Difference between revisions of "Canções escolhidas"

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lágrimas e suspiros infinitos<br />
 
lágrimas e suspiros infinitos<br />
 
iguais ao mal que dentro n'alma mora?<br />
 
iguais ao mal que dentro n'alma mora?<br />
Mas quem pode algü'hora<br />
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Mas quem pode algua hora<br />
 
medir o mal com lágrimas ou gritos?<br />
 
medir o mal com lágrimas ou gritos?<br />
 
Enfim, direi aquilo que me ensinam<br />
 
Enfim, direi aquilo que me ensinam<br />
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excedia o poder da Natureza.<br />
 
excedia o poder da Natureza.<br />
 
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Não sei como sabia estar roubando
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(...)
cos raios das entranhas, que fugiam
 
por ela, pelos olhos sutilmente!
 
Pouco a pouco invencíveis me saíam,
 
bem como do véu húmido exalando
 
está o sutil humor o Sol ardente.
 
Enfim, o gesto puro e transparente,
 
para quem fica baixo e sem valia
 
deste nome de belo e de fermoso;
 
o doce e piadoso
 
mover d'olhos, que as almas suspendia
 
foram as ervas mágicas, que o Céu
 
me fez beber; as quais, por longos anos,
 
noutro ser me tiveram transformado,
 
e tão contente de me ver trocado
 
que as mágoas enganava cos enganos;
 
e diante dos olhos punha o véu
 
que me encobrisse o mal, que assi creceu,
 
como quem com afagos se criava
 
daquele para quem crecido estava.
 
 
 
Que género tão novo de tormento
 
teve Amor, que não fosse, não somente
 
provado em mim, mas todo executado?
 
Implacáveis durezas, que o fervente
 
desejo, que dá força ao pensamento,
 
tinham de seu propósito abalado,
 
e de se ver, corrido e injuriado;
 
aqui, sombras fantásticas, trazidas
 
de algüas temerárias esperanças;
 
as bem-aventuranças
 
nelas também pintadas e fingidas;
 
mas a dor do desprezo recebido,
 
que a fantasia me desatinava,
 
estes enganos punha em desconcerto;
 
aqui, o adevinhar e o ter por certo
 
que era verdade quanto adevinhava,
 
e logo o desdizer-se, de corrido;
 
dar às cousas que via outro sentido,
 
e para tudo, enfim, buscar razões;
 
mas eram muitas mais as sem-razões.
 
 
 
Pois quem pode pintar a vida ausente,
 
com um descontentar-me quanto via,
 
e aquele estar tão longe donde estava;
 
o falar, sem saber o que dezia;
 
andar, sem ver por onde, e juntamente
 
suspirar sem saber que suspirava?
 
Pois quando aquele mal m'atormentava
 
e aquela dor que das Tartáreas águas
 
saiu ao mundo, e mais que todas doe,
 
que tantas vezes soe
 
duras iras tornar em brandas mágoas;
 
agora, co furor da mágoa irado,
 
querer e não querer deixar d'amar,
 
e mudar noutra parte por vingança
 
o desejo privado de esperança,
 
que tão mal se podia já mudar;
 
agora, a saudade do passado
 
tormento. puro, doce e magoado,
 
fazia converter estes furores
 
em magoadas lágrimas de amores.
 
 
 
Que desculpas comigo que buscava
 
quando o suave Amor me não sofria
 
culpa na cousa amada, e tão amada!
 
Enfim, eram remédios que fingia
 
o medo do tormento que ensinava
 
a vida a sustentar-se, de enganada.
 
Nisto üa parte dela foi passada,
 
na qual se tive algum contentamento
 
breve, imperfeito, tímido, indecente,
 
não foi senão semente
 
de longo e amaríssimo tormento.
 
Este curso contino de tristeza,
 
estes passos tão vamente espalhados,
 
me foram apagando o ardente gosto
 
que tão de siso n'alma tinha posto,
 
daqueles pensamentos namorados
 
em que eu criei a tenra natureza,
 
que do longo costume da aspereza,
 
contra quem força humana não resiste,
 
se converteu no gosto de ser triste.
 
 
 
Destarte a vida noutra fui trocando;
 
eu não, mas o destino fero, irado,
 
que eu ainda assi por outra não trocara.
 
Fez-me deixar o pátrio ninho amado,
 
passando o longo mar, que ameaçando
 
tantas vezes me esteve a vida cara.
 
Agora, exprimentando a fúria rara
 
de Marte, que cos olhos quis que logo
 
visse e tocasse o acerbo fruto seu
 
(e neste escudo meu
 
a pintura verão do infesto fogo);
 
agora, peregrino vago e errante,
 
vendo nações, linguages e costumes,
 
Céus vários, qualidades diferentes,
 
só por seguir com passos diligentes
 
a ti, Fortuna injusta, que consumes
 
as idades, levando-lhe diante
 
üa esperança em vista de diamante,
 
mas quando das mãos cai se conhece
 
que é frágil vidro aquilo que aparece.
 
 
 
A piadade humana me faltava,
 
a gente amiga já contrária via,
 
no primeiro perigo; e, no segundo,
 
terra em que pôr os pés me falecia,
 
ar para respirar se me negava,
 
e faltavam-me, enfim. o tempo e o mundo.
 
Que segredo tão árduo e tão profundo:
 
nascer para viver, e para a vida
 
faltar-me quanto o mundo tem para ela!
 
E não poder perdê-la,
 
estando tantas vezes já perdida!
 
Enfim, não houve transe de fortuna,
 
nem perigos, nem casos duvidosos,
 
injustiças daqueles, que o confuso
 
regimento do mundo, antigo abuso,
 
faz sobre os outros homens poderosos,
 
que eu não passasse, atado à grã coluna
 
do sofrimento meu, que a importuna
 
perseguição de males em pedaços
 
mil vezes fez, à força de seus braços.
 
 
 
Não conto tanto males como aquele
 
que, despois da tormenta procelosa,
 
os casos dela conta em porto ledo;
 
que inda agora a Fortuna flutuosa
 
a tamanhas misérias me compele,
 
que de dar um só passo tenho medo.
 
Já de mal que me venha não me arredo,
 
nem bem que me faleça já pretendo,
 
que para mim não val astúcia humana;
 
de força soberana,
 
da Providência, enfim, divina, pendo.
 
Isto que cuido e vejo, às vezes tomo
 
para consolação de tantos danos.
 
Mas a fraqueza humana, quando lança
 
os olhos no que corre, e não alcança
 
senão memória dos passados anos,
 
as águas que então bebo, e o pão que como,
 
lágrimas tristes são, que eu nunca domo
 
senão com fabricar na fantasia
 
fantásticas pinturas de alegria.
 
 
 
Que se possível fosse, que tornasse
 
o tempo para trás, como a memória,
 
pelos vestígios da primeira idade,
 
e de novo tecendo a antiga história
 
de meus doces errores, me levasse
 
pelas flores que vi da mocidade;
 
e a lembrança da longa saudade
 
então fosse maior contentamento,
 
vendo a conversação leda e suave,
 
onde üa e outra chave
 
esteve de meu novo pensamento,
 
os campos, as passadas, os sinais,
 
a fermosura, os olhos, a brandura,
 
a graça, a mansidão, a cortesia,
 
a sincera amizade, que desvia
 
toda a baixa tenção, terrena, impura,
 
como a qual outra algüa não vi mais...
 
Ah! vãs memórias, onde me levais
 
o fraco coração, que ainda não posso
 
domar este tão vão desejo vosso?
 
 
 
Nô mais, Canção, nô mais; qu'irei falando
 
sem o sentir, mil anos. E se acaso
 
te culparem de larga e de pesada,
 
não pode ser (lhe dize) limitada
 
a água do mar em tão pequeno vaso.
 
Nem eu delicadezas vou cantando
 
co gosto do louvor, mas explicando
 
puras verdades já por mim passadas.
 
Oxalá foram fábulas sonhadas!
 

Latest revision as of 12:18, 14 November 2024

Canção camoniana
A canção camoniana consiste numa forma lírica que obedece a uma estrutura constante. Esta contém um número de estrofes regulares cujo número de versos varia entre sete e vinte, terminando com uma estrofe menor, correspondente ao envoi da balada francesa. Esta última estrofe servia para invocar a pessoa amada ou para condensar a temática do poema. A canção clássica recorre sempre ao metro heroico clássico (10 sílabas), alternando com o quebrado correspondente (seis sílabas).
Na canção camoniana é constante a temática amorosa.
In:
https://www.infopedia.pt/artigos/$cancao-camoniana
Canção X

Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
acenda-se com gritos um tormento
que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
a quem já muitas vezes o contei,
tanto debalde como o conto agora;
mas, já que para errores fui nascido,
vir este a ser um deles não duvido.
Que, pois já de acertar estou tão fora,
não me culpem também, se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
falar e errar sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!

Já me desenganei que de queixar-me
não se alcança remédio; mas quem pena,
forçado lhe é gritar se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
a voz para poder desabafar-me,
porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará sequer que fora mande
lágrimas e suspiros infinitos
iguais ao mal que dentro n'alma mora?
Mas quem pode algua hora
medir o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim, direi aquilo que me ensinam
a ira, a mágoa, e delas a lembrança,
que é outra dor por si, mais dura e firme.
Chegai, desesperados, para ouvir-me,
e fujam os que vivem de esperança
ou aqueles que nela se imaginam,
porque Amor e Fortuna determinam
de lhe darem poder para entenderem,
à medida dos males que tiverem.

Quando vim da materna sepultura
de novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelices obrigado;
com ter livre alvedrio, mo não deram,
que eu conheci mil vezes na ventura
o milhor, e pior segui, forçado.
E, para que o tormento conformado
me dessem com a idade, quando abrisse
inda minino, os olhos, brandamente,
manda que, diligente,
um Minino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
com üa saudade namorada:
o som dos gritos, que no berço dava.
já como de suspiros me soava.
Co a idade e Fado estava concertado;
porque quando, por caso, me embalavam,
se versos de Amor tristes me cantavam,
logo m adormecia a natureza,
que tão conforme estava co a tristeza.

Foi minha ama üa fera, que o destino
não quis que mulher fosse a que tivesse
tal nome para mim; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
o veneno amoroso, de minino,
que na maior idade beberia,
e. por costume, não me mataria.
Logo então vi a imagem e semelhança
daquela humana fera tão fermosa,
suave e venenosa,
que me criou aos peitos da esperança;
de quem eu vi despois o original,
que de todos os grandes desatinos
faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal
na vista dela; a sombra, co a viveza,
excedia o poder da Natureza.

(...)