Redondilhas escolhidas

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Trovas

a uma cativa com quem andava de amores na Índia, chamada Bárbara

Aquela cativa,
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
nem no céu estrelas,
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.

üa graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbara não.

Presença serena
que a tormenta amansa;
nela enfim descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo,
e, pois nela vivo,
é força que viva.


Cantiga
a este mote alheio:

Menina dos olhos verdes,
porque me não vedes?


VOLTAS

Eles verdes são,
e têm por usança
na cor, esperança
e nas obras, não.
Vossa condição
não é d'olhos verdes,
porque me não vedes.

Isenções a molhos
que eles dizem terdes,
não são d'olhos verdes,
nem de verdes olhos.
Sirvo de giolhos,
e vós não me credes
porque me não vedes.

Haviam de ser,
porque possa vê-los,
que uns olhos tão belos
não se hão-de esconder;
mas fazeis-me crer
que já não são verdes,
porque me não vedes.

Verdes não o são
no que alcanço deles;
verdes são aqueles
que esperança dão.
Se na condição
está serem verdes,
porque me não vedes?

Cantiga a este mote:

Descalça vai para a fonte
Leanor pela verdura;
vai fermosa, e não segura.

VOLTAS

Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
sainho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a nove pura;
vai fermosa, e não segura.

Descobre a touca a garganta,
cabelos d'ouro o trançado,
fita, de cor d'encarnado,
tão linda que o mundo espanta;
chove nela graça tanta
que dá graça à fermosura;
vai fermosa, e não segura

Cantiga
a esta cantiga alheia:

Pastora da serra,
da serra da Estrela,
perco-me por ela.

VOLTAS

Nos seus olhos belos
tanto Amor se atreve,
que abrasa entre a neve
quantos ousam vê-los.
Não solta os cabelos
Aurora mais bela:
perco-me por ela.

Não teve esta serra
no meio da altura
mais que a fermosura
que nela se encerra.
Bem céu fica a terra
que tem tal estrela:
perco-me por ela.

Sendo entre pastores
causa de mil males,
não se ouvem nos vales
senão seus louvores.
Eu só por amores
não sei falar nela:
sei morrer por ela.

De alguns que, sentindo,
seu mal vão mostrando,
se ri, não cuidando
que inda paga, rindo.
Eu, triste, encobrindo
só meus males dela,
perco-me por ela.

Se flores deseja
por ventura delas,
das que colhe, belas,
mil morrem de enveja.
Não há quem não veja
todo o milhor nela:
perco-me por ela.

Se na água corrente
seus olhos inclina,
faz luz cristalina
parar a corrente.
Tal se vê, que sente,
por ver-se, água nela:
perco-me por ela.

Esparsa

do Autor ao desconcerto do mundo
Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais m'espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim
anda o mundo concertado

Cantiga
a esta cantiga alheia

Perdigão perdeu a pena,
não há mal que lhe não venha:

VOLTAS

Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas, com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.

Quis voar a üa alta torre
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha.


CAMÕES E AS REDONDILHAS “BABEL E SIÃO”: A POESIA DO EXÍLIO – por Manuel Simões

As redondilhas constituem, como se sabe, uma formosa paráfrase do salmo 137 do ”Livro dos Salmos” e apresentam uma estrutura que as divide em dois blocos (profano e sagrado)(...)
O texto camoniano é altamente polissémico e a sua descodificação não tem sido fácil. A controvérsia anda à volta da interpretação de Babilónia, Sião e Jerusalém, topónimos simbólicos que o poeta recupera do salmo. Começa a paráfrase, seguindo de perto a estrutura do salmo («Sôbolos rios que vão/ por Babilónia, m’achei», vv. 1-2). É, portanto, Babilónia («mal presente», v.9) o termo de comparação com outro tempo, outra realidade de crónica menos amarga. Ele próprio o diz de modo peremptório: «e tudo bem comparado,/ Babilónia ao mal presente,/ Sião ao tempo passado» (vv.8-10). Sendo assim, Babilónia só pode ser referente de desamor e, como tal, conotado por metáforas de maldição.
Sião é, pelo contrário, o segundo termo de comparação, o «tempo passado» que se contrapõe ao «mal presente»: daí «as lembranças de Sião» do v. 4. Este topónimo tem sido largamente associado ao platonismo camoniano, à teoria da reminiscência, passando a ser símbolo do “Céu”.(...)
Babilónia e Sião parecem ser, pois, os indicadores de maior relevância para a interpretação global de “Sôbolos rios”.

SUPER FLUMINA ...
Sôbolos rios que vão por Babilónia, m'achei, onde sentado chorei as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e tudo bem comparado,
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Ali, lembranças contentes
n'alma se representaram,
e minhas cousas ausentes
se fizeram tão presentes
como se nunca passaram.
Ali, despois de acordado,
co rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa.

E vi que todos os danos
se causavam das mudanças
e as mudanças dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura,
o mal quão depressa vem,
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val,
que então se entende milhor
quanto mais perdido for;
vi o bem suceder mal,
e o mal, muito pior.
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
vi nenhum contentamento,
e vejo-me a mim, que espalho
tristes palavras ao vento.

(...)