A Algarvia que é ascendente de Camões
== A algarvia que é ascendente de Camões ==
- Texto:Nuno Campos Inácio editor e escritor
29 Agosto, 2016
- Sangue mouro corria nas veias do autor de “Os Lusíadas”. Talvez isso explique, em parte, o espírito leviano e a paixão pela poesia, que tinha raízes profundas na região algarvia do período islâmico.
Essa ligação familiar e genética transporta-nos para o tempo da conquista definitiva do Algarve. Foi nesse tempo e neste reino, mais concretamente na cidade de Xantamaria de Hárun (hoje Faro), que viveu Madragana ben Aloandro, filha do Cádi da cidade, Aloandro ben Bakr.
Após a conquista definitiva do Algarve, Madragana conheceu o rei de Portugal D. Afonso III, de quem se tornou amante, tendo nascido cinco filhos dessa relação.
Convertida ao cristianismo, a jovem algarvia mudou o nome para Mór Afonso. Desta relação entre Afonso III e a algarvia moura Madragana descendem muitas famílias portuguesas e alguns dos monarcas reinantes da atualidade, como é o caso de Isabel II de Inglaterra. Segundo as genealogias clássicas, descende ainda o notável poeta Luís Vaz de Camões.
'Camões era filho de Simão Vaz de Camões, filho de Guiomar Vaz da Gama, filha de Inês Gomes da Silva, filha de Jorge da Silva, filho de Gonçalo Gomes da Silva, filho de Isabel Vasques de Sousa, filha de Vasco Martins de Sousa Chichorro, filho de Martim Afonso Chichorro, filho de outro Martim Afonso Chichorro, filho de Afonso III e de Madragana ben Aloandro.'
De recordar que Luís Vaz de Camões terá estado refugiado no Algarve, mais concretamente na Quinta de Santo António, em Monchique, onde escreveu um poema dedicado à ribeira de Boina.
- Crónica de Nuno Campos Inácio editor e escritor, publicada em:
REVISTA ALGARVE INFORMATIVO #391 by Daniel Pina
https://algarveinformativo.blogspot.com/2023/06/o-algarve-de-camoes.html
- Neste dia em que se celebra o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, afigura-se-nos oportuno recordar algumas ligações do nosso «Poeta Maior» à região algarvia.
A primeira ligação e a mais ancestral será a genética, que remonta aos tempos da (re)conquista definitiva do Algarve. Nesses tempos, era alcaide de Xantamaria de Hárun (atual cidade de Faro), Aloandro ben Bakr, pai de Madragana ben Aloandro, provavelmente mulher tão exótica quanto o nome que carrega, ao ponto de se tornar amante reconhecida de D. Afonso III. Pelos critérios sociais da época, a mourisca poderia ter sido apenas um espólio de guerra, uma concubina escrava como tantas que habitavam a corte, mas não, parece que a ligação foi mais profunda, ao ponto da jovem algarvia se ter convertido ao cristianismo e ter adotado o nome cristão de Mór Afonso, de quem teve cinco filhos, mas apenas dois vingaram: Martim Afonso Chichorro e Urraca Afonso de Portugal. Deste enlace amoroso, a acreditarmos nas várias genealogias clássicas, encontramos inúmeros descendentes na atualidade, como todos os representantes das diversas Casas Reais Europeias, mas, no que no dia de hoje interessa, a nosso Luís Vaz de Camões, pela seguinte linha ascendente – Luís Vaz de Camões, filho de Guiomar Vaz da Gama, neto de Inês Gomes da Silva, bisneto de Jorge da Silva, trineto de Gonçalo Gomes da Silva, tetraneto de Isabel Vasques de Sousa, 5.º neto de Vasco Martins de Sousa, 6.º neto de Martim Afonso Chichorro (II), 7.º neto de Martim Afonso Chichorro (I), 8.º neto de D. Afonso III e Madragana.
A segunda ligação podemos dizer que é de parentesco, sendo parente de Rui Pereira da Silva, Alcaide-mor de Silves e senhor do Morgado dos Casais, em Monchique, onde Luís Vaz de Camões esteve alojado ou refugiado e onde terá escrito um poema dedicado à Ribeira de Boina, que acompanha o presente artigo. Na literatura também se encontram referências à passagem e estadia de Camões no Morgado de Quarteira.
Uma terceira ligação é de proteção e patronato. Sabemos que a família dos Condes de Vila Nova de Portimão, os Castelo Branco, era grande apreciadora da cultura. Gonçalo Castelo Branco e Martinho Castelo Branco figuram mesmo no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, encontrando-se comprovadamente entre os patrocinados pela família o escritor Gil Vicente e os poetas João Rodrigues de Sá de Meneses e Cataldo Parisio. Já Luís Vaz de Camões terá sido patrocinado pelo Conde D. Martinho de Castelo Branco (II), também ele reconhecido apoiante das letras.
A quarta ligação podemos considerar como sendo patrimonial. Não do património de Camões, mas do património coletivo nacional. No Arquivo Nacional da Torre do Tombo encontra-se, num exemplar de «Os Lusíadas», o retrato mais antigo (e também o mais popular) de Luís Vaz de Camões. Esse exemplar do livro e esse retrato pertenciam a D. Martinho de Castelo Branco (II), que o levou para Alcácer Quibir, onde veio a falecer no campo de batalha. A 16 de Agosto de 1578 chegou ao porto de Vila Nova de Portimão o navio «São Francisco» carregado com o espólio do Conde desta vila, onde vinha «Os Lusíadas». Há algo de poético, de majestoso, perceber que um nobre guerreiro do século XVI tinha preocupações, levando um livro para o campo de guerra. Não será difícil de embarcar neste poema e assentar praça na areia do deserto, em torno de uma grande fogueira, ouvindo D. Martinho a declamar «Os Lusíadas» para os cavaleiros do seu exército, obra por si patrocinada e escrita por um imortal indelevelmente algarviano.
Por meio de umas serras mui fragosas,
cercadas de silvestres arvoredos,
retumbando por ásperos penedos,
correm perenes águas deleitosas.
Na ribeira de Boina, assi chamada,
celebrada -
porque em prados
esmaltados
com frescura
de verdura,
assi se mostra amena, assi graciosa,
que excede a qualquer outra mais fermosa -
as correntes se vêem que, aceleradas,
as aves regalando e as boninas,
se vão a entrar nas águas neptuninas
por diversas ribeiras derivadas.
Com mil brancas conchinhas a áurea areia
bem se arreia;
voam aves;
mil suaves
passarinhos
nos raminhos
acordemente estão sempre cantando,
com doce acento os ares abrandando.
O doce rouxinol num ramo canta,
e de outro o pintassilgo lhe responde.
A perdiz de entre a mata, em que se esconde,
o caçador sentindo, se levanta;
voando vai ligeira mais que o vento,
vai buscando;
porém quando
vai fugindo,
retinindo
trás ela mais veloz a seta corre,
de que ferida logo cai e morre.
Aqui Progne, de um ramo em outro ramo,
co peito ensanguentado anda voando,
cibato para o ninho indo buscando;
a leda codorniz vem ao reclamo
do sagaz caçador, que a rede estende,
e pretende
com engenho
fazer dano
à coitada,
que enganada
duns esparzidos grãos de louro trigo,
nas mãos vai a cair de seu imigo.
Aqui soa a calhandra na parreira;
a rola geme; palra o estorninho;
sai a cândida pomba de seu ninho;
o tordo pousa em cima da oliveira.
Vão as doces abelhas sussurrando,
e apanhando
o rocio
fresco e frio
por o prado
de erva ornado,
com que o bravo licor fazem, que deu
à humana gente a indústria de Aristeu.
Aqui as uvas luzidas, penduradas
das pampinosas vides, resplandecem;
as frondíferas árvores se oferecem
com diferentes frutos carregadas;
os peixes n'água clara andam saltando
levantando
as pedrinhas,
e as conchinhas
rubicundas,
que as jucundas
ondas consigo trazem, crepitando
por a praia alva com ruído brando.
Aqui por entre as selvas se levantam
animais calidónios, e os veados
na fugida inda mal assegurados,
porque do som dos próprios pés se espantam.
Sai o coelho; a lebre sai manhosa
da frondosa
breve mata,
donde a cata
cão ligeiro.
Mas primeiro
que ela ao contrário férvido se entregue,
às vezes deixa em branco a quem a segue.
Luzem as brancas e purpúreas flores,
com que o brando Favónio a terra esmalta;
o fermoso Jacinto ali não falta,
lembrado dos antigos seus amores;
inda na flor se mostram esculpidos
os gemidos;
aqui Flora
sempre mora;
e com rosas
mais fermosas,
com lírios e boninas mil fragrantes,
alegra os seus amores inconstantes.
Aqui Narciso em líquido cristal
se namora de sua fermosura;
nele os pendentes ramos da espessura
debuxando-se estão ao natural.
Adónis, com que a linda Citereia
se recreia,
bem florido,
convertido
na bonina
que Ericina
por imagem deixou de qual seria
aquele por quem ela se perdia.
Lugar alegre, fresco, acomodado
para se deleitar qualquer amante,
a quem com sua ponta penetrante
o cego Amor tivesse derribado;
e para memorar ao som das águas
suas mágoas
amorosas,
as cheirosas
flores vendo,
escolhendo,
para fazer preciosas mil capelas,
e dar per grão penhor a Ninfas belas.
Eu delas, por penhor de meus amores,
uma capela à minha deusa dava;
que lhe queria bem, bem lhe mostrava
o bem-me-queres entre tantas flores;
porém, como se fora malmequeres,
os poderes
da crueldade
na beldade
bem mostrou.
Desprezou
a dádiva de flores; não por minha,
mas porque muitas mais ela em si tinha.