Dias, Barata - Livros Proibidos
Amanhã Quando Romper o Dia, Barata Dias
Desde os bancos da escola primária, que Luís Torres vinha sofrendo insinuações afrontosas dos seus condiscípulos; mas agora, que cursava advocacia, por consequência mais conhecedor dos direitos que, por natureza, pertencem ao homem, era ele próprio a penitenciar-se, dando-lhes razão. Enquanto criança, os companheiros irritavam-no, e ele, irado, agredia-os, consoante as suas forças; não admitia que censurassem o modo de vida honesto de seus pais. Um dia, porém, quando, durante as férias grandes, se lhe proporcionou observar, com olhos de futuro homem de leis, o viver miserável da gente da sua aldeia, caiu em si, e compreendeu então os provocadores.
Seu pai era proprietário de uma estância de madeiras, situada no centro de maior produção de mobílias, numa freguesia do distrito do Porto. Quase todos os fabricantes daqueles sítios se abasteciam ali, desde há muitos anos; disso lembra-se Luís, porque, quando era menino, os marceneiros clientes da estância ofereciam-lhe carrinhos e toda a espécie de brinquedos de madeira.
Em toda a parte do país, quem conhece um pouco a indústria mobiliária, classifica de escravos esses artistas marceneiros do Norte. Por isso os meninos da escola, à mais leve discussão com o seu condiscípulo, lhe atiravam em rosto, para o vexar, com a proveniência do dinheiro com que o pai lhe custeava os estudos. Evidentemente…isto desgostava-o; e, apesar da sua franzina compleição, o nervoso levava-o, por vezes, a defender-se a murro, o que, para mal dos seus pecados, agravava o ódio dos injuriadores. Ao saírem da escola, os atrevidos formavam grupos, e, por dá cá aquela palha, zás:
- Teu pai anda lá a explorar os escravos para tu estudares. Deves seguir a carreira de advogado, porque, um dia, virás a ser de grande utilidade, quando fores obrigado a defendê-los…
E outras coisas neste género.
Estas afrontas enraiveciam o pequeno Luís; e, para seu maior tormento, os companheiros alcunharam-no de “Príncipe da Madeira”.
Debaixo de uma parreira, trabalhavam pai, mãe e um filho. Quando viram o visitante, ficaram parados, cheios de medo. Julgavam que era o fiscal das contribuições. O marceneiro chefe, já entrado na idade, parecia um espectro. Corria-lhe a cada canto da boca um fio de sangue pálido, mas engrossado com o pó fino da serradura. Talvez nem desse por isso, o pobre homem! Ali ficou sem saber o que havia de fazer, a olhar para a mulher, que se conservava encostada ao torno de pedal, com cara de quem estivera a cometer um crime. O filho, rapazola franzino e com cara de esfomeado, afastou-se do banco, e foi para junto do pai. E Luís, espectador envergonhado, sem saber o que dizer, perguntou-lhes para quem era a mobília que tinham em mãos.
- É para o armazém. Nós aqui não vendemos nada. – Disse o homem ao mesmo tempo que limpava a boca com as costas da mão.
- Mas é para o porto ou para alguém daqui?
- Isso, para o Porto, já lá vai esse tempo!... Agora trabalhamos noutras condições…
- Melhores, ou piores? – perguntou Luís, como se estivesse a fazer um inquérito formal.
- Nós nem chegamos a saber. Só sabemos que perdemos tudo quanto tínhamos… Esta casa, apesar de não prestar para nada, já lá vai. A casa e tudo… E o que havemos de fazer? Não temos outro modo de vida…- e, decidido a deixar-se prender, fez a pergunta: - O senhor vem para nos fazer mal?
(…)
Conversaram. Os três meninos ficaram ali ao pé, em volta do pai, que agora permanecia mais calmo; o mais novito encostou-lhe a cabeça às pernas. Os outros, de boca aberta, fixavam o estranho, a seu ver, menos perigoso. Sobre as calças do marceneiro, que eram de cotim dos militares, passeava um piolho grande. O menino do meio começou a mexer-lhe com um graveto, como se se tratasse de um animal muito familiar. Luís viu, mas não disse nada. Começou a estar incomodado. Mário percebeu nele qualquer hesitação, e disse aos filhos que fossem para a oficina ou para a rua. O mais novito, que continuava a olhar para o parasita, disse, para descargo da sua consciência:
- Não é meu…
E foi para a oficina. O menino do meio ficou envergonhado e defendeu-se também:
- Pois não; nem é teu nem meu, é do pai; os nossos são brancos – E foi correndo atrás do irmão.
Importa agora esclarecer qual o motivo de tão grande interesse que os armazenistas manifestavam, em não querer ver os marceneiros protegidos. Assaltara-os o receio de que os lojistas da cidade, especificamente os da praça de Lisboa, um dia se dirigissem ao local produtor, e entrassem em negociações com aquela grande casa, onde as mobílias se fabricavam em boas condições de preço e com abundância. Mas suas ameaças também lhes poderiam sair caras, porque, de facto, eles estavam agora na frente de um homem inteligente, que era Luís. Este, não fora explorador de escravos, como seu pai o fora. Tinha em suas mãos a alavanca com que poderia mover a classe dos marceneiros; a questão estava em não olhar aos prejuízos que viriam afetar os armazenistas da cidade. E ele bem sabia que os intermediários são, em toda a parte do mundo, os causadores da miséria que esmaga os trabalhadores; que, enquanto aqueles ostentam luxuosos automóveis, estes quase não ganham para o pão que os alimenta. Ele, Luís, havia lido obras e obras dos que tinham consumido suas forças a projetar sobre os homens a luz da Verdade.
E Luís aproveitou a ofensa aos marceneiros para contar o que o operário doente dissera.
- Sabe, senhor diretor? O homem, desde que tem raciocínio, mesmo sem cultura – é a própria natureza – reconhece um direito de que é credor. Ainda há dias, um desses brutinhos – como o senhor acaba de dizer – que se encontra muito doente, e a quem tenho mandado dar algum dinheiro, a título de empréstimo, quando o fui visitar, saiu-se com uma coisa que me deixou estupefacto. Com a máxima simplicidade, perguntou-me se o Estado, a quem pagavam uma contribuição para poderem trabalhar, não lhes dava nada quando eles se encontravam impossibilitados. Eu disse-lhe que não, está claro… Com efeito, fiquei a magicar na razão que ele julgava ter. Eu não quero fazer comentários a tal respeito. Minha condição mesocrática não me dá esse direito. Sei bem, um pouco melhor do que o marceneiro, que os Estados não se criaram para socorrer os seus súbditos… As suas funções têm sido outras. E, se conto isto, é para o senhor apreciar o instinto dos homens, que nem sequer sabem escrever o seu nome.
- Então… Nós não devemos continuar nesta pelintrice, descalços e a trabalhar à mata cavalos. Ao menos, que um dia possamos comprar calçado. Quais são os marceneiros que têm sapatos ou botas? O Justo, o pai dele, e poucos mais. Esses, mesmo, é porque o compraram em bom tempo.
- Só agora – disse o Filipe – que o Clemente apareceu com estas coisas, é que todos falam. Até aqui…
- Está bem, homem. Os escravos, em África, também foram humildes até um dia. Depois, essa coisa do chicote teve um fim. É preciso ver que nós somos filhos de Deus, como os do Sul. Além disso, somos os culpados, como muito bem disse o Clemente, da miséria deles. São uns “gaijos” de coragem… ouvinte e cinco ou nada.
Se a agitadora iniciativa lhes tivesse aparecido noutros tempos, quando, na verdade, não tinham trabalho nem pão, eles se recusariam a deixar-se influenciar com tais ideias. Mas também nunca foram os famintos que defenderam os interesses da colectividade. Não é no último sopro da vida que o homem pode reconstruir uma obra em ruínas. É enquanto a sensibilidade está intacta, os músculos duros, e a inteligência o conduz à união. O mau é quando os dirigentes pretendem alvejar um fim, tão diferente daquele que apregoam como a noite do dia…