Difference between revisions of "Cesariny, Mário - Livro Proibido"

From Wikipédia de Autores Algarvios
Jump to: navigation, search
Line 38: Line 38:
 
<br />
 
<br />
 
Pode-se não escrever<br />
 
Pode-se não escrever<br />
[[File:PoemaAtuacaoEscritaDePedroOom-noLivroAIntervençaoSurreaslista-de-MarioCesariny.jpg|250px]]
+
[[File:PoemaAtuacaoEscritaDePedroOom-noLivroAIntervençaoSurreaslista-de-MarioCesariny.jpg|250px]]<br />
 +
<br />
 +
<br />
 +
'''OUTROS POEMAS DE MÁRIO CESARINI'''
 +
*'''''Em Todas as Ruas te Encontro'''''
 +
Em todas as ruas te encontro
 +
em todas as ruas te perco
 +
conheço tão bem o teu corpo
 +
sonhei tanto a tua figura
 +
que é de olhos fechados que eu ando
 +
a limitar a tua altura
 +
e bebo a água e sorvo o ar
 +
que te atravessou a cintura
 +
Tanto tão perto tão real
 +
que o meu corpo se transfigura
 +
e toca o seu próprio elemento
 +
num corpo que já não é seu
 +
num rio que desapareceu
 +
onde um braço teu me procura
 +
Em todas as ruas te encontro
 +
em todas as ruas te perco
 +
 
 +
'''Mário Cesariny''' em '''Pena Capital'''
 +
 
 +
 
 +
*'''''Pastelaria'''''
 +
 
 +
Afinal o que importa não é a literatura
 +
nem a crítica de arte nem a câmara escura
 +
 
 +
 
 +
Afinal o que importa não é bem o negócio
 +
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
 +
 
 +
 
 +
Afinal o que importa não é ser novo e galante
 +
- ele há tanta maneira de compor uma estante!
 +
 
 +
 
 +
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
 +
e cair verticalmente no vício
 +
 
 +
 
 +
Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
 +
antes de haver cinema madame blanche e parola
 +
 
 +
 
 +
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
 +
porque assim como assim ainda há muita gente que come
 +
 
 +
 
 +
Que afinal o que importa é não ter medo
 +
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
 +
Gerente! Este leite está azedo!
 +
 
 +
 
 +
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
 +
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo
 +
 
 +
 
 +
No riso admirável de quem sabe e gosta
 +
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
 +
 
 +
'''Mário Cesariny''' em '''Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano'''
 +
 
 +
 
 +
 +
*'''''Um Grande Utensílio de Amor'''''
 +
 
 +
um grande utensílio de amor
 +
meia laranja de alegria
 +
dez toneladas de suor
 +
um minuto de geometria
 +
 
 +
 
 +
quatro rimas sem coração
 +
dois desastres sem novidade
 +
um preto que vai para o sertão
 +
um branco que vem à cidade
 +
 
 +
 
 +
uma meia-tinta no sol
 +
cinco dias de angústia no foro
 +
o cigarro a descer o paiol
 +
a trepanação do touro
 +
 
 +
 
 +
mil bocas a ver e a contar
 +
uma altura de fazer turismo
 +
um arranha-céus a ripar
 +
meia-quarta de cristianismo
 +
 
 +
 
 +
uma prancha sem porta sem escada
 +
um grifo nas linhas da mão
 +
uma Ibéria muito desgraçada
 +
um Rossio de solidão
 +
 
 +
'''Mário Cesariny''' em '''Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano'''

Revision as of 13:17, 3 March 2024

MarioCesariny-Fotog.jpg MarioCesariny-AIntervencaoSurrealista-capa.jpg MarioCesariny-PIDE-documento.jpg Relogio-de-mario-cesariny.jpg

  • Mário Cesariny (1923 - 2006]
Poeta e artista plástico. Militante e defensor leal do movimento Surrealista. A sua obra poética e plástica contribui para a construção da história contemporânea. Foi detido várias vezes pela PIDE. Leituras de excertos do livro proibido A Intervenção surrealista.
  • Livro Proibido - A Intervenção Surrealista
Apesar do carácter transgressor dos seus poemas, Mário Cesariny teve a sorte de nunca chegar a ver os seus livros [de poesia] apreendidos pela censura. Os livros podiam passar despercebidos mas Mário Cesariny não passava. Antes do fim da ditadura, esteve detido em várias ocasiões por suspeitas de vagabundagem, “um termo que se aplicava a pessoas assim um bocado esquisitas” — os anarquistas, videntes, blasfemos e revoltosos e homossexuais. Apesar de ter sido frequentemente detido pela polícia, o artista voltava sempre à vida de antes".[1]
  • Excerto 1, pág. 89.
Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna. É imaginação o livre exercício do espírito que servindo-se de um ou mais aspetos do «real» passa lenta ou rapidamente ao extremo limite deste para alcançar, pouco importa em que margens, o objeto real de um irreal conquistado no espírito. Acelerar este processo levando-o a um ponto em que se torne impossível falar de real e irreal (negação da negação anterior), produzir um objeto onde tudo, simultaneamente, tem as propriedades da verdade e do erro, da razão e da loucura, do que foi encontrado e do que foi perdido, é transformar a realidade depois de a haver transtornado — é fixar, violentanto a realidade «presente», um novo real poético (uno). Esse real poético dá-o o surrealismo, reunindo, até hoje insuperavelmente, Apolo e Dionisos, Vénus Urânia e Vénus Anadiómena, Ocultismo e Magia.

Excerto1-Imaginacao-Cesariny-AIntervencaoSurrealista1948-pag89.png


  • Poema Cocreção de Saturno, páginas 124 a 126.

PoemaDeCesariny-ConcrecaoDeSaturno1-p124.jpg PoemaDeCesariny-ConcrecaoDeSaturno2-p125.jpg PoemaDeCesariny-ConcrecaoDeSaturno3-p126.jpg
Nota: aumente as imagens acima ou veja o poema num ficheiro pdf aqui


  • Poema Atuação Escrita de Pedro Oom no livro de Cesariny, A intervenção Surrealista, pág. 185.

Actuação Escrita

Pode-se escrever

Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada

Pode-se não escrever
PoemaAtuacaoEscritaDePedroOom-noLivroAIntervençaoSurreaslista-de-MarioCesariny.jpg


OUTROS POEMAS DE MÁRIO CESARINI

  • Em Todas as Ruas te Encontro

Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco conheço tão bem o teu corpo sonhei tanto a tua figura que é de olhos fechados que eu ando a limitar a tua altura e bebo a água e sorvo o ar que te atravessou a cintura Tanto tão perto tão real que o meu corpo se transfigura e toca o seu próprio elemento num corpo que já não é seu num rio que desapareceu onde um braço teu me procura Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco

Mário Cesariny em Pena Capital


  • Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura


Afinal o que importa não é bem o negócio nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio


Afinal o que importa não é ser novo e galante - ele há tanta maneira de compor uma estante!


Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício e cair verticalmente no vício


Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola antes de haver cinema madame blanche e parola


Que afinal o que importa não é haver gente com fome porque assim como assim ainda há muita gente que come


Que afinal o que importa é não ter medo de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: Gerente! Este leite está azedo!


Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo


No riso admirável de quem sabe e gosta ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny em Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano


  • Um Grande Utensílio de Amor

um grande utensílio de amor meia laranja de alegria dez toneladas de suor um minuto de geometria


quatro rimas sem coração dois desastres sem novidade um preto que vai para o sertão um branco que vem à cidade


uma meia-tinta no sol cinco dias de angústia no foro o cigarro a descer o paiol a trepanação do touro


mil bocas a ver e a contar uma altura de fazer turismo um arranha-céus a ripar meia-quarta de cristianismo


uma prancha sem porta sem escada um grifo nas linhas da mão uma Ibéria muito desgraçada um Rossio de solidão

Mário Cesariny em Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano