Difference between revisions of "Cesariny, Mário - Livro Proibido"

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*'''Mário Cesariny''' (1923 - 2006]
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*'''Mário Cesariny''' (1923 - 2006)<br />
Poeta e artista plástico. Militante e defensor leal do movimento Surrealista. A sua obra poética e plástica contribui para a construção da história contemporânea. Foi detido várias vezes pela PIDE. Leituras de excertos do livro proibido '''A Intervenção surrealista.
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Poeta e artista plástico. Militante e defensor do movimento Surrealista. A sua obra poética e plástica contribui para a construção da história contemporânea. Foi detido várias vezes pela PIDE.
*Livro Proibido - '''A Intervenção Surrealista'''
 
Apesar do carácter transgressor dos seus poemas, '''Mário Cesariny''' teve a sorte de nunca chegar a ver os seus livros [de poesia] apreendidos pela censura. Os livros podiam passar despercebidos mas '''Mário Cesariny''' não passava. Antes do fim da ditadura, esteve detido em várias ocasiões por suspeitas de vagabundagem, “um termo que se aplicava a pessoas assim um bocado esquisitas” — os anarquistas, videntes, blasfemos e revoltosos e homossexuais. Apesar de ter sido frequentemente detido pela polícia, o artista voltava sempre à vida de antes".[https://www.p55.art/blogs/p55-magazine/7-facts-about-artist-mario-cesariny]
 
  
*'''Excerto 1''', pág. 89.
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*Livro Proibido - '''A Intervenção Surrealista'''<br />
  Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna. É imaginação o livre exercício do espírito que servindo-se de um ou mais aspetos do «real» passa lenta ou rapidamente ao extremo limite deste para alcançar, pouco importa em que margens, o objeto real de um irreal conquistado no espírito. Acelerar este processo levando-o a um ponto em que se torne impossível falar de real e irreal (negação da negação anterior), produzir um objeto onde tudo, simultaneamente, tem as propriedades da verdade e do erro, da razão e da loucura, do que foi encontrado e do que foi perdido, é transformar a realidade depois de a haver transtornado — é fixar, violentanto a realidade «presente», um novo real poético (uno). Esse real poético dá-o o surrealismo, reunindo, até hoje insuperavelmente, Apolo e Dionisos, Vénus Urânia e Vénus Anadiómena, Ocultismo e Magia.<br /><br />[[File:Excerto1-Imaginacao-Cesariny-AIntervencaoSurrealista1948-pag89.png|423px|center]]<br />
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Apesar do carácter transgressor dos seus poemas, '''Mário Cesariny''' teve a sorte de nunca chegar a ver os seus livros [de poesia] apreendidos pela censura. Os livros podiam passar despercebidos mas '''Mário Cesariny''' não passava. Antes do fim da ditadura, esteve detido em várias ocasiões por suspeitas de vagabundagem, “um termo que se aplicava a pessoas assim um bocado esquisitas” —  anarquistas, videntes, blasfemos, revoltosos e homossexuais.[https://www.p55.art/blogs/p55-magazine/7-facts-about-artist-mario-cesariny]
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*'''Excerto 1''', pág. 89.<br />
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  Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna. É imaginação o livre exercício do espírito que servindo-se de um ou mais aspetos do «real» passa lenta ou rapidamente ao extremo limite deste para alcançar, pouco importa em que margens, o objeto real de um irreal conquistado no espírito. Acelerar este processo levando-o a um ponto em que se torne impossível falar de real e irreal (negação da negação anterior), produzir um objeto onde tudo, simultaneamente, tem as propriedades da verdade e do erro, da razão e da loucura, do que foi encontrado e do que foi perdido, é transformar a realidade depois de a haver transtornado — é fixar, violentando a realidade «presente», um novo real poético (uno). Esse real poético dá-o o surrealismo, reunindo, até hoje insuperavelmente, Apolo e Dionisos, Vénus Urânia e Vénus Anadiómena, Ocultismo e Magia.<br />
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*Poema '''''Cocreção de Saturno''''', páginas 124 a 126.
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*Poema '''''Cocreção de Saturno''''', páginas 124 a 126<br />.
 
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Nota: aumente as imagens acima ou veja o poema num ficheiro pdf [https://agr-tc.pt/25-de-Abril_50-Anos/MarioCesariny-Poema-ConcrecaoDeSaturno-pag124a126-do-livro-AInterbencaoSurrealista.pdf aqui]<br />
 
Nota: aumente as imagens acima ou veja o poema num ficheiro pdf [https://agr-tc.pt/25-de-Abril_50-Anos/MarioCesariny-Poema-ConcrecaoDeSaturno-pag124a126-do-livro-AInterbencaoSurrealista.pdf aqui]<br />
 
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*Poema '''''Atuação Escrita''''' de Pedro Oom no livro de Cesariny, '''A intervenção Surrealista''', pág. 185.
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*Poema '''''Atuação Escrita''''' de Pedro Oom no livro de Cesariny, '''A intervenção Surrealista''', pág. 185.<br />
 
*'''''Atuação Escrita''''',&nbsp;[[File:Ouvir-.png|18px|link=https://agr-tc.pt/25-de-Abril_50-Anos/Cesariny-PoemaDePedroOom-NoLivroDeCesariny_Pode-seEscrever_com-musica_lido-por-RitaMadeira-12-2-2024.mp3]][https://agr-tc.pt/25-de-Abril_50-Anos/Cesariny-PoemaDePedroOom-NoLivroDeCesariny_Pode-seEscrever_com-musica_lido-por-RitaMadeira-12-2-2024.mp3 &nbsp;lido por Rita Madeira 12.º 2ª - 2024,]&nbsp;&nbsp;
 
*'''''Atuação Escrita''''',&nbsp;[[File:Ouvir-.png|18px|link=https://agr-tc.pt/25-de-Abril_50-Anos/Cesariny-PoemaDePedroOom-NoLivroDeCesariny_Pode-seEscrever_com-musica_lido-por-RitaMadeira-12-2-2024.mp3]][https://agr-tc.pt/25-de-Abril_50-Anos/Cesariny-PoemaDePedroOom-NoLivroDeCesariny_Pode-seEscrever_com-musica_lido-por-RitaMadeira-12-2-2024.mp3 &nbsp;lido por Rita Madeira 12.º 2ª - 2024,]&nbsp;&nbsp;
 
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Entre nós e as palavras há metal fundente<br />  
 
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Aos pés do burro que olhava para o mar<br />  
 
Aos pés do burro que olhava para o mar<br />  
 
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas<br />  
 
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Latest revision as of 15:36, 19 April 2024

MarioCesariny-Fotog.jpg MarioCesariny-AIntervencaoSurrealista-capa.jpg MarioCesariny-PIDE-documento.jpg Relogio-de-mario-cesariny.jpg

  • Mário Cesariny (1923 - 2006)

Poeta e artista plástico. Militante e defensor do movimento Surrealista. A sua obra poética e plástica contribui para a construção da história contemporânea. Foi detido várias vezes pela PIDE.

  • Livro Proibido - A Intervenção Surrealista

Apesar do carácter transgressor dos seus poemas, Mário Cesariny teve a sorte de nunca chegar a ver os seus livros [de poesia] apreendidos pela censura. Os livros podiam passar despercebidos mas Mário Cesariny não passava. Antes do fim da ditadura, esteve detido em várias ocasiões por suspeitas de vagabundagem, “um termo que se aplicava a pessoas assim um bocado esquisitas” — anarquistas, videntes, blasfemos, revoltosos e homossexuais.[1]

  • Excerto 1, pág. 89.
Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna. É imaginação o livre exercício do espírito que servindo-se de um ou mais aspetos do «real» passa lenta ou rapidamente ao extremo limite deste para alcançar, pouco importa em que margens, o objeto real de um irreal conquistado no espírito. Acelerar este processo levando-o a um ponto em que se torne impossível falar de real e irreal (negação da negação anterior), produzir um objeto onde tudo, simultaneamente, tem as propriedades da verdade e do erro, da razão e da loucura, do que foi encontrado e do que foi perdido, é transformar a realidade depois de a haver transtornado — é fixar, violentando a realidade «presente», um novo real poético (uno). Esse real poético dá-o o surrealismo, reunindo, até hoje insuperavelmente, Apolo e Dionisos, Vénus Urânia e Vénus Anadiómena, Ocultismo e Magia.
Excerto1-Imaginacao-Cesariny-AIntervencaoSurrealista1948-pag89.png


  • Poema Cocreção de Saturno, páginas 124 a 126
    .

PoemaDeCesariny-ConcrecaoDeSaturno1-p124.jpg PoemaDeCesariny-ConcrecaoDeSaturno2-p125.jpg PoemaDeCesariny-ConcrecaoDeSaturno3-p126.jpg
Nota: aumente as imagens acima ou veja o poema num ficheiro pdf aqui



Pode-se escrever

Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada

Pode-se não escrever
PoemaAtuacaoEscritaDePedroOom-noLivroAIntervençaoSurreaslista-de-MarioCesariny.jpg


OUTROS POEMAS DE MÁRIO CESARINI

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
Tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Mário Cesariny em Pena Capital

  • Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny em Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano

  • Um Grande Utensílio de Amor

um grande utensílio de amor
meia laranja de alegria
dez toneladas de suor
um minuto de geometria

quatro rimas sem coração
dois desastres sem novidade
um preto que vai para o sertão
um branco que vem à cidade

uma meia-tinta no sol
cinco dias de angústia no foro
o cigarro a descer o paiol
a trepanação do touro

mil bocas a ver e a contar
uma altura de fazer turismo
um arranha-céus a ripar
meia-quarta de cristianismo

uma prancha sem porta sem escada
um grifo nas linhas da mão
uma Ibéria muito desgraçada
um Rossio de solidão

Mário Cesariny em Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano

  • [Faz-me o favor…]


Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvi-lo já.

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor — muito melhor! —
Do que tu.
Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Mário Cesariny em O Virgem Negra (também incluído na Antologia, de Mário Cesariny)

  • Lembra-te


Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos

Mário Cesariny em Pena Capital.

  • you are welcome to elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny em Pena Capital.


  • Radiograma


Alegre triste meigo feroz bêbedo
lúcido
no meio do mar

Claro obscuro novo velhíssimo obsceno
puro
no meio do mar

Nado-morto às quatro morto a nada às cinco
encontrado perdido
no meio do mar
no meio do mar

Mário Cesariny em Pena Capital.

  • Homenagem a Cesário Verde

Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!

Mário Cesariny em Pena Capital.

  • Um Grande Utensílio de Amor


um grande utensílio de amor
meia laranja de alegria
dez toneladas de suor
um minuto de geometria

quatro rimas sem coração
dois desastres sem novidade
um preto que vai para o sertão
um branco que vem à cidade

uma meia-tinta no sol
cinco dias de angústia no foro
o cigarro a descer o paiol
a trepanação do touro

mil bocas a ver e a contar
uma altura de fazer turismo
um arranha-céus a ripar
meia-quarta de cristianismo

uma prancha sem porta sem escada
um grifo nas linhas da mão
uma Ibéria muito desgraçada
um Rossio de solidão

Mário Cesariny em Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano.