Difference between revisions of "Torga Miguel - Livros Proibidos"

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*'''Miguel Torga''' (1907 - 1995)
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Miguel Torga, pseudónimo literário de Adolfo Correia da Rocha foi poeta, romancista, contista, ensaísta, dramaturgo e médico. Ativista cívico, apoiou Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958) nas suas candidaturas à Presidência da República contra os candidatos do regime. Intectuais e autores portugueses e estrangeiros, como entre outros, Vicente Aleixandre, Sophia de Mello Breyner Andresen  e Jean-Baptiste Aquarone, apresentaram e apoiaram por três vezes a candidatura de Torga ao Prémio Nobel da Literatura.
  
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*Livros Censurados
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Miguel ^torga teve vários dos seus livtos censurados. Nesta página da wiki vamos ler excertos de '''A Criação do Mundo''', '''Bichos''' e '''Diário'''. Esteve uns meses presos no Aljube (1939/1940) por ter publicado o livro '''A Criação do Mundo: O Quarto Dia''', onde denunciava os regimes fascistas de Franco (Espanha) e de Mussolini (Itália).
  
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Poeta, romancista, contista, ensaísta, dramaturgo e médico. Ativista cívico, apoiou Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958) nas suas candidaturas a Presidência da República contra os candidatos do regime. Entre 1939 e 1940 esteve (uns meses) preso, no Aljube, por ter publicado o livro “O Quarto Dia da Criação do Mundo", onde denunciava os regimes fascistas de Franco (Espanha) e de Mussolini (Itália).
 
 
 
 
 
 
 
 
político. ortuguês, um dos mais importantes poetas do século XX. Destacou-se também como contista, ensaísta, romancista e dramaturgo, deixando mais de 50 obras publicadas
 
 
 
Leitura – O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga
 
  
 
Foi nessa pátria, assim discretamente entendida como chão sagrado de amor e de prova, que me dispus a continuar, com redobrada aplicação, o exercício de curar e o suplício de escrever, sem ilusões de qualquer ordem quanto às dificuldades da empresa. O ambiente político, que se tornara asfixiante, estrangulava todas as independências e desiludia as mais firmes determinações. A ditadura catedrático-castrense, encarnada numa só vontade, que utilizava e estimulava exclusivamente os defeitos ou as qualidades menores do português, transformara a nação num espaço de terror, onde o silêncio tomava corpo no carimbo da censura, e os inconformados arquejavam sob o pesadelo latente da polícia secreta. Fomentada demagogicamente e coberta por um cínico manto de impunidade, a corrupção invadira as próprias profissões ajuramentadas à moral. Ninguém queria ouvir falar de civismo, dever, honradez e liberdade. Uma covardia funda, medular, entranhada na alma, reduzira a camada alfabeta do país a uma massa amorfa, protoplásmica, egoísta, surda a todos os apelos fraternos e cega a todos os acenos da razão, soma, abúlica, pronta apenas em cada momento a emitir pseudópodes tácticos de avidez nutritiva. A orquestração da verdade oficial, realizada através dos vários meios de comunicação ao serviço do poder, acabara por destruir nas mentes o sentido crítico, a apetência da análise e do julgamento. Era como se a vara do mando, mágica e demoniacamente, tivesse apagado em cada humanidade a luz racional e deixasse nela somente a escuridão instintiva. Em vez de naturezas pensantes, seres vegetativos. Taxados de palermas, intratáveis ou líricos, consoante o grau eufemístico do catalogador, os raros resistentes, que teimosamente mantinham aceso o facho da insubmissão, viam-se e desejavam-se para sobreviver. Antes que a força instituída os aniquilasse, tornavam-lhes o ambiente irrespirável os próprios conviventes.
 
Foi nessa pátria, assim discretamente entendida como chão sagrado de amor e de prova, que me dispus a continuar, com redobrada aplicação, o exercício de curar e o suplício de escrever, sem ilusões de qualquer ordem quanto às dificuldades da empresa. O ambiente político, que se tornara asfixiante, estrangulava todas as independências e desiludia as mais firmes determinações. A ditadura catedrático-castrense, encarnada numa só vontade, que utilizava e estimulava exclusivamente os defeitos ou as qualidades menores do português, transformara a nação num espaço de terror, onde o silêncio tomava corpo no carimbo da censura, e os inconformados arquejavam sob o pesadelo latente da polícia secreta. Fomentada demagogicamente e coberta por um cínico manto de impunidade, a corrupção invadira as próprias profissões ajuramentadas à moral. Ninguém queria ouvir falar de civismo, dever, honradez e liberdade. Uma covardia funda, medular, entranhada na alma, reduzira a camada alfabeta do país a uma massa amorfa, protoplásmica, egoísta, surda a todos os apelos fraternos e cega a todos os acenos da razão, soma, abúlica, pronta apenas em cada momento a emitir pseudópodes tácticos de avidez nutritiva. A orquestração da verdade oficial, realizada através dos vários meios de comunicação ao serviço do poder, acabara por destruir nas mentes o sentido crítico, a apetência da análise e do julgamento. Era como se a vara do mando, mágica e demoniacamente, tivesse apagado em cada humanidade a luz racional e deixasse nela somente a escuridão instintiva. Em vez de naturezas pensantes, seres vegetativos. Taxados de palermas, intratáveis ou líricos, consoante o grau eufemístico do catalogador, os raros resistentes, que teimosamente mantinham aceso o facho da insubmissão, viam-se e desejavam-se para sobreviver. Antes que a força instituída os aniquilasse, tornavam-lhes o ambiente irrespirável os próprios conviventes.

Revision as of 18:18, 25 February 2024

Torga1.jpg
  • Miguel Torga (1907 - 1995)
Miguel Torga, pseudónimo literário de Adolfo Correia da Rocha foi poeta, romancista, contista, ensaísta, dramaturgo e médico. Ativista cívico, apoiou Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958) nas suas candidaturas à Presidência da República contra os candidatos do regime. Intectuais e autores portugueses e estrangeiros, como entre outros, Vicente Aleixandre, Sophia de Mello Breyner Andresen  e Jean-Baptiste Aquarone, apresentaram e apoiaram por três vezes a candidatura de Torga ao Prémio Nobel da Literatura.
  • Livros Censurados
Miguel ^torga teve vários dos seus livtos censurados. Nesta página da wiki vamos ler excertos de A Criação do Mundo, Bichos e Diário. Esteve uns meses presos no Aljube (1939/1940) por ter publicado o livro A Criação do Mundo: O Quarto Dia, onde denunciava os regimes fascistas de Franco (Espanha) e de Mussolini (Itália).


Foi nessa pátria, assim discretamente entendida como chão sagrado de amor e de prova, que me dispus a continuar, com redobrada aplicação, o exercício de curar e o suplício de escrever, sem ilusões de qualquer ordem quanto às dificuldades da empresa. O ambiente político, que se tornara asfixiante, estrangulava todas as independências e desiludia as mais firmes determinações. A ditadura catedrático-castrense, encarnada numa só vontade, que utilizava e estimulava exclusivamente os defeitos ou as qualidades menores do português, transformara a nação num espaço de terror, onde o silêncio tomava corpo no carimbo da censura, e os inconformados arquejavam sob o pesadelo latente da polícia secreta. Fomentada demagogicamente e coberta por um cínico manto de impunidade, a corrupção invadira as próprias profissões ajuramentadas à moral. Ninguém queria ouvir falar de civismo, dever, honradez e liberdade. Uma covardia funda, medular, entranhada na alma, reduzira a camada alfabeta do país a uma massa amorfa, protoplásmica, egoísta, surda a todos os apelos fraternos e cega a todos os acenos da razão, soma, abúlica, pronta apenas em cada momento a emitir pseudópodes tácticos de avidez nutritiva. A orquestração da verdade oficial, realizada através dos vários meios de comunicação ao serviço do poder, acabara por destruir nas mentes o sentido crítico, a apetência da análise e do julgamento. Era como se a vara do mando, mágica e demoniacamente, tivesse apagado em cada humanidade a luz racional e deixasse nela somente a escuridão instintiva. Em vez de naturezas pensantes, seres vegetativos. Taxados de palermas, intratáveis ou líricos, consoante o grau eufemístico do catalogador, os raros resistentes, que teimosamente mantinham aceso o facho da insubmissão, viam-se e desejavam-se para sobreviver. Antes que a força instituída os aniquilasse, tornavam-lhes o ambiente irrespirável os próprios conviventes. Mas, embora consciente de tudo isso, iria lutar até às últimas forças. A trabalhar como trabalhava — durante o dia a ver doentes e parte da noite agarrado aos livros —, em poucos meses estaria apto a usar honestamente o espéculo e o bisturi. Quanto à caneta, se não vinha mais aparada da viagem, trazia pelo menos outra humildade. Em face de alguns exemplos cruciantes, ficara a saber que é lento e penoso o caminho da arte, e que nele só o esforço aturado conta verdadeiramente. O triunfo viria depois, se viesse.

                                                      O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga



Entrámos, mandou-me sentar, instalou-se à secretária, acendeu um cigarro e tirou algumas fumaças fundas, como que a encher o peito de energia. Apertado na farda justa, congestionado, parecia mais um monte de gordura contrafeita do que a encarnação da autoridade. Mas era-o mesmo assim, afundado no cadeirão de espaldar e afiançado por dois retratos severos — o do Chefe do Estado e o do Presidente do Conselho — pendurados na parede a que dava costas. — Pois, como acabei de dizer, recebi ordens, e, embora me custe, o meu dever é cumpri-las… — Evidentemente. Um pesado reposteiro adamascado a guarnecer a porta de entrada enchia a sala de solenidade. E o guião do posto, bordado a oiro, erguido a um canto, hirto como um catavento em dias de calmaria, era peremptório na legenda que o emoldurava: Pela Ordem e pela Pátria — De maneira que tenha paciência, vai fazer o favor de prestar aqui algumas declarações que serão reduzidas a auto. E tocou uma campainha a chamar um dactilógrafo. — Pelo que vejo, a coisa é grave! — Sim, realmente… Quer dizer: depende… — De qualquer maneira, estou à sua disposição… Meteu o indicador entre o pescoço e a gola do dólman, e tentou alargá-la. — Ora bem, o senhor doutor escreveu um livro… — Escrevi vários… — Refiro-me ao último… — Que acaba de ser apreendido… — De facto. Também recebi instruções para o retirar das livrarias cá da cidade. O que já fiz, de resto. E a propósito: de quantos exemplares foi a edição? — Trezentos. — Só?! — Só. — Parece que defende nele ideias subversivas… Eu confesso que ainda o não li… — É pena. Pelo menos podia falar com conhecimento de causa.

— Isso era. Mas, para o caso que nos preocupa, pouco interessa.

Defende ou não? — Nem uma coisa, nem outra. — Essa agora! — O senhor comandante precisa de ler o livro. — Vou ler. — Então leia, e depois conversamos… — Conversar, temos de conversar agora… Não é agradável o meu papel, creia, mas alguém tinha de estar aqui… Foi o Dr. que pagou as despesas da impressão? — Claro! Quem havia de ser? Nem percebo onde quer chegar! Vem lá indicado com todas as letras: edição do autor. — Podia ser uma maneira airosa de fazer as coisas… E estar por detrás qualquer organização… Confiado e até um pouco divertido a princípio, à medida que o interrogatório avançava, sentia crescer dentro de mim uma bruma de apreensão cada vez mais espessa. Que significava, afinal, tudo aquilo? Estava diante de uma formalidade ou metido num sarilho? E comecei a defender-me, iludindo as questões, a avaliar a segunda intenção das perguntas, a pesar as respostas, a divagar, não deixando ao mesmo tempo de tentar compreender a situação embaraçosa daquele homem a quem valera numa hora de aperto, e que via ainda ensacado no pijama de flanela, esquecido do posto e dos galões, desfigurado, a gemer como uma criança: — Não me deixe morrer, pelo amor de Deus! Lembre-se que tenho quatro filhos para criar…

                                                      O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga



A cadeia ficava ao lado da esquadra, encostada à muralha do castelo. Da janela gradeada do cubículo onde fui metido viam-se os telhados de meia cidade, uma nesga da fachada da Sé, as torres de várias igrejas, o cemitério e, mesmo em frente, ao fundo, já liberta na paisagem, airosa, a capela da Senhora da Encarnação, ao alto da escadaria, ufana da sua graça arquitectónica feita de pobreza lavada. Por detrás, lá longe, a aldeia da Abadia a branquejar na verdura dos montes onde costumava ir à caça… Convencido ainda de que o caso se resolveria pelo melhor no dia seguinte, fazia por ignorar os surtos opressivos de uma sensação insidiosa de desamparo e de perigo, a distrair a atenção num jogo aplicado de referências e pormenorizações panorâmicas, enquanto esperava a todo o momento a visita do Dr. Olívio e do Tomé. Mas nenhum apareceu. O dia chegou ao fim, à hora de jantar o carcereiro trouxe uma marmita de comida, que mal cheirei, e a noite cerrou-se tão escura dentro de mim como lá fora. Não consegui dormir. Além da insónia habitual, a enxerga era dura, a cama tinha pouca roupa, e a cabeça parecia um motor a trabalhar. Rememorava ponto por ponto o interrogatório, a procurar medir-lhe o alcance, objectivava a estratégia da minha defesa, conjecturava, ouvia bater o coração na travesseira e as horas nos campanários, e mergulhava, meio perplexo meio fascinado, naquele abismo de solidão. Naturalmente cioso do meu isolamento, podia contudo, em qualquer altura e de moto próprio, saltar o muro individual e entrar no descampado colectivo. Bastava querer. E não raro assim acontecia. Às duas por três, dava gratuitamente as mãos, embora mais como personagem do que como pessoa, e entrava na roda fácil do convívio. Agora, porém, com pouca ou muita demora, fora privado de toda a iniciativa. Sem outro querer senão o de analisar a conjuntura dos factos, socialmente era apenas um pestífero de quarentena. E assistia, curioso, ao espectáculo inédito do espírito a saborear com relutância o gosto dum veneno provado pela primeira vez. O homem só se descobre a descobrir. E descobria até que ponto ele é capaz de reverter a seu favor os próprios malefícios da desgraça. Em vez de me deixar destruir pela força da agressão, surpreendia-me a desviar a brutalidade da energia desencadeada contra mim no exame minucioso das minhas íntimas reacções, exacerbadas pela acuidade reforçada dos sentidos acossados. Mal o dia rompeu, baldadamente torci o pescoço na gaiola, esperançado em ver surgir ao fundo da rua o vulto dos dois amigos. A manhã passou, a tarde morreu, e nada. Estava incomunicável, de certezíssima. Olarila! A ausência deles, acrescida do facto, igualmente estranho, de a empregada também não aparecer o dia inteiro a saber de mim e a dar-me notícias do consultório, só tinha uma explicação: ninguém podia contactar comigo. E entrei em pânico. O caso, afinal, era mais grave do que eu supunha. Não se tratava de uma detenção episódica, de um simples gesto de intimidação. A coisa fiava mais fino. Metera-me em trabalhos. A ser como parecia, àquela hora já o meu quarto fora certamente vasculhado, lida a correspondência, apreendidos os livros considerados subversivos — e havia lá muitos — e levado igualmente o original do Diário… O mesmo Diário que tantos engulhos causara ao Lopes em cada fronteira. Mal calculava eu, nessa altura, que ainda viria a sentir idêntica mortificação por causa dele… Não pelos mesmos motivos, evidentemente. Embora a devassa da sua leitura pudesse agravar a minha situação, era uma bofetada suplementar que levavam. Perdido por dez… Temia, sim, a perda irremediável do manuscrito. Se, de facto, lhe tivessem deitado a mão, podia tirar dali o sentido. Depois de o utilizarem como matéria delituosa, levaria tal sumiço que nunca mais lhe poria a vista em cima. E era essa perspectiva que me desesperava. Sentia mais apreensão pelo destino dos papéis do que pelo meu. Um homem, enquanto está vivo, mesmo atado de pés e mãos, tem sempre o futuro à sua espera; um livro inédito destruído, é uma esperança eternamente perdida. Mas nada podia fazer. Apenas cerrar os dentes e aguardar.

                                                      O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga










Entregue na sede da PIDE, horas depois só por dentro continuava a ser gente. Por fora, fiquei reduzido a uma cara fotografada de todos os ângulos lombrosianos, a umas mãos esborratadas que deixavam impressões identificadoras numa ficha, a um nome sem senhoria e sem título, a um monte de ossos que o arbítrio alheio fazia mover. — Volta a cara… Espalma agora aqui a pata… Levanta-te… Conhecia já de nome, até bem de mais, a casa, que uma legenda negra celebrava. Contavam-se por toda a parte horrores dos suplícios a que eram submetidas nos cubículos do sótão —os famigerados «moinhos» — as vítimas renitentes à confissão, pias e noites a fio, de pé, sem dormir, ou, mal fechavam os olhos, acordadas a cachação pelos «macaquinhos», os guardas que a rendição frequente mantinha sempre em forma. Havia casos de alucinação por esgotamento, como o de um operário que cuidou ver a mulher violada e o filho único estrangulado e ia matando a sentinela com o escarrador de ferro fundido a que lançara mão. Mas, sem mesmo subir a essas celas de tortura, qualquer consciência livre encontrava no rés-do-chão razões de sobra para se envergonhar da existência legal no mundo de semelhantes infernos de aviltamento. Mais do que as sevícias sofridas e o seu destino ali decidido, importava o massacre da personalidade de cada condenado, a perdição da sua alma tentada de todas as maneiras. De uma criatura digna que dava entrada no covil saía muitas vezes, dias, semanas ou meses depois, um trânsfuga, um traidor, um covarde — um ser psicológica, quando não fisicamente, desfigurado, que a si próprio se desconhecia. Sádica e cientificamente concebida, a máquina de trituração funcionava em tais moldes de eficiência que as peças — tão impessoais que, embora porfiadamente o tentasse, a minha atenção não conseguia reter uma fisionomia — já nem sequer necessitavam de impulso motor. Actuavam automaticamente com a mesma brutalidade, fosse qual fosse o cascalho caído na moega que uma dissimulada e disseminada coorte de angariadores nunca deixava vazia. Bastava respirar por alguns momentos aquele ambiente de estagnada opressão, para o corpo e o espírito se sentirem despojados da semelhança anterior. Mas só depois de começar a ser rolado também na britadeira é que o perseguido ficava a conhecer, na exacta dimensão, até que ponto o homem pode humilhar o homem e a que extremos de baixeza é capaz de chegar um funcionário da crueldade. Em que sagrados recessos do eu uma perversidade aracnídea procura instilar a peçonha paralisante. — És então escritor? — Sou. — E poeta também, pelos vistos… — Também. — Um tipo formidável! Médico, escritor, poeta… Vais longe! — Hei-de ir até onde puder

                                                     O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga



Leitura – Bichos, Miguel Torga

Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso… Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira. Chuva, geada, sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo da arcada das costelas, de caçoada! Ah, sim, entre dois males… Já que não havia melhor, ficar ao menos ali. No tempo dos figos, pela fresca, a patroa viria consolar a barriga. Gostava de figos, a velhota. E sempre se sentiria acompanhado uma vez por outra.

                                                                                        Bichos, “Nero”, Miguel Torga

Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Punha-o mole, sem acção, bambo e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha de acabar semelhante vergonha! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! De resto, ali tinha já a primeira demonstração: ela a ressonar sozinha na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigénio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, deslizara dos seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre era a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e outras é que chegara àquela linda situação...

                                                                                      Bichos, “Mago”, Miguel Torga


Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria apenas uma humilhação sem esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto da existência de pensar sequer numa baforada da húmida frescura que agora lhe atravessava as ventas e lhe deixava cantarinhas no bigode... Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visitas da D. Sância! Negra sorte! E tudo obra do coirão da velha... Se não fosse ela, em vez de ir ali esquadrilhado e a mancar da mão esquerda, estaria no Tinoco a soltar ganidos como os outros, depois de ter feito o Zimbro em pedaços... Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho de desespero, tal e qual um moribundo a despedir-se da vida... Miséria de destino! Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma... E tudo obra do estupor da santanária!...

                                                                                        Bichos, “Mago”, Miguel Torga

Fez das tripas coração, e lá conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que vedava o paraíso da sua perdição. Saltava? Não saltava? Que infâmia, regressar aos mimos da D. Saneia! Que nojo! Que ordinarice! Mas a que propósito vinham agora semelhantes escrúpulos e recriminações? Sim, a que propósito? Fartinho de saber que nem sequer lhe passara seriamente pela cabeça a ideia de resolver o caso doutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforço concreto fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não havia uma dúzia de horas, ouvira a voz do Lambão como um eco da própria consciência... E, afinal, ali estava outra vez! E viera de livre vontade... Ninguém o obrigara... Já roído de remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim, voltara miseravelmente... E à procura de quê? Da paz podre dum conforto castrador... Que abjecção! Que náusea! E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradação, Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos da D. Sância.

                                                                                         Bichos, “Mago”, Miguel Torga

Galgada a custo a última rampa, Madalena encarou com terror a imensidade da montanha descarnada e hostil. Cada fragão de estremecer! Blocos desmedidos, redondos, maciços, acavalitados uns nos outros, num equilíbrio quase irreal, ou então dispersos, solitários, parados e silenciosos pelo planalto além. Começara a sentir as dores de madrugada, vagas, distantes, quase gostosas. E, a esse primeiro aviso, resolvera partir. Já agora, por mais um pouco, era levar a cabo aquele timbre. Sabê-lo, até ali, só ela e Deus. Nem o maroto que lhe fizera o serviço desconfiava. Sempre fora senhora do seu nariz. Dera o tropeção, é certo, mas em seguida conseguira esconder a nódoa dos olhos do mundo - a nódoa maior que pode sujar uma mulher. E nem mesmo ele suspeitava sequer do que se passava. Dias depois da desfeita, quando se lhe chegou com olhinhos de carneiro, a querer repetir a façanha, pô-lo a andar, sem de longe ou de perto tocar em tal assunto. - Escusas de teimar: pega ou larga de vez. Se te não presto para uma coisa, também te não presto para outra... Resolve. Cães no rasto é que não quero!... Fez-se desentendido. Lá casamento, isso não era com ele.

                                                                         Bichos, “Madalena”, Miguel Torga

Abriu de todo os olhos turvos. Entre as pernas, numa poça de sangue, estava caído e morto o filho. Carne sem vida, vermelha e suja. O segredo dela e de Deus!... Exausta, deixou-se ficar prostrada, a saborear o alívio. As cancelas escancaradas fechavam-se lentamente... Por fim, cansou-se da própria imobilidade. Ergueu-se, então. E permaneceu assim alguns segundos a ouvir o silêncio, como a ver se lá do longe vinha resposta aos gritos desesperados que lançara. Nada! O mundo emudecera. Com fetos verdes limpou-se. Depois deixou cair aquele pano sujo no charco onde o filho dormia. O pé, sem ela querer, foi escavando e arrastando terra... Aos poucos, o seu segredo ia ficando sepultado... O pé tentava deslocar agora uma laje que estava ao lado. Era pesada de mais. E as mãos ajudaram... O sol, cada vez mais baixo, lançava os últimos avisos da sua luz. E os olhos de Madalena viram claro. Eram horas de regressar. Eram horas de voltar à aldeia e matar aquela sede sem fim na fonte fresca da Tenaria.

                                                                             Bichos, “Madalena”, Miguel Torga

Quanto mais corria, mais o vento lhe soprava nos ouvidos. Assobiava de tal modo, que parecia fazer troça daquela fuga desordenada. - Aguenta, Morgado! Não esmoreças, pelo amor de quem lá tens! Pois sim. O ponto era poder. Muito embora quisesse valer à aflição do dono, e à sua também, as pernas negavam-se. Por isso, pouco a pouco, foi abrandando o passo, a fazer sabe Deus que sacrifício para não cair redondo no chão. - Grande ladrão, que me atraiçoas! A paga que recebia! Não bastavam as chicotadas secas e contínuas que, com a soga da rabeira, lhe dava na cabeça, nas ancas e onde calhava, ainda um insulto daqueles! Mas chegara ao limite das forças. Batesse, espetasse mesmo a ponta da navalha, à laia de espora, fizesse o que entendesse... Fora até onde podia. Agora... - Excomungado! Desgraças-nos a ambos! Paciência. Quem dá o que tem... Um lobo saltara já do barranco para a estrada. - Minhas ricas dezassete libras... Não percebeu. Parara exausto, com o corpo em fogo e a cabeça tonta da nortada e das vergastadas que recebera. E não abrangeu logo o sentido verdadeiro de semelhantes palavras numa hora assim. - A estas digo-lhes adeus... Mas apenas o almocreve desmontou, e num relâmpago lhe tirou os aparelhos, acabou por compreender que o ia abandonar ali, esfalfado, coberto de suor, indefeso, à fome do inimigo. Salvava a vida com a vida dele... E lamentava as suas dezassete libras! E, afinal, a manhã vinha a romper!... Só quando viu o dono a caminhar pela serra fora de albarda às costas - não se envergonhar! - e sentiu os dentes do primeiro lobo cravados no pescoço, é que reparou que a luz do dia começara a desenhar as coisas e a dar significação a tudo.

                                                                             Bichos, “Morgado”, Miguel Torga

Galo velho! Isto é que era uma vida!... Andava um homem sabe Deus como, roído por dentro, não lhe apetecia arreganhar os dentes, e logo uma sentença sem apelo: - galo velho! Parece que não dera motivos a ninguém para semelhante juízo?!... O mulheredo continuava a aninhar-se mal o via dar meia volta sobre a asa, e ainda nenhuma se queixara de falta de assistência. Pelo menos, que lhe constasse. A não ser que alguma serigaita... Teria a dona surpreendido qualquer pouca vergonha? Precisava de arregalar os olhos. - Mata-se, e faz-se um bolo. O filho já dá conta do recado... Era o senhor menino, então, que começava a pôr as unhas de fora! Ah, mas saía-lhe cara a brincadeira! Oh, se saía! Garoto! Um chafedes, ainda com os cueiros agarrados ao rabo, e a fazer-se fino! Ele que o apanhasse com a boca na botija!... Passou a vigiar o rapaz dia e noite, mordido duns ciúmes de morte. Mas nada conseguiu descobrir. Durante o resto do verão, não teve a menor razão de queixa. O moço portava-se na linha. E pôde respirar com mais sossego. Ora justamente em Outubro, fazia três anos que se estreara, desabou a trovoada. Acordara para tocar a alvorada. O mesmo silêncio profundo enchia a noite, e o mesmo cheiro forte de mosto toldava tudo. E, ao abrir a garganta, rompe a seu lado um canto tão cristalino e tão puro, que se calou. - Ouviste o frango? - Ouvi. Não havia dúvida nenhuma: a formiga tinha catarro. Ou cortava o mal pela raiz, ou estava perdido. A manhã vinha a romper e, com a luz do dia, a casa movimentou-se. Às tantas, a velha começou a afiar a faca no alguidar. Quê? Seria possível?! O raio da mulher teria alma de o degolar?! Mas ele ainda a pôr o caso em teoria, e já ela a deitar-lhe as mãos. - Cá-que-rá-cá!... O filho, outra vez. Aquele maldito filho, que a dona não depenara juntamente com os outros irmãos.

                                                                             Bichos, “Tenório”, Miguel Torga

Desesperado, espetou os chifres na tábua dura, em direcção à barriga do fugitivo, que arquejava ainda do outro lado. Sangue e suor corriam-lhe pelo lombo abaixo. Ouviu uma voz que o chamava. Quem seria? Voltou-se. Mas era um novo palhaço, que trazia também a nuvem, agora pequena e triangular. Mesmo assim, quase sem tino e a saber que era em vão que avançava, avançou. Deu, como sempre na miragem enganadora. Renovou a investida. Iludido, outra vez. Parou. Mas não acabaria aquele martírio? Não haveria remédio para semelhante mortificação? Num último esforço, avançou quatro vezes. Nada. Apenas palmas ao actor. Quando? Quando chegaria o fim de semelhante tormento? Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos congestionados o brilho frio dum estoque. Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?! Os homens tinham dessas generosidades?! Calada, a lâmina oferecia-se inteira. Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem. Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume.

                                                                                    Bichos, “Miura”, Miguel Torga

Mas a criança, apesar de mostrar, sem querer, que de todo se alheara do abismo sobre que pairava, não caiu. Acontecera outra coisa. Depois de pegar no ovo, de contente, dera-lhe um beijo. E, ao simples calor da sua boca, a casca estalara ao meio e nascera lá de dentro um pintassilgo depenadinho. E o menino contava esta maravilha com a sua inocência costumada, como quando repetia a história de José do Egipto, que ouvira ler a um vizinho. Por fim, pôs amorosamente o passarinho entre a penugem da cama, e desceu. E agora, um nada comprometido, mas cheio da sua felicidade, sabia um ninho. A ceia acabou num silêncio carregado. Só depois, à volta do lume quente do cepo de oliveira em brasido, é que os pais disseram um ao outro algumas palavras enigmáticas, que o pequeno não entendeu. Mas para quê entender palavras assim? Queria era guardar dentro de si a imagem daquele passarinho depenado e pequenino. Isso, e ao mesmo tempo olhar cheio de deslumbramento os dedos da Mãe, que, alvos de neve, fiavam linho. E tanto se encheu da imagem do pintassilgo, tanto olhou a roca, o fuso, e aqueles dedos destros e maravilhosos, que daí a pouco deixou cair a cabeça tonta de sono no regaço virgem da Mãe

                                                                                    Bichos, “Jesus”, Miguel Torga


A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados. Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus: – Noé, onde está o meu servo Vicente? Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio. Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante. Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa. – Deve andar por aí... Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!... Nada. – Vicente!... Ninguém o viu? Procurem-no! Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda. – Vicente! Vicente!. Em que sítio é que ele se meteu? Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia. – Vicente fugiu... – Fugiu?! Fugiu como? – Fugiu... Voou... Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão.

                                                                                    Bichos, “Vicente”, Miguel Torga











Não voltara a ser interrogado. E recordava as palavras cínicas do agente, à chegada: — Verás que mudas de ideias… Deixavam-me como que esquecido ali, a apodrecer lentamente, até que, maduro para uma confissão geral, pedisse eu próprio a barrela. Entretanto, iam certamente investigando… — Quero fazer declarações… — seria o termo de rendição esperado, logo diligentemente transmitido em cadeia por serventes e guardas. A engrenagem repressiva era um articulado de pretextos. E, na ausência de culpa formada, ia buscar a matéria de facto à própria substância do medo. Aterrado, o réu inocente acusava-se ou acusava. O que valia o mesmo. Ou ficava justificada a reclusão ou proporcionara-se oportunidade para uma denúncia suplementar. Homem e médico, não ignorava que há organismos pusilânimes, que nem todas as quedas são traições. Na vida clínica encontrara criaturas de compleição rija que desmaiavam diante de uma gota de sangue, e cibos de gente que enfrentavam sem pestanejar a mais grave operação. Misterioso, o mundo físico raramente pautava as suas leis pelas normas coerentes da ordem moral. Comido de fome, roubava; assado de desejo, violava. E só depois do escândalo dos actos vinha a reflexão, o arrependimento e o remorso. Por isso, a afirmação peremptória que fizera de que não cederia de maneira nenhuma, em boa verdade, significava apenas um firme propósito, que só o futuro podia sancionar. Embora de natureza sensível e queixosa, vivera sempre convencido de que aguentaria o juízo de qualquer fogueira, se a ela fosse arrastado pela exigência das minhas convicções. Simplesmente, nunca me convencera a sério de que acabaria por chegar a tal extremidade. E era essa evidência absurda que enfrentava agora, com toda a sua agudeza dilemática. Veríamos até que ponto seria capaz de a encarar de cabeça levantada. Por enquanto, não sentia o ânimo desfalecido. Pelo contrário. O osso ia ser duro de roer, mas estava decidido a rilhá-lo corajosamente, como outros o tinham feito antes de mim, porventura com mais mérito, risco e humildade. Outros que, sentados naquela mesma enxerga e diante daquelas mesmas paredes, haviam meditado, interrogado e respondido com igual desespero e expectativa. Porquê, tamanha raiva prosélita? Até quando tantas e tais humilhações?

O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga


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