Namora, Fernando - Livros Proibidos

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Leitura – Domingo à Tarde, Fernando Namora

Nesse tempo, ou já muito antes, era considerado um tipo insociável. Fumava desalmadamente, macerando o cigarro de um canto para o outro da boca, num jeito nervoso nada fácil de imitar, roendo a todo o momento qualquer danação íntima que se traduzia nos modos como fazia crer às pessoas que a presença delas me era insuportável. Tudo me servia para exagerar a brusquidão, talvez porque toda a gente reparasse nela e a censurasse, e a minha rebeldia contra fosse lá o que fosse manifestava-se, provocante, tanto mais quanto os outros a receavam. Era eu a açulá-los ao espectáculo, a colocar-me no centro desta arena improvisada que é a vida. Mas o gozo era meu. Nos outros não admitia, pois é o riso o que particularmente me ofende nos medíocres. Poderiam, enfim, julgar-me um snobe ou um torturado – e nem eu, ao certo, o saberia também. De manhã, a olhar-me no espelho (e eu gostava de me avaliar ao espelho, sobretudo desde que o cabelo fugira lá para trás, deixando desimpedida uma fronte bosselada, onde as veias pareciam vermes assanhados e túrgidos), essa imagem, enjoada, apenas me devolvia um cepticismo agressivo. O mesmo enjoo irritado daqueles meus doentes quando, na fase já desiludida, nos apreciavam como funâmbulos sem talento que insistem numa ridícula e odiosa pantomina. Penso ainda, muitas vezes, e apesar de tudo o que se passou, no significado dessas minhas ondas de fastio, arrogância e aspereza. Aspereza gratuita – que se poderia resumir, com mais rigor, nesta palavra que hoje, após os acontecimentos que me fizeram revelar muitas coisas dos outros e de mim próprio, deveria envergonhar-me: exibicionismo. Recusava, por exemplo, as batas de modelo único que distribuíam aos médicos do hospital e que se tiravam do cabide, a olho, consoante a estatura de cada um, como recusava submeter-me aos horários convencionais que disciplinavam os serviços das diferentes consultas. Todo eu me sacudia num risinho secreto, mal aflorado no desdém que me afilava o queixo, se me constava que o chefe da clínica, um sujeito de contumélias tresandando a alfazema e frases adocicadas, soltava guinchos de porquinho-da-índia ao dizerem-lhe que eu me negara espectaculosamente a observar uma dama da alta-roda que se julgara no direito de passar adiante da gente humilde das consultas – um rebanho paciente que se reunia como reses aturdidas à porta pela certeza de que o melado chefe da clínica seria incapaz de repetir os guinchos na minha presença, embora nessa noite ele fosse ter pesadelos com o terror de que a dama badalasse entre a sua tribo que, naquele serviço, se vexavam as pessoas respeitáveis. Tais excentricidades, ou como lhes queiram chamar, porque eram temidas, tornavam-se uma comodíssima justificação para todos os caprichos que me davam na gana e permitiam-me ser tão independente, azedo e solitário, quanto as vagas de neurastenia o exigiam. A neurastenia e, por fim, a petulância. Agora, que me deu na cabeça contar-vos umas coisas de que não posso orgulhar-me, é bem preferível usar as palavras necessárias. Petulância, pois. De uma vez deixara bem amolgado um tipo qualquer que se arriscara a anavalhar-me a reputação pelas costas, e como toda a gente comentou, com farta imaginação, a sova de cavalo-marinho que lhe dera, a minha fama de selvagem capaz de todos os dislates solidificou-se, solidificando-me, ao mesmo tempo, o prestígio. Porque o fiz? Fi-lo, hoje estou certo disso, não por desagravo, mas por fatuidade.

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Um dia e outro dia. Semanas longas e pesadas como numa tarde de domingo. A chuvinha, silenciosa e furtiva, não tinha parança. Era, nas ruas, um espelho trémulo e, cá dentro, um charco de fastio onde os ossos se atolavam. O tempo incidia medularmente na minha disposição. Apenas o tempo? Lembrava-me, nesses dias, estranhamente, de uma frase que lera havia muito: “Fechei a alma num porão.” Em que livro? A que propósito? Fechei a alma num porão. Era uma frase vazia, perdida, uma folha à procura da árvore donde se despegou, mas respondia-me a um estado de espírito igualmente solto das suas raízes. A minha misantropia podia avaliar-se por isto: o Romualdo – sem um interlocutor válido – e ele efectivamente elegera-me seu ouvinte privativo -, acumulara já tantas reservas de congeminações que o seu rosto parecia um tomate empolado. À beira da apoplexia. Mas preferia rebentar a arriscar-se ao meu lúgubre mau humor. Até que eu soube, por acaso (os doentes organizam-se numa espécie de seita, em que não faltam os delatores), que a rapariga de blusão carmesim fazia loucuras pela cidade. Era muito vista nos dancings e nos salões de jogo. Não era a primeira a quem isso acontecia. A maioria confundia prazer com desvarios. As pessoas tinham dentro de si, secretamente, uma atracção pela imundície. Se dessem dois dias de tréguas a um condenado, como iria ele aproveitá-los? Rectificando egoísmos, perfídias, cobardias, completando o capítulo inacabado de qualquer coisa perdurável? Não: mergulhando no lodo, atulhando as narinas com o fedor das podridões. Todos os mortos-vivos da minha clínica, assim que os freios se soltavam, corriam para um único e ardente objectivo: o de experimentarem o que, até aí, as convenções lhes tinham vedado, calcando a pés juntos, como possessos, milenárias inibições. Talvez porque o desespero se atordoasse mais depressa com o vício? Era preciso que os sarros lhes refluíssem às bocas, que a náusea de si próprios os cobrisse de uma epiderme surda, definitiva e impenetrável, amortecendo-lhes a terrível lucidez de chegar ao fim. Deter o tempo. Anestesiar o cérebro e os sentidos. De uma vez um homem tranquilo pedira-me que lhe demarcasse, com a precisão possível, os seus últimos oito dias de existência. E na sua voz domesticada em anos de obediência ao chefe de repartição, ao orçamento, às fórmulas, (…) dizia-me que queria morrer sentindo a plenitude de quem participou das sensações saboreadas nos sonhos que ficam secretos. Um estômago esfomeado que só antevê uma brutal e suicida indigestão. (…) - Porquê oito dias? As mãos do homem, envergonhadas, suspenderam a sua linguagem - O dinheiro não me chega para mais.

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Sentara-me ao lado de Clarisse. Avaliava-lhe as forças. Não podia vê-la naquele maldito quarto de hotel, docilmente à espera da morte, que viria como uma astuta rameira a filar um colegial desarmado. Que continuasse de preferência, a consumir-se numa chama viva. Que ardesse de pé. - Precisamos de ir os dois a qualquer sítio – disse-lhe. – Hoje há um concerto. - Vamos, se te apetece. Mas sinto-me arrasada. Não insisti. Não havia nada para dizer. Arrasa-te, Clarisse. Acaba depressa. Seria possível que eu o desejasse? Ficámos à procura de qualquer palavra inútil, enquanto eu ia e vinha da janela, a desbastar um turvo nervosismo, cada um na expectativa de se libertar da presença do outro. Na melancolia pesada que havia de permeio poderia eclodir uma tempestade. Daí a pouco, foi ela a referir-se de novo ao concerto. Pediu-me que esperasse lá fora. Estive não sei quanto tempo junto do elevador. O homem que o servia, com a face opaca e retalhada, lembrou-me uma velha relíquia. Sem carne, sem veias. Apenas a pele seca colada aos ossos. Quando Clarisse apareceu no elevador, esforçando-se por não cambalear, trazia o vestido que lhe vira no dancing. O seu corpo flutuava dentro do crepe vaporoso. Tal como naquela noite remota mas instantânea. E também como nessa noite, parecia-me irreal. Os seus gestos tacteavam as paredes e o pavimento. O meu cavalo de circo ia morrer. Exibia-se num último espectáculo. Pelo caminho, voltou a falar-me das flores. De um modo incoerente. Não, não era de todo incoerente: a mim é que, de ouvidos arranhados pela teatralidade desagradável que ela pusera nas palavras, custou perceber-lhe, desde logo, o objectivo. Ela queria dizer-me, num simbolismo de mau gosto, que nem as circunstâncias defendiam, que não desejava que lhe vendassem os olhos no momento da execução.

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