me deixou estupefacto. Com a máxima simplicidade, perguntou-me se o Estado, a quem pagavam uma contribuição para poderem trabalhar, não lhes dava nada quando eles se encontravam impossibilitados. Eu disse-lhe que não, está claro… Com efeito, fiquei a magicar na razão que ele julgava ter. Eu não quero fazer comentários a tal respeito. Minha condição mesocrática não me dá esse direito. Sei bem, um pouco melhor do que o marceneiro, que os Estados não se criaram para socorrer os seus súbditos… As suas funções têm sido outras. E, se conto isto, é para o senhor apreciar o instinto dos homens, que nem sequer sabem escrever o seu nome.
  • Excerto 6
- Então… Nós não devemos continuar nesta pelintrice, descalços e a trabalhar à mata cavalos. Ao menos, que um dia possamos comprar calçado. Quais são os marceneiros que têm sapatos ou botas? O Justo, o pai dele, e poucos mais. Esses, mesmo, é porque o compraram em bom tempo.
- Só agora – disse o Filipe – que o Clemente apareceu com estas coisas, é que todos falam. Até aqui…
- Está bem, homem. Os escravos, em África, também foram humildes até um dia. Depois, essa coisa do chicote teve um fim. É preciso ver que nós somos filhos de Deus, como os do Sul. Além disso, somos os culpados, como muito bem disse o Clemente, da miséria deles. São uns “gaijos” de coragem… ouvinte e cinco ou nada.
Se a agitadora iniciativa lhes tivesse aparecido noutros tempos, quando, na verdade, não tinham trabalho nem pão, eles se recusariam a deixar-se influenciar com tais ideias. Mas também nunca foram os famintos que defenderam os interesses da colectividade. Não é no último sopro da vida que o homem pode reconstruir uma obra em ruínas. É enquanto a sensibilidade está intacta, os músculos duros, e a inteligência o conduz à união. O mau é quando os dirigentes pretendem alvejar um fim, tão diferente daquele que apregoam como a noite do dia…

AlqueiveBarataDias.jpg

No romance «Alqueive» o autor denuncia as condições de vida do povo simples que vivia oprimido pelos ricos e poderosos, o que lhe valeu ser proibido e apreendido pela PIDE, pelo seu conteúdo crítico. «Alqueive» foi publicado em 1947, com a legenda «Romance de um cavador», constituindo uma crítica social, intolerada na época por pintar, em tons sombrios, a vida dura no Portugal rural dos tempos do salazarismo.
Trata-se de um romance de escrita simples cuja ação corre sem parar, expondo em termos crus a vida dos assalariados rurais, que trabalham de sol a sol e mal ganham para a côdea. O Toino é um pobre cavador que trabalha arduamente no sonho de um dia possuir um torrão. Ilusão longínqua para quem é sério, porque há que atender ao ensinamento de S. Mateus, cuja citação serve de epígrafe ao livro: «Ao que tem se lhe dará, e terá com abundância; ao que não tem, até o que tenha lhe será tirado».Querendo juntar dinheiro para comprar uma porção de terra que ele mesmo desbravara, parte para Lisboa, onde arranjou emprego numa serração, sujeitando-se a um trabalho duro, que em poucas semanas lhe arruinará a saúde. De início procurou alimentar-se para manter as forças, embora o comer fosse frugal: «Meio-dia e o Toino foi almoçar à taberna. Felizmente que trouxera dinheiro para empatar na alimentação de uma semana, ou mais. Comeu metade de um pão e dois carapaus, e bebeu meio litro de vinho.» Mas, ganhando pouco e precisando de juntar muito dinheiro, decidiu diminuir as despesas: «Se até ali o Toino comia pouco, para poupar, passou a diminuir a ração. Rebentaria, mas, naquele ano, havia de salvar-se. (…) Nunca mais comeu à frente de gente. Escondia-se por entre as pilhas de madeira e só se alimentava de pão.»
E a comer apenas um naco de pão e trabalhando duramente, o homem «que amansara uma terra brava» adoeceu e regressou à terra para junto da família, levando apenas a quantia suficiente para pagar «a dívida que a sua legítima ambição lhe ocasionara». «Sabores Literários», crónica de Paulo Leitão Batista
[1]

Para saber mais:

http://jornal.publico.pt/magoo/noticia.aspx?a=2023&m=07&d=24&uid&id=41849775&sid=137004

https://capeiaarraiana.pt/2010/06/19/pao-e-carapaus-assados-de-barata-dias/

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