Pires, José Cardoso - Livros Proibidos
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- José Cardoso Pires (1925 - 1998)
- Livro proibido - Dinossauro Excelentíssimo
Excerto 1
Caramba, aqui os outros engoliram em seco.
Palavras difíceis... otorrinolaringologia.. abacadabrante... répcio... E daí? Daí como as leis e os decretos se fazem de palavras, o prior não tinha a menor dúvida de que estava ali um futuro juiz todo dado ao recolhimento e às frases de alçapão. (…)
Em face disto, os pais do mocinho silencioso venderam o burro e a horta e com o dinheiro apurado levaram-no para uma universidade que ficava do outro lado da montanha. Sofreram muito para fazer a viagem, pobres deles. Primeiro, porque o regedor, considerando-se desautorizado, armou uma campanha contra o Padre acusando-o de mau confessor e inimigo das fardas:
<MAÇÓNICO!
REFRACTÁRIO!
HÓSTIA DE SAL!>
- Excerto 2
Depois porque a madrinha rica sentiu-se mais do que nunca solteiríssima e deserdou o afilhado; não contente em mandar cartas ao bispo, fez logo ali testamento a favor dos padres crúzios ou outros de nome ainda mais esquisito. Por último, os habitantes da aldeia, levados pela inveja e pela intriga, tinham-se posto a insultar os pais sacrificados que, na opinião deles, não passavam de uns perdulários a correr atrás do sonho de um filho doutor.
«LOUCOS! GANANCIOSOS!»
«REGENADOS!»
«MÃOS ROTAS!»
Trabalhos. Desgraças que acontecem a quem se vê obrigado a suportar a injustiça do semelhante para cumprir um destino sublime.
Mas, como diz o outro, o amor dos pais tudo vence
E UM BELO DIA... os dois camponeses, apanhando a aldeia a dormir a sesta, piraram-se com o filho na camioneta da carreira.
- Excerto 3
Conta-se, não há provas, conta-se apenas, que o rapazito que amanhã viria a ser imperador não se mostrou satisfeito com a viagem, embora a tivesse traçada no signo. Na sua infância sabedora conhecia todos os passos que lhe estavam reservados mas havia qualquer coisa que o contrariava. O que era, o que não era, só mais adiante se veio a descobrir: antes queria ter vindo de burro, queixou-se ele — e só uma vez.
«DE BURRO? QUE IDEIA!»
Seria por causa dos solavancos da camioneta, tão ruidosa e tão coçada? Possível, é uma hipótese. Seria por se ver misturado com passageiros folgazões que a cada paragem corriam para as tabernas e desatavam aos abraços uns aos outros? Ou seriam as saudades do jumento que tinha trocado pelo curso de imperador? Enigmas, coisas da História que tem destes passos sem rastro para despistar os curiosos. O pequeno queria ir de burro porque sim. E mais não disse.
A mãe, como é natural, enterneceu-se muito com um desejo tão humilde.
Excerto 4
Cada terra dá o que tem, a mais não é obrigada.
Desfralda-se o Alentejo em cortiça
da melhor,
o Algarve em sol e praias.
Diamante vem de Angola, parece;
da América ouro e guerras.
Terras há que dão o vinho,
outras pedras e emigrantes.
A cidade para onde se dirigiam os três camponeses
produzia doutores — e isto não consta da Geografia.
Toma nota, Ritinha.
Excerto 5
Pai, mãe e filho acharam-se no meio de muitas ruas apertadas e antigas. Havia arcos de pedra e brasões a certas portas. Oratórios também: muitos. E padres. Padres, padres e mais padres, o que ali ia de padres só visto. Levantava-se uma pedra e saltava um, acendia-se a luz voava outro. Pareciam gatos a espirrar da sombra.
Por exemplo, uma vez apareceu-lhe o Patriarca do Alto Comércio e, senhores, o que ali ia, o que ali ia. O homem mostrava-se desnorteado:
NÃO POSSO MAIS, EXCELÊNCIA. OS EXCELENTÍSSIMOS MENDIGOS TIRAM-ME O SONO COM PEDIDOS.»
O Imperador encolheu os ombros. Trocou simplesmente a palavra: Mendigos? Quais mendigos? — E deu o problema por resolvido: inadaptados é que o cavalheiro do alto comércio queria dizer. Inadaptados.
«E, POR AMOR DE DEUS, INADAPTADOS SEMPRE EXISTIRAM E CONTINUARÃO A EXISTIR ATÉ NOS REINOS MAIS PRÓSPEROS. DURMA EM PAZ.»
Excerto 6
Filhos e netos de camponeses que enriqueceram, enriqueforam e que em ricos serão sempre camponeses por mais que disfarcem, estes exemplares caracterizavam-se por possuírem hábitos sedentários, preferindo as áreas das secretarias e outras de clima acentuadamente burocrático onde a vida decorre na ordem dos ciclos naturais das chuvas e dos impostos.
Deslocavam-se com solenidade difusa, à custa dos seus canudos de bacharéis que utilizavam como membrana extensora do aparelho bucal e do abdómen ou como apêndice perfurador para abrir caminhos subterrâneos no planeta dos decretos.
Hoje está historicamente provado que os dê-erres eram dotados de grande instinto gregário.
Excerto 7
Chefe discretíssimo, com efeito. Se bem que superiormente excelentíssimo.
Só que os citados viajantes estavam demasiado entusiasmados para poderem perceber que, na cegueira de perseguir as palavras, Sua Alteza iria cair.
PRISIONEIRO!
Tal qual. Encerrado no casulo.
Visitas, praticamente não tinha — dispensava. Falar, falava ele, mas para o gravador —compondo discursos à boca da teia, na madre das palavras, portanto.
Ditava-os, envolvido em descargas eléctricas e vibrações, e as ideias saiam-lhe em circuito fechado e em frases de alta intenção. Escutava-os depois — melhor: escutava-Se e, como se diz, com ouvido diurno e nocturno, com o ar do mestre que segue a lição do discípulo querido. E o Mestre estava no Discípulo e o Discípulo continha o Mestre e eram uma única pessoa representada pela palavra sicut erat in principio, etecétera e tal.
Excerto 8
Vida dupla, suspiravam eles (com orgulho porque se lembravam dos secretos diplomatas de Livro Branco), vida, diziam, de saber e ocultar. Que vida.
Para mal dos seus pecados, o trabalho, parecendo que não, exigia demasiado. Os conselheiros viam-se e desejavam-se para dar conta dos recados do Mestre, consumiam as lentes e as pilhas e o saldo da imaginação, coitada. Um deles, encarregado de lançar moeda nova, foi forçado a meter-se com falsários de água¬-furtada para conseguir uma colecção de notas e de vinténs que agradasse ao Douktor Dinossaurus. Outro por pouco não morreu queimado a lâmpadas ultravioletas para provar que tinham cumprido uma viagem aos trópicos em expedição de boa-vontade (apesar do sol assassino que domina essas paragens). Um terceiro, o das Dinâmicas, foi mais feliz. Calhou-lhe a incumbência de fazer uma barragem que andava há um ror e horror de anos a despacho e que o novo imperador pusera de pé em meia dúzia de meses. Aí não houve problema: o a-fingir correu ao local e enquanto o diabo esfrega um olho estava a obra toda fotografada em cima da secretária do Mestre.
Excerto 9
Agora, contentes como ratos, os conselheiros errantes movimentavam-se na zona confusa, luzidios. As pilhas em botão cantavam-lhes ao ouvido, envolvendo-os em primavera.
Reza a História que Dinossaurus Um faleceu a tantos de tal, hora da Comarca dos Doutores, fulminado por uma síncope de amnésia. A dado instante esqueceu-se que estava vivo e pronto. Faleceu.
Os mexilhões comuns quando o foram espreitar à urna de cristal abanaram a cabeça: acharam-no demasiado igual ao retrato para ser verdade. (E, assim, funcionavam ao contrário do antigo Guarda-Mor que não quis o Mestre com cara de Dinossauro; mas era de esperar, os mexilhões sempre foram e continuariam a ser espíritos de contradição...) Mais tarde, como o corpo estivesse exposto ao Reino por longos dias, os mesmos mexilhões debruçaram-se mais demoradamente sobre ele, rosnando pelo canto da boca.