Torga Miguel - Livros Proibidos

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Leitura – O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga

Foi nessa pátria, assim discretamente entendida como chão sagrado de amor e de prova, que me dispus a continuar, com redobrada aplicação, o exercício de curar e o suplício de escrever, sem ilusões de qualquer ordem quanto às dificuldades da empresa. O ambiente político, que se tornara asfixiante, estrangulava todas as independências e desiludia as mais firmes determinações. A ditadura catedrático-castrense, encarnada numa só vontade, que utilizava e estimulava exclusivamente os defeitos ou as qualidades menores do português, transformara a nação num espaço de terror, onde o silêncio tomava corpo no carimbo da censura, e os inconformados arquejavam sob o pesadelo latente da polícia secreta. Fomentada demagogicamente e coberta por um cínico manto de impunidade, a corrupção invadira as próprias profissões ajuramentadas à moral. Ninguém queria ouvir falar de civismo, dever, honradez e liberdade. Uma covardia funda, medular, entranhada na alma, reduzira a camada alfabeta do país a uma massa amorfa, protoplásmica, egoísta, surda a todos os apelos fraternos e cega a todos os acenos da razão, soma, abúlica, pronta apenas em cada momento a emitir pseudópodes tácticos de avidez nutritiva. A orquestração da verdade oficial, realizada através dos vários meios de comunicação ao serviço do poder, acabara por destruir nas mentes o sentido crítico, a apetência da análise e do julgamento. Era como se a vara do mando, mágica e demoniacamente, tivesse apagado em cada humanidade a luz racional e deixasse nela somente a escuridão instintiva. Em vez de naturezas pensantes, seres vegetativos. Taxados de palermas, intratáveis ou líricos, consoante o grau eufemístico do catalogador, os raros resistentes, que teimosamente mantinham aceso o facho da insubmissão, viam-se e desejavam-se para sobreviver. Antes que a força instituída os aniquilasse, tornavam-lhes o ambiente irrespirável os próprios conviventes. Mas, embora consciente de tudo isso, iria lutar até às últimas forças. A trabalhar como trabalhava — durante o dia a ver doentes e parte da noite agarrado aos livros —, em poucos meses estaria apto a usar honestamente o espéculo e o bisturi. Quanto à caneta, se não vinha mais aparada da viagem, trazia pelo menos outra humildade. Em face de alguns exemplos cruciantes, ficara a saber que é lento e penoso o caminho da arte, e que nele só o esforço aturado conta verdadeiramente. O triunfo viria depois, se viesse.

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Entrámos, mandou-me sentar, instalou-se à secretária, acendeu um cigarro e tirou algumas fumaças fundas, como que a encher o peito de energia. Apertado na farda justa, congestionado, parecia mais um monte de gordura contrafeita do que a encarnação da autoridade. Mas era-o mesmo assim, afundado no cadeirão de espaldar e afiançado por dois retratos severos — o do Chefe do Estado e o do Presidente do Conselho — pendurados na parede a que dava costas. — Pois, como acabei de dizer, recebi ordens, e, embora me custe, o meu dever é cumpri-las… — Evidentemente. Um pesado reposteiro adamascado a guarnecer a porta de entrada enchia a sala de solenidade. E o guião do posto, bordado a oiro, erguido a um canto, hirto como um catavento em dias de calmaria, era peremptório na legenda que o emoldurava: Pela Ordem e pela Pátria — De maneira que tenha paciência, vai fazer o favor de prestar aqui algumas declarações que serão reduzidas a auto. E tocou uma campainha a chamar um dactilógrafo. — Pelo que vejo, a coisa é grave! — Sim, realmente… Quer dizer: depende… — De qualquer maneira, estou à sua disposição… Meteu o indicador entre o pescoço e a gola do dólman, e tentou alargá-la. — Ora bem, o senhor doutor escreveu um livro… — Escrevi vários… — Refiro-me ao último… — Que acaba de ser apreendido… — De facto. Também recebi instruções para o retirar das livrarias cá da cidade. O que já fiz, de resto. E a propósito: de quantos exemplares foi a edição? — Trezentos. — Só?! — Só. — Parece que defende nele ideias subversivas… Eu confesso que ainda o não li… — É pena. Pelo menos podia falar com conhecimento de causa.

— Isso era. Mas, para o caso que nos preocupa, pouco interessa.

Defende ou não? — Nem uma coisa, nem outra. — Essa agora! — O senhor comandante precisa de ler o livro. — Vou ler. — Então leia, e depois conversamos… — Conversar, temos de conversar agora… Não é agradável o meu papel, creia, mas alguém tinha de estar aqui… Foi o Dr. que pagou as despesas da impressão? — Claro! Quem havia de ser? Nem percebo onde quer chegar! Vem lá indicado com todas as letras: edição do autor. — Podia ser uma maneira airosa de fazer as coisas… E estar por detrás qualquer organização… Confiado e até um pouco divertido a princípio, à medida que o interrogatório avançava, sentia crescer dentro de mim uma bruma de apreensão cada vez mais espessa. Que significava, afinal, tudo aquilo? Estava diante de uma formalidade ou metido num sarilho? E comecei a defender-me, iludindo as questões, a avaliar a segunda intenção das perguntas, a pesar as respostas, a divagar, não deixando ao mesmo tempo de tentar compreender a situação embaraçosa daquele homem a quem valera numa hora de aperto, e que via ainda ensacado no pijama de flanela, esquecido do posto e dos galões, desfigurado, a gemer como uma criança: — Não me deixe morrer, pelo amor de Deus! Lembre-se que tenho quatro filhos para criar…

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A cadeia ficava ao lado da esquadra, encostada à muralha do castelo. Da janela gradeada do cubículo onde fui metido viam-se os telhados de meia cidade, uma nesga da fachada da Sé, as torres de várias igrejas, o cemitério e, mesmo em frente, ao fundo, já liberta na paisagem, airosa, a capela da Senhora da Encarnação, ao alto da escadaria, ufana da sua graça arquitectónica feita de pobreza lavada. Por detrás, lá longe, a aldeia da Abadia a branquejar na verdura dos montes onde costumava ir à caça… Convencido ainda de que o caso se resolveria pelo melhor no dia seguinte, fazia por ignorar os surtos opressivos de uma sensação insidiosa de desamparo e de perigo, a distrair a atenção num jogo aplicado de referências e pormenorizações panorâmicas, enquanto esperava a todo o momento a visita do Dr. Olívio e do Tomé. Mas nenhum apareceu. O dia chegou ao fim, à hora de jantar o carcereiro trouxe uma marmita de comida, que mal cheirei, e a noite cerrou-se tão escura dentro de mim como lá fora. Não consegui dormir. Além da insónia habitual, a enxerga era dura, a cama tinha pouca roupa, e a cabeça parecia um motor a trabalhar. Rememorava ponto por ponto o interrogatório, a procurar medir-lhe o alcance, objectivava a estratégia da minha defesa, conjecturava, ouvia bater o coração na travesseira e as horas nos campanários, e mergulhava, meio perplexo meio fascinado, naquele abismo de solidão. Naturalmente cioso do meu isolamento, podia contudo, em qualquer altura e de moto próprio, saltar o muro individual e entrar no descampado colectivo. Bastava querer. E não raro assim acontecia. Às duas por três, dava gratuitamente as mãos, embora mais como personagem do que como pessoa, e entrava na roda fácil do convívio. Agora, porém, com pouca ou muita demora, fora privado de toda a iniciativa. Sem outro querer senão o de analisar a conjuntura dos factos, socialmente era apenas um pestífero de quarentena. E assistia, curioso, ao espectáculo inédito do espírito a saborear com relutância o gosto dum veneno provado pela primeira vez. O homem só se descobre a descobrir. E descobria até que ponto ele é capaz de reverter a seu favor os próprios malefícios da desgraça. Em vez de me deixar destruir pela força da agressão, surpreendia-me a desviar a brutalidade da energia desencadeada contra mim no exame minucioso das minhas íntimas reacções, exacerbadas pela acuidade reforçada dos sentidos acossados. Mal o dia rompeu, baldadamente torci o pescoço na gaiola, esperançado em ver surgir ao fundo da rua o vulto dos dois amigos. A manhã passou, a tarde morreu, e nada. Estava incomunicável, de certezíssima. Olarila! A ausência deles, acrescida do facto, igualmente estranho, de a empregada também não aparecer o dia inteiro a saber de mim e a dar-me notícias do consultório, só tinha uma explicação: ninguém podia contactar comigo. E entrei em pânico. O caso, afinal, era mais grave do que eu supunha. Não se tratava de uma detenção episódica, de um simples gesto de intimidação. A coisa fiava mais fino. Metera-me em trabalhos. A ser como parecia, àquela hora já o meu quarto fora certamente vasculhado, lida a correspondência, apreendidos os livros considerados subversivos — e havia lá muitos — e levado igualmente o original do Diário… O mesmo Diário que tantos engulhos causara ao Lopes em cada fronteira. Mal calculava eu, nessa altura, que ainda viria a sentir idêntica mortificação por causa dele… Não pelos mesmos motivos, evidentemente. Embora a devassa da sua leitura pudesse agravar a minha situação, era uma bofetada suplementar que levavam. Perdido por dez… Temia, sim, a perda irremediável do manuscrito. Se, de facto, lhe tivessem deitado a mão, podia tirar dali o sentido. Depois de o utilizarem como matéria delituosa, levaria tal sumiço que nunca mais lhe poria a vista em cima. E era essa perspectiva que me desesperava. Sentia mais apreensão pelo destino dos papéis do que pelo meu. Um homem, enquanto está vivo, mesmo atado de pés e mãos, tem sempre o futuro à sua espera; um livro inédito destruído, é uma esperança eternamente perdida. Mas nada podia fazer. Apenas cerrar os dentes e aguardar.

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Entregue na sede da PIDE, horas depois só por dentro continuava a ser gente. Por fora, fiquei reduzido a uma cara fotografada de todos os ângulos lombrosianos, a umas mãos esborratadas que deixavam impressões identificadoras numa ficha, a um nome sem senhoria e sem título, a um monte de ossos que o arbítrio alheio fazia mover. — Volta a cara… Espalma agora aqui a pata… Levanta-te… Conhecia já de nome, até bem de mais, a casa, que uma legenda negra celebrava. Contavam-se por toda a parte horrores dos suplícios a que eram submetidas nos cubículos do sótão —os famigerados «moinhos» — as vítimas renitentes à confissão, pias e noites a fio, de pé, sem dormir, ou, mal fechavam os olhos, acordadas a cachação pelos «macaquinhos», os guardas que a rendição frequente mantinha sempre em forma. Havia casos de alucinação por esgotamento, como o de um operário que cuidou ver a mulher violada e o filho único estrangulado e ia matando a sentinela com o escarrador de ferro fundido a que lançara mão. Mas, sem mesmo subir a essas celas de tortura, qualquer consciência livre encontrava no rés-do-chão razões de sobra para se envergonhar da existência legal no mundo de semelhantes infernos de aviltamento. Mais do que as sevícias sofridas e o seu destino ali decidido, importava o massacre da personalidade de cada condenado, a perdição da sua alma tentada de todas as maneiras. De uma criatura digna que dava entrada no covil saía muitas vezes, dias, semanas ou meses depois, um trânsfuga, um traidor, um covarde — um ser psicológica, quando não fisicamente, desfigurado, que a si próprio se desconhecia. Sádica e cientificamente concebida, a máquina de trituração funcionava em tais moldes de eficiência que as peças — tão impessoais que, embora porfiadamente o tentasse, a minha atenção não conseguia reter uma fisionomia — já nem sequer necessitavam de impulso motor. Actuavam automaticamente com a mesma brutalidade, fosse qual fosse o cascalho caído na moega que uma dissimulada e disseminada coorte de angariadores nunca deixava vazia. Bastava respirar por alguns momentos aquele ambiente de estagnada opressão, para o corpo e o espírito se sentirem despojados da semelhança anterior. Mas só depois de começar a ser rolado também na britadeira é que o perseguido ficava a conhecer, na exacta dimensão, até que ponto o homem pode humilhar o homem e a que extremos de baixeza é capaz de chegar um funcionário da crueldade. Em que sagrados recessos do eu uma perversidade aracnídea procura instilar a peçonha paralisante. — És então escritor? — Sou. — E poeta também, pelos vistos… — Também. — Um tipo formidável! Médico, escritor, poeta… Vais longe! — Hei-de ir até onde puder

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Não voltara a ser interrogado. E recordava as palavras cínicas do agente, à chegada: — Verás que mudas de ideias… Deixavam-me como que esquecido ali, a apodrecer lentamente, até que, maduro para uma confissão geral, pedisse eu próprio a barrela. Entretanto, iam certamente investigando… — Quero fazer declarações… — seria o termo de rendição esperado, logo diligentemente transmitido em cadeia por serventes e guardas. A engrenagem repressiva era um articulado de pretextos. E, na ausência de culpa formada, ia buscar a matéria de facto à própria substância do medo. Aterrado, o réu inocente acusava-se ou acusava. O que valia o mesmo. Ou ficava justificada a reclusão ou proporcionara-se oportunidade para uma denúncia suplementar. Homem e médico, não ignorava que há organismos pusilânimes, que nem todas as quedas são traições. Na vida clínica encontrara criaturas de compleição rija que desmaiavam diante de uma gota de sangue, e cibos de gente que enfrentavam sem pestanejar a mais grave operação. Misterioso, o mundo físico raramente pautava as suas leis pelas normas coerentes da ordem moral. Comido de fome, roubava; assado de desejo, violava. E só depois do escândalo dos actos vinha a reflexão, o arrependimento e o remorso. Por isso, a afirmação peremptória que fizera de que não cederia de maneira nenhuma, em boa verdade, significava apenas um firme propósito, que só o futuro podia sancionar. Embora de natureza sensível e queixosa, vivera sempre convencido de que aguentaria o juízo de qualquer fogueira, se a ela fosse arrastado pela exigência das minhas convicções. Simplesmente, nunca me convencera a sério de que acabaria por chegar a tal extremidade. E era essa evidência absurda que enfrentava agora, com toda a sua agudeza dilemática. Veríamos até que ponto seria capaz de a encarar de cabeça levantada. Por enquanto, não sentia o ânimo desfalecido. Pelo contrário. O osso ia ser duro de roer, mas estava decidido a rilhá-lo corajosamente, como outros o tinham feito antes de mim, porventura com mais mérito, risco e humildade. Outros que, sentados naquela mesma enxerga e diante daquelas mesmas paredes, haviam meditado, interrogado e respondido com igual desespero e expectativa. Porquê, tamanha raiva prosélita? Até quando tantas e tais humilhações?

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