Borges, Jorge Luís - Livros Proibidos

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Jorge Luis Borges


Os contos de "História Universal da Infâmia" refletem a habilidade distintiva de Borges em fundir elementos filosóficos e literários de maneira única.

História Universal da Infâmia, Jorge Luís Borges

Em 1517, o padre Bartolomé de las Casas teve muita pena dos índios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro das Antilhas e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros, que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro das Antilhas. A essa curiosa variação de um filantropo devemos factos infinitos: os blues de Handy, o êxito alcançado em Paris pelo pintor doutor oriental D. Pedro Figari, a boa prosa bravia do também oriental D. Vicente Rossi, o tamanho mitológico de Abraham Lincoln, os quinhentos mil mortos da Guerra de Secessão, os três mil e trezentos milhões gastos em pensões militares, (…).

Nos princípios do século XIX (a data que nos interessa) as vastas plantações de algodão que havia nas margens eram cultivadas por negros, de sol a sol. Dormiam em barracas de madeira, sobre o piso de terra. Fora da relação mãe-filho, os parentescos eram convencionais e turvos. Tinham nomes, mas podiam prescindir dos apelidos. Não sabiam ler. A sua amolecida voz de falsete cantarolava um inglês de lentas vogais. Trabalhavam em filas, curvados sob o azorrague do capataz. Fugiam, e homens de fortes barbas saltavam sobre belos cavalos e cães próprios para caçar feras seguiam o seu rastro.
A um sedimento de esperanças irracionais e medos africanos tinham junto as palavras de Escritura: a sua fé, por conseguinte, era a de Cristo. Cantavam profundos e amontoados: Go down Moses. O Mississípi servia-lhes de magnífica imagem do sórdido Jordão.
Os proprietários dessa terra trabalhadora e desses bandos de negros eram ociosos e ávidos cavalheiros de cabeleira ao vento, que habitavam enormes casarões voltados para o rio – sempre com um pórtico pseudogrego de madeira de pinheiro-branco. Um bom escravo custava-lhes mil dólares e não durava muito. Alguns cometiam a ingratidão de adoecer e morrer. Havia que tirar desses bens instáveis o maior rendimento. Por isso os tinham nos campos desde que rompia o Sol até aos seus últimos raios; por isso exigiam das plantações uma colheita anual de algodão ou tabaco ou açúcar. A terra, fatigada e maltratada por essa cultura impaciente, ficava exausta em poucos anos: o deserto confuso e sujo de barro metia-se nas plantações. Nas chácaras abandonadas, nos subúrbios, nos exíguos canaviais e nos lodaçais abjectos, viviam os poor whites, a canalha branca. Eram pescadores, vagos caçadores, ladrões de cavalos. Aos negros costumavam mendigar pedaços de comida roubada e na sua degradação mantinham um orgulho: o do sangue sem fuligem, sem mistura. Lazarus Morell foi um deles.


Os cavalos roubados num estado e vendidos noutro foram somente uma digressão na carreira delinquente de Morell, mas representavam antecipadamente o método que agora lhe assegurava o seu bom lugar numa História Universal da Infâmia. Este método é único, não só pelas circunstâncias sui generis que o determinaram, mas pela abjecção que requere, pelo seu fatal manejo da esperança e pelo desenvolvimento gradual, semelhante à atroz evolução de um pesadelo. (…) Quanto ao número de homens, Morell chegou a comandar uns mil, todos ajuramentados. Duzentos formavam o Conselho Superior, que promulgava as ordens que os restantes oitocentos cumpriam. O risco recaía nos subalternos. No caso de rebelião, eram entregues à justiça ou arremessados ao rio volumoso de águas pesadas, com uma enorme pedra nos pés. Com frequência eram mulatos. A sua facinorosa missão era a seguinte:
Percorriam – com um momentâneo luxo de anéis, para inspirar respeito – as vastas plantações do Sul. Escolhiam um negro desgraçado e propunham-lhe a liberdade. Diziam-lhe que fugisse ao patrão, para ser vendido por eles uma segunda vez, numa plantação distante. Dar-lhes-iam então uma percentagem do preço da sua venda e ajudá-lo-iam para outra evasão. Conduzi-lo-iam depois a um estado livre. Dinheiro e liberdade, dólares ressoantes de prata com liberdade – que melhor tentação poderiam oferecer-lhe? O escravo atrevia-se à sua primeira fuga. O caminho natural era o rio. Uma canoa, o porão de um vapor, uma lancha grande, uma enorme jangada como um céu com um abrigo na borda ou com altos toldos de lona; não importava o lugar, mas o saber-se em movimento e seguro sobre o rio infatigável… Vendiam-no em outra plantação. Ele fugia outra vez para os canaviais ou para os barrancos. Então os terríveis benfeitores (de quem começava já a desconfiar) alegavam gastos obscuros e declaravam que tinham que vendê-lo uma última vez. Quando regressasse, dar-lhe-iam a percentagem das vendas e a liberdade. O homem deixava-se vender, trabalhava algum tempo e desafiava na última fuga o risco dos cães próprios da caça às feras e os açoites. Regressava com sangue, com desespero e com sono.


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